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de

O Despertar

e

Riacho Doce

“Twenty-eight years of womanly life and all so lonesome”42

Walt Whitman

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O demônio nos salta aos olhos:

Teoria do romance e as representações de gênero

Segundo o teórico Georg Lukács, no seu livro Teoria do romance, o gênero romanesco é responsável por criar um tipo de herói que se destaca pela sua volição, ou seja, pelos seus desejos de realizações, diferenciando-se dos heróis a ele anteriores que povoaram as epopeias clássicas. Nas páginas do romance, Lukács identifica um ponto de tensão entre o herói e o mundo exterior, fazendo com que aquele seja identificado como um “indivíduo problemático” (LUKÁCS, 2009, p. 82), dado à falta de equivalência entre a vontade do herói e o que a exterioridade lhe oferece. Para entender melhor esse tipo de herói moderno, Lukács o contrasta com o seu oposto:

Quando o indivíduo não é problemático, seus objetivos lhe são dados com evidência imediata, e o mundo, cuja construção os mesmos objetivos realizados levaram a cabo, pode lhe reservar somente obstáculos e dificuldades para a realização deles, mas nunca um perigo intrinsicamente sério. O perigo só surge quando o mundo exterior não se liga mais a ideias, quando estas se transformam em fatos psicológicos subjetivos, em ideais, no homem (LUKÁCS, 2009, p. 79).

Ainda, na visão do teórico húngaro, o romance é responsável por quebrar com a correspondência entre sujeito e mundo social, mostrando que há um descompasso entre os dois. Desse descompasso, cria-se a caracterização do herói romanesco como possuidor de uma “psicologia” “demoníaca” (LUKÁCS, 2009, p. 89). Essa psicologia demoníaca do herói faz com que ele procure desestabilizar a ordem instituída do mundo, mostrando-se cheio do desejo de transgredir com o que a ele é exterior. Mas, como ele encontra-se constantemente em antagonismo com as estruturas que regem este mundo, o poder dele é sempre inferior às forças daquelas estruturas. Nesse jogo de forças entre volição do herói como indivíduo e as estruturas sociais que lhe tolhem a interioridade, Georg Lukács identifica a ironia estrutural do gênero romanesco.

Num estudo em que discute as ideias do húngaro, o crítico Arturo Gouveia assim conceitua o tipo de ironia identificado por Lukács: “A ironia estrutural do romance, diferente da ironia semântica e de outras modalidades de ironia, manifesta-se na

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inadequação entre as aspirações do herói e os resultados de sua ação” (GOUVEIA, 2008, p. 105). Segundo Lukács, foram “os estetas do primeiro Romantismo” (LUKÁCS, 2009, p. 74) os primeiros a reconhecer como ironia o processo de “autorreconhecimento, ou seja, a autossuperação da subjetividade” (LUKÁCS, 2009, p. 74) do herói como a ironia estrutural do romance. Nas palavras de Georg Lukács,

significa ela [a ironia estrutural do romance] uma cisão interna do sujeito normativamente criador em uma subjetividade como interioridade, que faz frente a complexos de poder alheios e empenha-se por impregnar o mundo alheio com os conteúdos de sua aspiração, e uma subjetividade que desvela a abstração e portanto a limitação dos mundos reciprocamente alheios do sujeito e do objeto, que os compreende em seus limites, concebidos como necessidades e condicionamentos de sua existência, e que, mediante esse desvelamento, ainda que mantenha intacta a dualidade do mundo, ao mesmo tempo vislumbra e configura um mundo unitário no condicionamento recíproco dos elementos essencialmente alheios entre si (LUKÁCS, 2009, p. 75).

Em sua Teoria do romance, Lukács parte do herói épico para caracterizar o herói romanesco. Na História da Literatura Ocidental, o herói épico sempre foi identificado na figura masculina. Onde estaria a figura da heroína nas epopeias? Seria ela Helena de Tróia, a mulher cujo rapto provocou a guerra? Ou Andrômaca, a que sofreu com a morte do esposo? Ou Hécuba, que viu toda a sua família ser destruída juntamente com seu reino? Ou talvez Penélope, a esposa paciente que soube esperar o marido durante vinte anos? A mulher, embora faça parte do enredo e nele atue, não se constitui a protagonista do texto épico.

