• Nenhum resultado encontrado

2.1 A incorporação feminina no cangaço: abordagens sobre o assunto A incorporação da mulher no cangaço e seu papel dentro dos bandos são aspectos

pouco explorados pelos estudiosos. Diria até mesmo que as informações e análises específicas a respeito das mesmas são dispersas e escassas. Ao verificarmos as obras que estudaram o cangaço, percebemos que nessas análises o modo de vida e o comportamento dos homens dentro dos bandos foram bastante explorados em detrimento das mulheres. Quando tratadas, são vistas, na maioria das vezes, como simples companheiras de determinados cangaceiros ou como criminosas.

A reflexão sobre esta presença mostrou-se significativa para compreendermos o universo feminino em seu interior. Além disso, traz elementos para debater a criminalidade atribuída a estas mulheres, qualificadas de maneira homogênea como bandoleiras, violentas e sanguinárias, sem considerar as circunstâncias que as impulsionaram. Esse estereótipo depreciativo e marginal atribuído à cangaceira, acaba por encobrir o “ser mulher” construído no interior do cangaço. Além disso, perde-se de vista que elas também tinham anseios, medos, desejos e frustrações, sentimentos que não as eximiam do mundo marginal no qual estavam inseridas.

No campo acadêmico e nas fontes consultadas – cordel, memórias, obras de memorialistas - as reflexões sobre a incorporação da mulher nas fileiras do banditismo social, sinalizam para dois tipos de interpretações: os que defendem o ingresso voluntário, que pode ser exemplificado com Maria Bonita, Dulce, Cristina, Inacinha. Outros interpretam essa presença como resultado de uma ação violenta, ou seja, do rapto. Este se baseava no uso do

terror e da coerção, como exemplificam os casos de Sila, Dadá, Lídia entre outras. Essas mulheres foram privadas abruptamente do convívio de seus familiares sob ameaça de retaliações. Ou ainda, em função das circunstâncias, como o caso de Enedina que se sujeitou à marginalidade do cangaço para acompanhar o marido, que fugia de perseguições das forças volantes, e visualizava no cangaço uma possibilidade de proteção.

A historiadora Maria Cristina Matta Machado, em seu livro As táticas de Guerra

dos cangaceiros1, embora não seja categórica, alinhou-se às interpretações que defendem que

as mulheres foram incorporadas aos bandos através da força, ou seja do rapto. Entretanto, admite que em alguns casos elas foram movidas pela paixão a determinado cangaceiro, como evidenciam os casos de Maria Bonita, Dulce, Doninha, Mariquinha entre outras.

Para a socióloga Maria Isaura P. de Queiroz2, a inserção feminina no banditismo se configura numa escolha pessoal. Em sua concepção, a incorporação ao cangaço se constituía para as sertanejas pobres na oportunidade de se livrarem dos trabalhos rurais e na possibilidade de ascensão social. Tais perspectivas resultavam da imagem construída e veiculada pelos próprios cangaceiros que ostentavam o enriquecimento fácil e ilegal, a alegria e o nomadismo dos bandos. Soma-se a esses elementos a virilidade masculina evidenciada em sua coragem, o que despertava o desejo carnal de muitas mulheres. Em sua concepção fica evidente que a incorporação feminina aos bandos foi voluntária.

A problemática da incorporação feminina no cangaço também aparece nas fontes consultadas. Algumas delas foram elaboradas e reeditadas anos após o fim do cangaço, e evidenciam as reelaborações de homens e mulheres que publicizaram suas experiências a partir de depoimentos orais.

1

Em seu testemunho oral, a ex-cangaceira Dadá3 esclarece que a incorporação das cangaceiras Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira), Mariquinha (Maria dos Santos) e Doninha (Laura Alves) se constituiu numa escolha pessoal. De acordo com ela, as duas primeiras abandonaram os maridos e se uniram respectivamente aos cangaceiros Lampião e Ângelo Roque (Labareda).

