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Indícios de um conceito de Natureza renovado

continuísta da teoria psicanalítica para com os textos metapsicológicos anteriores a 1900 poderiam ainda ser citados – como a transformação dos “sistemas de neurônios” da carta a Fliess de 6 de dezembro de 1896 em “sistemas mentais” na Traumdeutung de 1900 (GAMWELL, SOLMS, 2008, pp. 128-132). Basta-nos, porém, o testemunho do próprio Freud em uma de suas últimas obras, Abriss der Psychoanalyse (Esboço de Psicanálise, 1940), publicado postumamente. Nele, Freud sustentou o fato de a psicanálise ter encontrado condições suficientes para teorizar acerca de um “aparelho psíquico que se estende no espaço”, aparelho este composto com vistas a determinados fins, desenvolvido pelas necessidades da vida e que, sob certas condições, dá origem ao fenômeno da consciência. Tal hipótese o teria colocado em posição de “edificar a psicologia sobre bases parecidas às de qualquer outra ciência natural, por exemplo, a física” (FREUD, 1940/1992, p. 198). A psicanálise em geral, e a metapsicologia em particular, apresentam-se assim como desdobramentos do ideal de constituição de uma psicologia natural na última década do século XIX.

É verdade que tal ideal exigiu de Freud, num primeiro momento, assumir uma atitude materialista e reducionista diante dos dados a serem sistematizados. É fato que, quando da passagem da neurofisiologia para a psicanálise, Freud já não poderia mais explicar todos os processos mentais com base exclusivamente em leis físicas ou

na química dos elementos em ação no organismo humano. Não obstante, as exigências do funcionamento fisiológico do organismo deveriam ser satisfeitas, embora já não pudessem, por si só, esgotar todas as possibilidades de articulação do todo pulsional formado pelo conjunto dos processos inconscientes e dos processos conscientes. O que permanecia o mesmo, porém, era a meta de ultrapassar a aparência dos fenômenos para descobrir a sua natureza essencial. Compreendê-la requeria que se encontrasse uma forma de olhar mais profunda e abrangente, capaz de identificar regularidades passíveis de sistematização. Descobri-las seria tarefa de uma disciplina que se pretendia científica, e o esforço de Freud consistiu numa tentativa de atingir esse objetivo com relação à articulação entre o sistema nervoso e o conjunto dos fenômenos psíquicos.

Tais regularidades passíveis de sistematização incluíam tanto fatos de observação quanto de consciência. A consciência é, como vimos, a “outra grande exigência” que, segundo o Projeto, a psicologia científica e naturalista deveria satisfazer (FREUD, 1895/2003, p. 186). Desde a fórmula fisiopatológica da histeria de Quelques considérations pour une étude comparative, Freud afirmava que a paralisia histérica correspondia a uma lesão do conceito do órgão afetado, não de sua representação cortical. Assim, os processos responsáveis por tais fenômenos deveriam ser explicados cientificamente tanto quanto aqueles que se originam em lesões materiais. Inferi-los a partir do método psicanalítico não era, para ele, fundamentalmente diferente de inferir dados a partir de observações feitas ao microscópio, pelo menos no que se refere aos seus objetivos científicos. O raciocínio por trás de ambos os métodos era estender ao máximo as capacidades de observação tanto para a percepção externa quanto interna, subjetiva, com vistas a fornecer a base mais profunda possível sobre funções subjacentes impossíveis de serem observadas (GAMMWELL, SOLMS, 2008, pp. 32-33).

No interior da teoria psicanalítica não se justifica, então, a distinção que tradicionalmente se faz entre a Erklärung (explicação) e a Deutung (interpretação) – índice da diferença metodológica entre ciências do espírito e ciências naturais. Desde a Interpretação dos Sonhos, a explicação sistemática destinava-se a transcrever graficamente aquilo que se passa no trabalho do sonho, isto é, os processos (primários ou secundários) que fizeram com que o sonho adquirisse a forma com a qual foi reconhecida no discurso consciente. Tais mecanismos não são acessíveis senão no e pelo trabalho de interpretação. Em outras palavras, são os produtos da tarefa

interpretativa (os processos de condensação e deslocamento e as formas de representação em jogo na elaboração onírica) que devem ser sistematizados com base nos princípios tomados de empréstimo das ciências naturais (inércia e constância).