Ao discorrer sobre o papel do feminino nas narrativas épicas, Claudio Melo e Souza mostra que não é apenas no tipo de personagens que elas se diferenciam do masculino. O destaque dado à caracterização das mulheres, principalmente das mortais, em contraste com as deusas, também se distancia da dos homens. Segundo o estudioso:

Repito que, em relação às mulheres mortais, porém, chamem-se elas Helena, Penélope ou Andrômaca, Homero é sempre recatado, poupando detalhes [...]. Já em relação aos heróis, o poeta sente-se um pouco mais à vontade, fazendo-se seguidos elogios à nobreza do porte, à imponência da altura, aos cabelos louros, aos pés brilhantes, às sandálias (SOUZA, 2001, p. 245).

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As narrativas épicas se caracterizam como materialização de um mundo dominado pelo homem, cujas figuras de destaque são identificadas como símbolo de virilidade, força e coragem, características que, no cenário das letras da época, não são utilizadas para compor o feminino. Dessa forma, a representação da mulher estava inevitavelmente relegada a um plano inferior, seja no lado descritivo, seja na sua participação nas ações do enredo. Elas são sempre coadjuvantes, seja para trazer o bem ou para causar o mal. Tal representação apenas reforça o papel social do feminino no mundo grego, como expressam as palavras de Xenofonte, na sua obra Econômico, que mostra a mulher como “agente silencioso do oikos: que visse o mínimo, ouvisse o mínimo e falasse o mínimo” (XENOFONTE, 1999, VII, p. 34 – 35) (grifo do autor). Na caracterização da mulher nas narrativas épicas percebe-se um espelhamento de fatos históricos na matéria ficcional. Simone de Beauvoir, ao analisar o papel da mulher na história patriarcal afirma que:

[...] a própria mulher reconhece que o universo em seu conjunto é masculino; os homens modelaram-no, dirigiram-no e ainda hoje o dominam; ela não se considera responsável; está entendido que é inferior, dependente; não aprendeu as lições da violência, nunca emergiu, como um sujeito, em face dos outros membros da coletividade, fechada em sua carne, em sua casa, aprende-se como passiva em face desses deuses de figura humana que definem fins e valores (1980. p. 364).

Como não há uma representação de herói épico para o feminino, entende-se que o que Lukács aponta como representante do herói moderno no romance diz respeito à representação da figura masculina, primeiramente. Isso se confirma na escolha de modelos para representar, por exemplo, a tipologia de heróis da forma romanesca criada pelo teórico húngaro: Dom Quixote, de Cervantes; Frederico Moreau, de Flaubert; Wilhelm Meister, de Goethe; e a galeria de homens que habitam as páginas dos romances de Léon Tolstói. Mas, como a forma romance usa tanto o masculino como o feminino para compor a figura do herói moderno (entenda-se moderno o gênero romanesco que se desenvolve ainda na Idade Média), as ideias desenvolvidas por Lukács para enfocar esse novo herói podem ser usadas para ambos os gêneros – tanto para o masculino como para o feminino.

Esse não apontamento de heroínas como representantes de uma tipologia de protagonistas para o romance mostra certo descaso ou desatenção de Lukács quanto à

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representação de gênero dentro da literatura. A escolha de Frederico Moreau, de Educação

sentimental, em detrimento a Emma, de Emma Bovary, mostra que os olhos do teórico escrutinam a obra de Gustave Flaubert que tem um homem como protagonista, relegando a segundo plano a que tem uma mulher como personagem principal. Em sua escolha de protagonistas para a sua Teoria do romance, Lukács deixa de lado “as ideologias de gênero, construídas, ao longo do tempo, pela cultura” (ZOLIN, 2009, p. 218). Mas, ao mesmo tempo, oferece material para que possamos “tentar romper com os discursos sacralizados pela tradição” (ZOLIN, 2009, p. 218) quanto à representação do feminino na literatura. Dessa forma, mesmo não sendo apontada como representante do gênero romanesco, buscamos na heroína de O Despertar e na de Riacho Doce características do herói demoníaco apontado por Lukács.

