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Para compreender os fatores que contribuíram para o desenvolvimento dos primeiros estudos sobre lazer no Brasil, faz-se necessário retomar a conjuntura política, econômica, social e cultural da primeira metade do século XX, que gravitava entorno da progressiva constituição do Estado brasileiro, iniciada com a Primeira República, mas que iria consolidar-se apenas na década de 1930, durante o governo Vargas. Esse processo apoiava-se em uma proposta de modernização que desencadeou transformações em todas as esferas da vida nacional e que alterou profundamente os arranjos da sociedade brasileira.

O livro Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930, da escritora argentina Beatriz Sarlo, auxilia na compreensão do que seria a modernidade de que tratamos nessa pesquisa, particularmente sob a ótica das especificidades dos países latino-americanos, ou seja, enquanto nacionalidades periféricas na conjuntura da ordem política e econômica mundial. Podemos dizer que a modernidade é um conjunto de valores e práticas que impactaram estruturalmente a sociedade em seus diveros segmentos (político, econômico, social, demográfico, cultural, etc.) e acompanharam o processo de emergência da ordem capitalista industrial burguesa, isto é, da sociedade moderna. Tais princípios orientaram uma série de transformações nas sociedades que alcançaram dos ambientes privados aos públicos, no âmbito da materialidade e da subjetividade, e compuseram um discurso (e, portanto, carregada de forte dimensão subjetiva) que orientou o pensamento e o projeto de sociedade de um período histórico determinado, qual seja, da sociedade capitalista industrial burguesa.

Como insiste a autora (SARLO, 2010) em diversos momentos, a modernidade não é um conceito uno e definitivo. Isto significa que a concepção do que era moderno estava em disputa pelos agentes sociais do período, por meio de diversos projetos de construção nacional concorrentes, conduzindo a múltiplas possibilidades de modernidade, principalmente se considerarmos o contexto e as especificidades dos países periféricos, inseridos em um processo de modernização esquivo que nunca enxergava a si próprio como totalmente completo, tendo em vista que sempre esbarrava no espelho do modelo europeu. De maneira geral, os seguintes elementos consistem em algumas das principais operações que identificam o advento da modernidade, especialmente aquela desenvolvida na periferia do sistema: o aprimoramento técnico e econômico (ainda que de maneira mais tênue se comparado à realidade dos países centrais); a transformação e a expansão urbana acelerada, resultado de

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uma organização social centrada no espaço da cidade e que inaugura um novo “universo de valores” a ela relacionados; a nacionalidade e a busca de uma nova identidade nacional baseada em grande medida nas tensões entre as tradições locais e as influências cosmopolitas das vanguardas européias e, mais do que isso, na conjunção desses elementos; a consolidação de novas instituições políticas, sobretudo o aparelho burocrático estatal; a reorganização da estratificação social resultante de agentes econômicos emergentes, ou seja, das classes sociais próprias da ordem capitalista industrial; o sentimento de construção da sociedade como potência futura, sob a perspectiva da novidade; a centralidade do trabalho como valor organizador da sociedade; o primado da lógica científica e racionalista (SARLO, 2010). Nos países periféricos, essas experiências próprias da modernização encontraram uma conjuntura bastante complexa marcada fortemente pela experiência colonial, pela confluência de expressões culturais e étnicas variadas na formação social da população e pela indissolúvel oposição entre periferia e centro, que promoveram arranjos de modernidade extremamente particulares em relação ao modelo europeu. Aprofundando esse mesmo raciocínio, é essencial ressaltar que os desdobramentos desse anseio de modernização atuaram de maneiras e intensidades distintas em cada localidade do território nacional e geraram peculiaridades regionais, a partir de embates e ajustes com a tradição local, sendo mais atuante nos centros urbanos das principais capitais das regiões sul e sudeste.

O historiador Sidney Chalhoub percebe a consolidação de um novo discurso das classes dirigentes brasileiras desde fins do século XIX, que culminou com a proclamação da república, e se desenvolveu durante as primeiras décadas do século XX, pautada pelo intento de se implantar uma civilização moderna em território brasileiro. Para compreender o discurso do período é necessário construir o panorama a partir da dialética império x república, ou mesmo tradicionalismo x modernidade, que representavam o processo de transição pelo qual a sociedade passava. Sob a perspectiva de superação do tradicionalismo/colonialismo para a consagração da modernidade, apesar de resistências eventualmente impostas pelos setores mais arcaicos, esse movimento era fortemente orientado pelo pensamento positivista, que conduzia ao reconhecimento da ciência sobrepujando o obscurantismo. Nesse primeiro momento, ainda no contexto da República Velha, o liberalismo foi o modelo econômico adotado e a categoria trabalho ganha centralidade como pilar de sustentação da ordem industrial burguesa emergente.