A teoria neuronal inicial de Freud, por sua vez, evidencia um monismo materialista flagrante. O psicanalista condiciona a existência de todos os processos psíquicos ao funcionamento do sistema nervoso. Percepção, memória, pensamento, patologias, consciência, a função inibidora do eu: todos estes, enquanto estados delimitados de quantidades em curso no sistema nervoso, encontram sua condição de possibilidade num desempenho específico de determinados sistemas neuronais – φ , ψou

ω, ou suas inter-relações. Pode-se então afirmar então que o Projeto de 1895 descreve a gênese materialista da interioridade sobre a atividade perceptiva do neurônio. Com isso Freud recusa a dualidade espírito-matéria bem como a concepção localizacionista da consciência como um “olho interno” correlato às impressões mnêmicas no tecido nervoso.

Contudo, para se entender a natureza do materialismo presente no pensamento freudiano, além de se atestar a sua recusa da dualidade substancial, é preciso compreender o conceito de Natureza subjacente a ele. O ponto comum entre os diversos materialismos da era moderna é o fato de constituírem-se como verdadeiras filosofias da Natureza. A intuição principal é a de uma Natureza criadora organizada cujo devir envelopa a totalidade dos seres. Até mesmo a gradual substituição da problematização da Natureza como objeto da metafísica (a qual perdurara como problema filosófico de primeira grandeza desde os primórdios da disciplina) pelo paradigma físico-químico (tributário de uma teoria atomista, a física corpuscular), em curso desde o século XVII, testemunha a filiação da ciência da época a uma concepção metafísica da Natureza como conjunto de coisas que apresentam uma ordem, que realizam tipos ou que se produzem segundo leis (VVAA, 2000, p. 1010), leis estas passíveis de “descoberta” pelo espírito humano e responsáveis pelas regularidades observadas empiricamente.

Por fim, compreender o naturalismo de Freud pressupõe diferenciar a exigência de um determinismo na Natureza do naturalismo positivista. O espírito científico positivista do século XIX tinha como padrão de cientificidade a física mecanicista, a cujos métodos e postulados todas as demais ciências deveriam ser reduzidas ou, dada sua impossibilidade, descartadas como meras especulações metafísicas. Neste horizonte de inteligibilidade a psicanálise não poderia, de fato,

adquirir status de ciência natural, pois muitos dos fenômenos sobre os quais se debruça escapam a um mecanicismo estrito.

Parece, contudo, que tal impossibilidade já denunciava uma deficiência que se situava mais do lado das ciências positivas (quer sejam naturais ou humanas) do que da psicanálise. Em linhas gerais, as lacunas que podemos identificar nos diferentes naturalismos do final do século XIX dizem respeito à renitente manutenção dos compromissos ontológicos herdados da tradição mecanicista racionalista no tratamento dos objetos de pesquisa e na sistematização teórica de suas relações causais. Em outras palavras, num momento em que o fazer científico identificava-se ao desenvolvimento de novas técnicas a partir da reprodução do método experimental, não havia uma problematização séria do próprio método e de sua fundamentação metafísica76. No campo das ciências humanas de tendência naturalista, em particular, estava ainda ausente a consideração do funcionamento do psíquico a partir da ideia de processo - e, em especial, daquele conjunto de processos passíveis de serem reunidos sob a égide da consciência.

De fato, foi o século XIX que praticamente identificou mecanicismo e ciência. Para a incipiente psicanálise dos anos 1890, a abordagem mecanicista, conquanto necessária, mostrara-se insuficiente ao se tratar de descrever o funcionamento de um organismo não mais inscrito dentro de um modelo maquinal. O paradigma maquinal dera lugar à noção de um organismo capaz não somente de receber estímulos externos, mas também de gerar estímulos – ao que Freud denominou “necessidade da vida”. Daí interessar ao psicanalista a forma como se dão os processos envolvidos na conservação deste organismo, atividades dinâmicas globais que poderiam envolver até a totalidade do sistema

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No resumo de seu curso do ano acadêmico de 1956-1957, Merleau-Ponty vai se referir a este estado de coisas que caracteriza o naturalismo do século XIX como “o abandono em que caiu a filosofia da Natureza”, considerando-o àquela altura um tema “inatual” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 91). Para o filósofo (que naquele momento segue a crítica bergsoniana à metafísica, segundo a qual a tradição ontológica da filosofia moderna compreende a Natureza sobre o fundo de um nada possível, recusando-lhe toda forma própria de negatividade, confundindo-a com o pensável e instaurando uma clivagem irredutível entre a essência e a existência), tal abandono da filosofia da Natureza embute em si uma “imagem fantástica do homem, do espírito e da história” como “pura negatividade”; já quanto à Natureza, o que estava em questão era fornecer-lhe um conceito não fosse “imaterialista”. A solução do problema ontológico, escreve, se não se esgota no tema da Natureza, tem nele um elemento primordial.

nervoso. Explicar tais processos implicaria mostrar o valor de sobrevivência que os mesmos teriam – o que inclui a descrição das quantidades presentes e seus efeitos.