No gênero literário moderno, o romance, não há mais a homogeneidade épica, mas, sim, a distância entre o herói e a sociedade: “herói romanesco e mundo exterior são mutuamente agressivos” ou, ainda, “a relação sujeito/mundo no romance é mediada pela distância insuperável” (GOUVEIA, 2008, p. 109). Discutindo o pensamento de Lukács, Antunes mostra que há uma impossibilidade de reconciliação do homem com a sociedade e que isso ocorre “devido à desproporção entre as aspirações da alma e a objetividade da organização social” (ANTUNES, 1998, p. 183). Ao que parece, essa distância e agressividade criadas entre herói e mundo exterior são ainda maiores quando se leva em conta as relações de gênero destacadas pela crítica feminista. Uma vez que a mulher foi vista na História social, cultural e fisicamente, como uma categoria inferior ao homem, seguindo as ideias de Lukács, o interior do feminino estaria em conflito de proporções maiores do que o que se instaura entre o masculino e o mundo exterior. Isso ocorre

porque “não se pode pensar a mulher como uma entidade abstrata, mas como um ser

dotado de historicidade que procura traçar novos caminhos, estabelecendo elos entre a história passada e a vida presente” (ZINANI, 2006, p. 93).

Em resumo, Lukács aponta o romance como o lugar da luta entre o indivíduo e a sociedade em que ele vive, uma vez que “o romance é o espaço do demoníaco por excelência, potencializando as possibilidades e imprevisibilidades humanas como nenhum outro” (GOUVEIA, 2008, p. 108). Nos romances em estudo, a luta entre as protagonistas e o mundo social em que vivem ganha uma proporção mais grandiosa, quando vemos que estas mulheres buscam para si algo que não seria permitido para nenhuma delas dentro do

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contexto patriarcal em que estão inseridas, daí a total dissonância entre herói e mundo, tal como pensou Georg Lukács. Daí afirmarmos que:

[...] a relação sujeito/mundo [...] é mediada pela distância insuperável. A intenção estruturante torna a distância sensível como experiência vivida pelo indivíduo romanesco. Ou seja: ao invés da segurança sentida pelo sujeito coletivo da epopeia, o herói moderno, desprovido de proteção, sente na pele a distância que o separa das estruturas sociais (GOUVEIA, 2008, p. 110).

Os dois romances trabalham com a busca do ser pela harmonia consigo e com o seu entorno. Tudo isso é metaforizado nas atitudes das duas protagonistas e nas suas incursões dentro da narrativa, ou seja, nas relações que elas criam com os outros personagens e nas suas ações, que, muitas vezes, são vistas como transgressões dos padrões instituídos para o feminino.

Georg Lukács afirma, ainda, que o romance surgiu como a epopeia burguesa. E como tal, ele deveria configurar-se como uma representação dessa sociedade que o criou. Em O Despertar, por exemplo, temos a representação de um indivíduo burguês lutando contra os problemas que o mundo lhe impõe na sua busca pela emancipação, como veremos a seguir. No caso dessa narrativa, em particular, a mesma ideologia que criou o gênero romance vai fazer com que O Despertar não permita que a protagonista tenha êxito em seu projeto burguês por se tratar ela de uma mulher tentando se emancipar como sujeito autônomo, uma vez que ela está inserida em uma sociedade patriarcal que molda o feminino. Para que uma mulher pudesse viver sozinha dentro daquele contexto seria necessário possuir bem mais do que os desejos de Edna Pontellier de entregar-se a quem ou a que ela quer – “Já não sou propriedade do Sr. Pontellier para ser ou não descartada.

Eu me entrego a quem eu quero”43 (CHOPIN, 1994, p. 142). Além do mais, havia um

preço a ser pago para aquelas que tentassem manter-se sem a companhia de um homem e vivendo de suas próprias atividades de trabalho. É o que acontece, por exemplo, com Mademoiselle Reisz, a pianista solteirona amiga de senhora Pontellier.