O historiador Alistair Thomson4, especialista em História Oral, afirma que compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e presente. Ou seja, ao resignificarmos o passado lhe conferimos um sentido aceitável. Esse mecanismo se evidencia nas memórias de Sila e Dadá, que apesar de todas as dificuldades enfrentadas procuraram reconstruir de forma positiva suas experiências nos bandos, sobretudo, quando se referem às relações de convívio

Ao rememorar sua experiência no cangaço, Sérgia Ribeiro da Silva (Dadá) nos informa que algumas das mulheres que compunham os bandos eram originárias de famílias abastadas e cita os casos de Doninha e Sila. Para enfatizar a boa índole dessas mulheres, destaca que eram “gente de bem, gente de família, filhas de fazendeiros, tudo moça, mas teve

também mulher casada que foi pro grupo. Maria de Lampião e Mariquinha de Anjo Roque eram casadas e se apaixonaram e fugiram pro bando. As outras eram tudo moças, meninas, filhas de gente de recurso”.5

A utilização dos adjetivos “gente de bem”, “gente de família”, “filhas de

fazendeiros” pode ser pensado como uma tentativa da depoente em compor uma imagem

positiva da mulher cangaceira, sobretudo quando destaca a presença de meninas moças (virgens) como ela e Sila nos bandos. Esse mecanismo fica evidente quando descreve Sila

2

Afirma Queiroz que: “a vida no bando era muito alegre e por isso atraía as mulheres, que assim escapavam dos duros trabalhos rurais”. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 186.

3

DIAS, José Umberto. Dadá. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989, p. 34

4

THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória: Questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias. Projeto História, São Paulo: PUC/SP, nº 15, p. 51-84.

como uma “moça decente, moderna”. Essa expressão evidencia que eram moças decentes e que provinham de boas famílias, e que não compunham o estereótipo de mulher bandida. Ao enfatizar em seu relato que com exceção de Maria Bonita e Mariquinha as demais cangaceiras “eram tudo moças, meninas, filhas de gente de recurso”, Dadá deseja esclarecer que não eram prostitutas - mulheres de vida fácil – e, que as relações construídas no interior dos bandos eram decentes e se pautavam nos códigos morais vigentes na sociedade mais ampla.

Na composição da depoente, a origem e o poder aquisitivo dessas mulheres - ou melhor, de suas famílias - evidenciam que em alguns casos o cangaço se configurava numa oportunidade de saírem dos padrões convencionais estabelecidos pela sociedade, ou seja, que poderiam conquistar outros espaços além da esfera privada do lar, à qual estavam predestinadas. Além disso, sugere que poderiam “escolher livremente” seus parceiros sem a interferência dos acordos familiares. Contudo, cabe ressaltar que a incorporação feminina no cangaço nem sempre se pautava na espontaneidade; em alguns casos a coerção e o medo foram os fios condutores.

Os folhetos de cordel compõem e resignificam estas experiências de acordo com a concepção de mundo do poeta e a partir das memórias, dos relatos e das reelaborações de ex- participantes. Dessa forma, os cordelistas se apropriam dessas experiências e as transmitem de forma romanceada e fantasiosa, recorrendo ao recurso do exagero para enfatizar seu próprio ponto de vista sobre o assunto.

O poeta Antônio Teodoro dos Santos, em seu folheto Maria Bonita. A mulher

cangaço,6 se refere a incorporação das mulheres nas fileiras do cangaço como uma escolha

pessoal. Reforça o voluntarismo da incorporação ao afirmar que: “(...) Do mesmo jeito

5

Ibidem, p.34 -35

6

quiseram,/ Conviver com os bandidos,/ Em busca dos seus queridos/ Mais cangaceira vieram” 7.

A bibliografia especializada e as diversas fontes consultadas indicam que Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira) foi a primeira mulher a ingressar no cangaço em meados de 1930, provocando mudanças significativas no seu interior. A partir deste momento mais de 30 (trinta) mulheres participaram da vida nos bandos. No quadro 1 é possível visualizar os nomes e apelidos de algumas destas mulheres:

7

Quadro 1 - Mulheres que integravam o cangaço8

Nomes e apelidos UF - origem Companheiros/nomes e apelidos

Maria Gomes de Oliveira - Maria Bonita Bahia Virgolino Ferreira da Silva - Lampião Sérgia Ribeiro da Silva - Dadá Pernambuco Cristiano Gomes da Silva Cleto - Corisco Otília Maria de Jesusa- Otília Bahia Mariano Laurindo Granja - Mariano