Citando Thompson, Chalhoub afirma que “a formação de uma classe trabalhadora é tanto um fato de história econômica quanto de história política e cultural” (2001, p. 302). Considerando a conjuntura do fim da escravidão e dos resquícios do pensamento colonialista

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ainda presente, um dos principais desafios que se apresentavam era a formação do mercado de trabalho nos moldes da sociedade capitalista. Logo, tal demanda exigia a adesão do trabalhador, agora livre, ao modelo de mão-de-obra assalariada. Tanto Chalhoub, quanto Margareth Rago, estudando respectivamente as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo no período da República Velha, conseguem captar a complexidade da tentativa de imposição desse novo discurso aos trabalhadores, sem descuidar das contradições e dos embates que envolveram essa ação.

Uma vez que nas sociedades escravagistas o trabalho era atribuição das camadas mais desprezadas, Chalhoub aponta para a necessidade de se descolar da imagem de que o trabalho seria uma atividade degradante e criar um novo conceito que conferisse a ele uma conotação positiva, com a finalidade de “garantir a continuação do suprimento de mão-de- obra” (CHALHOUB, 2001, p. 48-49). A partir disso, seria possível utilizar estratégias de disciplinarização para incutir no trabalhador o hábito da venda da força de trabalho por meio do assalariamento. Era, portanto, necessário agir simultaneamente em duas frentes: do ponto de vista ideológico, no desenvolvimento de uma ética do trabalho baseada em valores positivos, que convencesse os indivíduos a internalizá-lo como hábito e a aceitá-lo como “missão”; e, do ponto de vista prático, na criação de mecanismos que obrigassem o indivíduo a entrar na rotina do trabalho industrial (CHALHOUB, 2001, p. 65). Sob a perspectiva ideológica de construir uma ética do trabalho pautada em valores burgueses, o novo conceito positivo de trabalho estava associado a valores como ordem, progresso, civilidade,

produtividade, desenvolvimento e assume o papel de “elemento ordenador da sociedade”

(CHALHOUB, 2001, p. 70) ou, em outras palavras, como “valor supremo regulador do pacto social” (CHALHOUB, 2001, p. 49-50). O apelo à moralização do trabalhador é evidente nessa empreitada, uma vez que o objetivo é “a formação de uma nova figura do trabalhador, dócil, submisso, mas economicamente produtivo” (RAGO, 1985, p. 12). Resumidamente:

Para o liberto, tornar-se bom cidadão deve significar, acima de tudo, amar o trabalho em si, independentemente das vantagens materiais que possam daí advir. Educar o liberto significa transmitir-lhe a noção de que o trabalho é o valor supremo da vida em sociedade; o trabalho é o elemento característico da vida “civilizada” (CHALHOUB, 2001, p. 69).

As estratégias mais rígidas de controle do trabalho industrial foram implantadas especialmente no momento inicial da industrialização no Brasil, no final do século XIX e princípios do século XX. Os mecanismos de adequação dos indivíduos aos requisitos do trabalho assalariado incluíam desde medidas de vigilância e repressão física respaldadas por disposições legais e pelas autoridades policiais e jurídicas (CHALHOUB, 2001, p. 47), até

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técnicas punitivas no interior do ambiente fabril, não sem resistência por parte dos trabalhadores. Algumas das medidas tomadas contra aqueles que não se adequavam às ordenações estabelecidas no cotidiano da indústria foram: redução de salário ou demissão (que, em um primeiro momento, obtiveram pouca efetividade); controle sobre a circulação dentro do espaço fabril (incluindo as “idas e permanências no banheiro”), com o objetivo de evitar qualquer “articulação espontânea”; limitações à duração do almoço; restrições às conversas; classificação e hierarquização dos funcionários conforme o comportamento; humilhação e violência moral aos que estivessem fora dos padrões desejados; intimidação pessoal. Em poucas palavras, estabelecia-se uma situação de “vigilância ininterrupta” sobre os trabalhadores (RAGO, 1985, p. 24-26). Por volta da década de 1930, já é possível perceber a introjeção desses códigos de comportamentos e maior adequação ao ritmo de trabalho industrial. Contudo, não é possível pensar a constituição da classe trabalhadora sem considerar as resistências e os rearranjos impostos por essa população:

Sendo assim, a hipótese mais geral que se quer lançar aqui sobre a cultura popular na cidade do Rio de Janeiro nestes anos de formação da classe trabalhadora carioca é de que esta cultura é resultado da dialética – antagonismos e reconciliações – entre as normas e os valores burgueses que se desejam impor às classes populares “de fora para dentro e de cima para baixo” e as normas e os valores criados pela própria classe trabalhadora na sua prática real de vida. Mais do que isso, pretende-se mostrar que na época havia uma cultura popular relativamente autônoma, vigorosa e criativa na cidade e que, apesar de o projeto de sociedade das classes dominantes cariocas querer se implantar de cima para baixo independentemente da natureza da resposta social a este projeto, o fato é que na prática política real estas classes dominantes não puderam escapar às contingências impostas por uma classe trabalhadora que resistiu tenazmente à tentativa de destruição de seus valores tradicionais (CHALHOUB, 2001, p. 255-256).

Em suma, havia uma tentativa de controle social e de conformação da força de trabalho necessária à implantação do modelo produtivo exigido pela sociedade industrial burguesa que se instaurava. Tratava-se de ação verticalizada, “de cima para baixo”, seja por meio da educação “do espírito” (valores, hábitos e costumes), seja por meio da repressão física direta; mas principalmente por meio da combinação entre os dois mecanismos. O trabalhador assalariado urbano10 deveria corresponder à materialização desse projeto.

A produtividade e o controle decorrentes do fenômeno do trabalho fabril eram as engrenagens que possibilitavam o desenvolvimento da nova sociedade. Assim sendo, o trabalho era a categoria que dava sustentação ao sistema capitalista industrial por ser o motor que gerava produtividade e, ademais, assumia a função social de preservação e regulação do

10 Naquele momento histórico, era conferida centralidade ao operariado das grandes cidades e pouca relevância era dada aos trabalhadores rurais, uma vez que o projeto modernizador da sociedade era essencialmente urbano e industrial.

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“corpo social”. O trabalho produtivo encarnava uma obrigação do trabalhador para com a sociedade: gerar o enriquecimento para toda a nação, que propiciaria o progresso de todos e, por toda essa expectativa despejada sobre ele, pretendia-se moldar “uma nova figura do trabalho, politicamente submissa, mas economicamente rentável” (RAGO, 1985, p. 17).

Em fins do século XIX e começo do século XX, medidas modernizadoras pululavam pelo país e houve um intensivo processo de reforma urbanística, saneamento e embelezamento dos centros urbanos, do qual a capital federal11, comandada pelo prefeito Pereira Passos, era o principal exemplo. Como apontam documentos da época analisados por historiadores como Margareth Rago, Sidney Chalhoub e Alcir Lenharo, a ideia de civilidade/modernidade circulava bastante entre as “práticas discursivas dominantes” (CHALHOUB, 2001, p. 51), como um objetivo conscientemente almejado pelos setores de maior relevo da sociedade. O termo “novo” e suas variações também aparecem insistentemente nesses relatos, evidenciando o contexto de transição pelo qual passava o país. Por se tratar de um momento de ruptura tão profunda, a constante exploração da concepção de “novidade” indica a construção de um projeto social em curso. Utilização de expressões como “nova nação”, “novo tempo”, “novo homem brasileiro”, “novo trabalhador”, “nova mulher/mãe”, “nova família”, “nova fábrica”, etc., mostram a dimensão que esse discurso alcançou.

Rago (1985) aponta que a progressiva industrialização brasileira, de maneira mais abrangente com a chegada da década de 1930, contribuiu para a ampliação das noções de higienização, racionalização e modernização aplicadas na estruturação do espaço fabril e do processo produtivo, culminando com a proposta de “organização ‘científica’ do processo produtivo” (p. 38-40). A ideia de uma “nova gestão do trabalho fabril” (RAGO, 1985, p. 39) evidencia a grande influência do taylorismo entre os industriais mais influentes da época. A “cientifização” do processo produtivo em prol da “exploração ‘racional’ da força de trabalho” (RAGO, 1985, p. 41), baseava-se em elementos que despersonalizavam os privilégios dos proprietários dos meios de produção e escondiam seu aspecto político. Desse modo, propunham a cooperação entre patrões e empregados, com a finalidade de camuflar ou evitar a perspectiva da luta de classes. O discurso proferido a favor do projeto da sociedade de cooperação sustentava que cada classe é dotada de função específica e, supostamente, de igual importância para o conjunto social:

11 Naquela época, a capital federal do país ainda era a cidade do Rio de Janeiro.

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(...) o operário deveria ser convencido de que sujeitar-se às normas da produção significava submeter-se às exigências naturais do progresso tecnológico e do desenvolvimento científico. Ciência, técnica e progresso apareciam inextricavelmente associados neste discurso de valorização da “nova fábrica”, espaço apolítico da produção. As normas disciplinares deixariam de ser impostas pelo capricho de patrões ambiciosos e de contramestres desalmados, para aparecerem autonomizadas e inscritas no aparato técnico da produção, isto é, dotadas de uma aparência de objetividade e de exterioridade (RAGO, 1985, p. 41).

A proposta de elaboração da “nova fábrica”, realizada concretamente na década de 1930, foi, em grande medida, resposta às lutas e reivindicações dos trabalhadores durante as primeiras décadas do século XX, que denunciavam as terríveis condições de trabalho enfrentadas cotidianamente nas primeiras fábricas. Pautada em princípios considerados científicos (e, portanto, apolíticos), a nova organização fabril propunha um espaço asséptico, higiênico e racional (em uma palavra: moderno), em que predominavam os ambientes mais amplos para facilitar a ventilação e iluminação; o aprimoramento da tecnologia utilizada pelos trabalhadores; o aumento da segurança; entre outras medidas que não apenas melhorassem, pelo menos na esfera do discurso, as condições objetivas dos operários no espaço de produção, mas que também interferissem, na ordem da subjetividade, na relação do operário com seu espaço de atuação, com seu patrão e, obviamente, com sua atividade propriamente dita, semeando relações mais harmoniosas que contribuíssem sempre para o aumento da produtividade. Sob essa nova conjuntura necessária à imposição de uma sociedade moderna, demandava-se igualmente a transformação da figura ultrapassada das classes dirigentes:

É nesse sentido que se pode observar que a elaboração positiva da figura do trabalho implica também a promoção de um novo tipo de patrão. Ao antigo proprietário, rude e despótico, que o imaginário social assimilava ao fazendeiro dono de escravos, procura-se opor a figura do patrão moderno e civilizado, a exemplo de um Jorge Street ou de um Roberto Simonsen. Ou seja, ao trabalhador moderno, higiênico e produtivo, deveria corresponder, na “nova fábrica”, racionalizada e apolítica, a figura do novo industrial, dinâmico e educado, que se relacionaria dignamente com seus “empregados” e em cuja propriedade já se teria superado o “antigo problema” da luta de classes (RAGO, 1985, p. 36).

Como contraponto a esse discurso, a ociosidade e os vícios eram considerados ameaças constantes tanto no âmbito individual, quanto no social; e, portanto, deveriam ser reprimidos. No aspecto individual, o ocioso era visto como pervertido, vagabundo, privado de valores morais e que representava um atentado aos bons costumes. No aspecto coletivo, ele comprometia a ordem social, uma vez que não cumpria com sua responsabilidade frente à sociedade, em que cada um teria um papel determinado a desempenhar para o progresso do bem comum (CHALHOUB, 2001, p. 74-75).

A persistência de comportamentos considerados desviantes como o ócio e o vício, bem como as lutas e reivindicações operárias, sustentavam a necessidade de manutenção das

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práticas de controle, vigilância e repressão dos trabalhadores. No entanto, não foram suficientes para sufocar definitivamente as resistências cotidianas (sabotagem, boicote, destruição de equipamentos, etc.) ou organizadas (principalmente as greves), sejam pontuais, espontâneas, de maior ou menor alcance, organizadas contra “as estratégias de enquadramento do proletariado ao modelo disciplinar imaginado pelos dominantes” (RAGO, 1985, p. 27). Tanto Chalhoub, quanto Rago apontam para a diversidade e as contradições desse cenário em disputa, que demandava, por outro lado, reações cada vez mais sutis por parte da classe dirigente:

Em suma, o desejo patronal de determinar os caminhos da formação do proletariado, impedindo sua autoconstrução espontânea enquanto classe, manifesta-se de maneira cada vez mais sofisticada e ramificada, à medida mesmo em que o movimento operário se organiza e ameaça escapar ao controle do poder. No entanto, a prática patronal oscila entre o exercício da repressão direta e o “paternalismo”, defendido por alguns patrões (RAGO, 1985, p. 33).