Em Riacho Doce, diferentemente de Edna Pontellier, que identifica em si um sujeito em nascimento, a protagonista do romance não consegue ter tanta certeza de seu individualismo, mas também não se vislumbra como pertencente aos padrões femininos

43 “I am no longer one of Mr. Pontellier’s possessions to dispose of or not. I give myself where I choose”

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tradicionais apresentados no romance. Mais uma vez, a busca de realização pessoal que extrapola os padrões já instituídos pelo patriarcado torna a personagem um ser fadado à solidão.

É nesta mesma perspectiva que Silva, ao analisar as personagens femininas das obras de Ivana Arruda Leite e Dora Limeira, afirma que “Quando a lógica do pertencimento à Ordem não é plenamente satisfeita, as mulheres experimentam o lado negativo do não-pertencimento: a solidão” (SILVA, 2010, p. 30). Críticos que se debruçaram sobre o romance de Kate Chopin identificaram a solidão como uma temática relevante em O Despertar, como deixam transparecer as afirmativas de Margo Culley, ao

dizer que o texto é “um romance existencial sobre solidão”44 (CULLEY, 1994, p. 247), e a

de Aparecido Donizete Rossi, ao assegurar que “muitas das heroínas da autora serão mulheres solitárias, como Edna Pontellier em O despertar” (ROSSI, 2011, p. 34). Essa afirmativa pode ser usada, também, para se referir ao texto de José Lins do Rego, uma vez

que Edna/Eduarda vive em diferentes lugares – o burgo onde nasceu, Estocolmo e

Riacho Doce – sempre solitária e se opondo aos que a cercam.

No que se refere ao termo solidão, nosso apoio teórico se centrará na reflexão sobre a condição do ser humano em relação aos outros e a si mesmo. Numa perspectiva social, a solidão é vista como um estado voluntário ou imposto pelas condições a que um sujeito está atrelado diante de uma relação com a alteridade. Falar em solidão requer, nesta perspectiva, uma análise das ligações entre um sujeito e o(os) outro(s). É por isso que Heidegger mostra que “a caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo a própria presença” (2007, p. 174). Assim, encontrar-se em um estado de solidão é não criar vínculo com o outro, não se aproximando do que o outro representa. Desse modo, solidão refere-se a uma falha nas relações entre um sujeito e os que o cercam, porque tal sujeito consideraria as relações de pertencimento como desagradáveis (PEPLAU; PERLMAN, 1982). Na visão de Bauman é o próprio sujeito quem cria para si a ligação com o outro, uma vez que “as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’” (2005, p. 17 – 18). Daí Dornelas afirmar que:

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a solidão não significa necessariamente a ausência dos relacionamentos interpessoais, mas a ausência do sentimento de “pertencimento” e de outro que o auxilie na sua referência de ser no mundo, pois a constituição do que somos é resultante da escolha relativa entre coisas, do tipo “gosto disto e não daquilo”. Ou seja, na presença do outro nos identificamos, estabelecendo as relações pelas complementaridades das nossas diferenças e pela partilha das similaridades (2007, p. 263).

Em um espaço social marcado pelo modelo imposto pelo patriarcado, as protagonistas de O Despertar e de Riacho Doce, dado ao seu distanciamento com o que é visto como ideal para o feminino, não encontram espaço de pertencimento para si. E como não possuem espaço, estas mulheres são marcadas pela derrocada de seus planos existenciais.

Discorrendo sobre a teoria lukacsiana, Arturo Gouveia aponta um sentido no fato de o romance moderno mostrar que o herói, no final da narrativa, encontra o fracasso de seus ideais:

Se o ideal, tão alimentado pela ideologia burguesa, mostra-se no final irrealizável, a ironia que deriva desse paradoxo denuncia a falsidade das grandes promessas burguesas: igualdade, liberdade, fraternidade. E o amadurecimento, pelo choque, que o herói [...] adquire em seu percurso é resultado do reconhecimento dessa falsidade. O romance, enquanto forma que engloba essas contradições violentas, distingue-se, já em sua construção, pela maturidade ao fazer o fracasso das utopias em um de seus fundamentos básicos (GOUVEIA, 2008, p. 113).