Lilib Bahia Lavadeira

Joana Gomes - Moça Bahia Cirilo da Ingrácia

Joana Gomesc – Moça Bahia Jacaré

Ilda Ribeiro de Souza - Sila Sergipe José Ribeiro Filho - Zé –Sereno

Neném Bahia Luís Pedro

Lídia Bahia Zé Baiano

Enedina Sergipe José do Nascimento - Cajazeiras

Dulce Silva - Dulce Sergipe Criança

Inacinha Bahia Gato

Maria dos Santos - Mariquinhad Bahia Ângelo Roque - Labareda

Anaf Bahia Ângelo Roque - Labareda

Maria Fernandes - Maria de Juriti Sergipe Manuel Juriti - Juriti

Maria de Azulão Bahia Azulão

Dinda - Delicado

Durvalina Gomes - Durvinha Bahia Virgínio

Áurea Sergipe Manoel Moreno - Baiano

Maria Jovina - Maria de Pancada Bahia Pancada

Laura Alves - Doninha Alagoas Manoel dos Santos - Boa Vista

Cristina Alagoas Português

Florência Bahia Rio Branco

Sebastiana Rodrigues Alagoas Moita Brava

Eleonora - Serra Branca

Lica Maria da Conceição Bahia Passarinho

Sabina da Conceição Bahia Manoel Nascimento de Souza - Mourão

Quitéria Bahia Moita Brava

Bídio Bahia Antonio dos Santos - Volta Seca

Antonia Maria de Jesus Bahia Gabriel Lima - Baliza

Rosinha - Mariano Laurindo Granja - Mariano

Gertrudes Bahia Emídio Ribeiro - Beija-Flor

Dalva - Arvoredo

Adília Sergipe Canário

Maria Cardoso Sergipe Antonio Felix - Gitirana

Rosa - Simplício José dos Santos - Caracol

Amélia* - -

Maria* - -

Isabel* - -

Adelaide Sergipe O ex-cangaceiro não permitiu a divulgação de seu nome.

8

As letras de a-d indicam a necessidade de esclarecimentos específicos sobre estas mulheres, como veremos a seguir: a

Otília Maria de Jesus foi a primeira mulher de Mariano Laurindo Granja. Este, após a prisão da companheira uniu-se a Rosinha. b Lili foi mulher de Lavadeira. Com a morte deste em 1933, uniu-se ao cangaceiro Baiano (Manoel Moreno) e largou-o para viver com Moita Brava. c Joana Gomes após a morte de seu companheiro Cirilo da Ingrácia, uniu-se ao cangaceiro Jacaré. d O cangaceiro Labareda, após a morte de sua companheira Mariquinha, juntou-se a Ana.

Fontes: ARAÚJO, Antônio A. C. de.Lampião, as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, DIAS, José Umberto. Dada. 2ª edição, Salvador: EGBA/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989 e Correio da Manhã, 14/04/1937, p. 6 e 16/11/1937, p. 6. *A matéria veiculada no Correio da Manhã em 16/11/1932, p. 5, apenas menciona a participação dessas mulheres no bando de Faustino e não esclarece de quem eram companheiras.

Com base nas informações fornecidas pelo memorialista Antonio Amaury C. de Araújo, nota-se no quadro 1, que a Bahia foi o Estado que forneceu maior número de mulheres ao banditismo brasileiro. O segundo maior foi Sergipe, seguido por Alagoas e Pernambuco.

Araújo esclarece que as cangaceiras, diferentemente do que é divulgado, não percorreram sete Estados nordestinos. De acordo com ele, o trajeto feminino se circunscreveu aos “chãos baiano, pernambucano, alagoano e sergipano”, sendo que o primeiro e o último foram os mais freqüentados pelas mulheres. Ressalta que a rota baiana limitou-se as regiões norte-nordeste, margeadas pelo rio São Francisco. O Estado de Sergipe foi muito percorrido pelo grupo de Zé-Sereno, que segundo nos informa o memorialista, penetrou até o mar. Além destas áreas, toda a extensão do Rio São Francisco, da Cachoeira de Paulo Afonso descendo

em direção à foz, foi fortemente explorada pelos cabras de Lampião. (...) o sertão e o agreste

também viveram intensamente o fenômeno do cangaço.”9 Acrescenta que o Estado de

Alagoas também foi muito freqüentado pelas cangaceiras, sobretudo as zonas ribeirinhas e o sertão. Já Pernambuco foi o que menos visitas teve por parte das mulheres que

acompanhavam os grupos.”10

Com base nessas informações e no confronto das diversas fontes pesquisadas, procuramos (re)construir o trajeto percorrido pelas cangaceiras durante a década de 30 como evidencia o mapa da página seguinte. Cabe salientar que estas mulheres não estavam sozinhas, e que não formaram bandos independentes. Utilizamos o recurso do mapa para demarcar os espaços em que há referências à participação feminina nas invasões de cidades, nos confrontos com a polícia, enfim, para representar a área percorrida pelas mulheres. Cabe ressaltar que a atuação dos cangaceiros foi mais ampla.

9

ARAÚJO, A. A. C. de. Lampião, as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço, 1985, p. 374-377.

10