A complexidade do período estudado salta aos olhos e desafia tenazmente as tímidas tentativas de generalização esboçadas acima (...). Esse esquema não dá conta de milhares de indivíduos que, não conseguindo ou não desejando se tornar trabalhadores assalariados, sobreviviam sem se integrarem ao tal “mercado”, mantendo-se como ambulantes, vendedores de jogo do bicho, jogadores profissionais, mendigos, biscateiros, etc. (CHALHOUB, 2001, p. 62).

Nesse período, a ética do trabalho apresenta, portanto, um discurso tanto econômico, enquanto conformação de um corpo produtivo em prol do progresso da nação, quanto político, como forma de controle da população por meio da moralização dos hábitos cotidianos. Logo, as motivações econômicas, políticas e morais que incidem sobre as práticas laborais se confundem e se sobrepõem constantemente.

Durante o governo Getúlio Vargas, instaurado em 1930, houve a manutenção do ideal moderno de construção de uma sociedade industrial baseada no trabalho. Contudo, como bem aponta Alcir Lenharo (1986), o novo regime marca a mudança, nos planos político e econômico, de transição do modelo liberal para o modelo corporativista, ancorado na centralização estatal. Devido ao reduzido papel que o Estado exercia anteriormente na sociedade, o liberalismo era acusado de beneficiar a configuração de uma sociedade dividida e, portanto, de não ser capaz de mediar os conflitos entre as classes, encorajando a que cada camada social vislumbrasse interesses particulares divergentes, sem uma visão unificada sobre o bem comum da nação (LENHARO, 1986, p. 35). Em razão do esgotamento do modelo liberal, o corporativismo (apesar de suas diversas vertentes possíveis) apareceu como uma terceira via, alternativa frente ao capitalismo liberal já fracassado, mas também ao comunismo insurgente.

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O corporativismo foi um modelo de governo que propunha a unidade nacional, a conciliação de todos os estratos da sociedade em prol do desenvolvimento geral do país. Isso somente poderia ser conquistado por intermédio de uma sociedade hierarquizada, dotada de forte divisão e especialização do trabalho e das funções sociais. Mediante a constituição de corporações, ou seja, organizações sindicais vinculadas e subordinadas ao poder público, o Estado centralizado seria capaz de mediar e articular a relação entre os grupos, com a finalidade de se alcançar o bem comum e a paz social. Dessa forma, “a ordem corporativa proposta vinha confirmar, como se declarava então, a substituição do negativo conceito de luta de classes pelo conceito positivo de colaboração de classes” (LENHARO, 1986, p. 22). A metáfora da “organicidade do corpo humano” contribui para explicar o funcionamento do sistema corporativista:

(...) as partes que compõe a sociedade foram pensadas tal como o relacionamento dos órgãos do corpo humano: integradamente e sem contradições. O objetivo do projeto, portanto, visava neutralizar os focos de conflitos sociais, tornando as classes (órgãos) solidárias umas com as outras (LENHARO, 1986, p. 18).

Além disso, os sindicatos deveriam funcionar como os meios de representação da vontade geral dos trabalhadores frente ao poder central, e a atuação política somente seria considerada, ou mesmo permitida, dentro desses espaços institucionalizados. Tal resolução implicaria em uma constituição não-orgânica da classe trabalhadora, mas, ao contrário, uma organização imposta verticalmente, de cima para baixo (LENHARO, 1986, p. 35). Em resumo, o sistema corporativo de organização política, econômica e social se amparava fundamentalmente na rígida hierarquização que ordenava os lugares e as funções que classes e indivíduos deveriam desempenhar no conjunto da sociedade, determinada de maneira centralizada pelo poder estatal, “que se pretendia árbitro neutro e exterior às lutas sociais, para chegar à ‘concórdia’ e à ‘cooperação’” (LENHARO, 1986, p. 99). Logo, os princípios fundamentais do corporativismo se firmavam nas noções de totalitariedade e nacionalismo, que sustentavam a exaltação de uma comunidade harmoniosa, cooperativa, unitária e unida, guiada pelo Estado em prol do ideal coletivo (LENHARO, 1986, p. 187). O modelo corporativista alcançaria seu ápice com a implantação do Estado Novo em 1937, responsável

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