Como veremos na análise a seguir, os dois romances simbolizam o nascimento e a morte de duas mulheres que se lançam numa empreitada para afastar a solidão e encontrar um modo de se sentirem completas em uma sociedade que se mostra conflitante com as perspectivas desses indivíduos que não se adequam às normas sociais – principalmente aquelas ligadas ao gênero.

Uma vez que nosso estudo se distancia um pouco do foco dado por Lukács na abordagem do herói do romance, pois centramos nossa análise em heroínas e não, como faz o teórico, em heróis, faz-se necessário diferenciar, mesmo que de forma sucinta, o

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indivíduo” (LUKÁCS, 2009, p. 79), ou seja, entre a interioridade e a exterioridade do herói e da heroína.

Para o protagonista masculino, o romance apresenta um conflito centrado, essencialmente, no nível existencial. Ou seja, o herói luta com forças que lhe impedem de atingir o que para ele seria a sua individualização. Esta jornada do herói, ou seja,

[o] processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento (LUKÁCS, 2009, p. 82).

A “peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo” (LUKÁCS, 2009, p. 82), levando-se em conta o engendramento das heroínas, enfrenta, ainda, forças de ordem histórica e social, de um sistema patriarcal que fala mais alto, impedindo o feminino de atingir o “claro autoconhecimento” (LUKÁCS, 2009, p. 82). Daí a diferença básica entre o herói problemático e, o que poderíamos chamar de, a heroína problemática: a heroína em sua peregrinação tem que enfrentar forças de uma ordem social sedimentada que procuram impedir qualquer representante do feminino de realizar-se como sujeito de vontade, forçando-a ao “fracasso das utopias” (GOUVEIA, 2008, p. 113). Refletindo a realidade histórica do feminino, o romance do final do século XVIII e subsequente têm representado a mulher numa luta constante para conquistar uma emancipação diante do poder do patriarcado. Como ela luta contra forças sociais, primeiramente, para depois dar vasão ao seu interior, é inegável que a representação do feminino no romance seja fruto desse processo histórico pelo qual tem passado a mulher. É por isso que, na análise que aqui empreendemos, temos que levar em conta a relações de gênero que se criam no momento de representação ficcional da mulher.

Partindo do princípio de que este herói/heroína do romance se constitui como opositor a uma ordem externa que se choca com seu próprio interior, buscamos analisar as protagonistas dos romances O Despertar e Riacho Doce, procurando focalizar em que consiste o choque entre o interno das personagens e o mundo que as cerca. Nessa proposta de análise, temos em mente as relações criadas na tessitura da narrativa que envolvem, principalmente, as questões de gêneros, tais como identificadas pela teórica

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italiana Teresa de Lauretis, em “A tecnologia do gênero” (1994), mas, também, outras que se referem às questões concernentes às análises textuais, diretamente envolvidas com a teoria literária, como voz narrativa, caracterização de personagens, relação entre texto e contexto, entre outras.

No que se refere ao termo gênero, oriundo das discussões teóricas dos estudos sobre o feminismo, entendemos que esse conceito mostra, segundo as palavras de Lauretis, “uma relação entre uma entidade e outras entidades previamente constituídas como uma classe, uma relação de pertencer” (1994, p. 210). A autora explica que, dessa forma, “o gênero atribui a uma entidade, digamos a uma pessoa, certa posição dentro de uma classe, e portanto uma posição vis-à-vis outras classes pré-constituídas” (LAURETIS, 1994, p. 211). A estudiosa entende o conceito de gênero como “o produto e o processo tanto da representação quanto da auto-representação” (Idem, p. 217), ou seja, deve-se levar em conta, ao tratar de gênero, tanto a maneira como os sujeitos ‘gendrados’ são mostrados pela História como o modo como tais sujeitos se auto-representam. É nesse processo de construção de uma identidade que o gênero pode ser entendido. Assim, nas palavras da própria Teresa de Lauretis:

Com a expressão ‘sujeito do feminismo’ quero expressar uma concepção ou compreensão do sujeito (feminino) não apenas como diferente de Mulher com letra maiúscula, a representação de uma essência inerente a todas as mulheres [...], mas também como diferente de mulheres, os seres reais, históricos e os

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