No naturalismo psicológico de Freud vemos o grande cruzamento da física mecanicista com o paradigma adaptativo herdado do evolucionismo. Afinal, o psicanalista agrega ao conjunto de seu naturalismo o paradigma biológico-adaptativo herdado da teoria evolucionista. Este possibilitará a explicação de processos que não encontram sua fundamentação no modelo mecânico, introduzirá no Projeto a teleologia imposta pela necessidade da vida e, no limite, servirá de fator de distinção para o naturalismo freudiano no conjunto das Naturwissenschaften. Para Freud, se há qualquer tendência ou finalismo na Natureza, não é nenhum senão aquele imposto pela necessidade de autoconservação do organismo. Tal necessidade, porém, não exclui um determinismo dos processos, sejam eles conscientes ou inconscientes: nos primeiros, a introdução do eu como instância inibidora, e nos segundos, a postulação de princípios reguladores das atividades inconscientes são indícios da possibilidade de se encontrar regularidades determinadas passíveis de sistematização.

O correto estatuto deste naturalismo freudiano somente virá da consideração séria de tais paradigmas em concurso na sua obra, do esclarecimento dos motivos de sua adoção e da contemplação do alcance teórico e prático da teoria metapsicológica. Embora tenha sido o herdeiro da filosofia da Natureza pressuposta pela ciência do seu tempo, a notável virtude epistemológica de Freud parece ter sido a abertura para permitir que sua concepção de ciência fosse modificada conforme sua investigação avançava, sem prejuízo de sua convicção de que se mantinha dentro das fronteiras das ciências naturais.

Embora não exista nos textos freudianos algo que possa ser considerado uma filosofia da Natureza em sentido estrito, o psicanalista não deixou de esboçar contornos mais ou menos bem definidos da concepção particular da Natureza sobre a qual e a partir da qual trabalhava. Em primeiro lugar, Freud postula um alcance limitado para o realismo físico-químico na explicação dos fatos relacionados ao comportamento de um organismo vivo. Sua descrição dos processos em curso no aparelho psíquico, a partir de 1893, reflete não mais uma atitude tipicamente localizacionista acerca do funcionamento mental (como a de Broca ou de Charcot) e abandona gradativamente, a partir do Projeto, o paralelismo psicofísico aprendido de Hughlings-Jackson. Em outras palavras, Freud adota o paradigma organísmico em sua teoria psicológica, e o faz em detrimento da tradicional consideração de mente

e corpo como elementos substancialmente distintos e causalmente relacionados na fenomenologia psíquica. Para se compreender o arranjo do materialismo freudiano tampouco é suficiente dizer que Freud se interessou pelas fontes biológicas do psíquico como uma espécie de “biologista da mente”, ou subscrever a ideia de que o psíquico emerja do biológico. Postular uma dependência dos fenômenos psíquicos em relação aos fenômenos biológicos não explica necessariamente como o corpo e o espírito estão ligados, como eles definem-se mutuamente, e como se determinam reciprocamente a cada instante. Postular tal dependência parece, ao contrário, relegar os dois termos (corpo e espírito), definidos independentemente um do outro, a uma abstração antes que a uma história de definição comum. Importa compreender as relações que Freud estabelece entre psique e matéria a partir de uma abordagem emergentista metafisicamente monista mas com um conceito alargado de psiquismo – que inclui nele processos estocásticos inconscientes e conscientes de uma mesma modalidade existencial.

No capítulo seguinte descreveremos o histórico das relações que Merleau-Ponty estabelece com o freudismo desde a publicação de sua primeira tese até seu ingresso no Collège de France. Tratar-se-á de descrever os resultados do contato que Merleau-Ponty estabelece com a teoria freudiana. Mostraremos como o recurso à psicanálise que, para ele, poderia renovar a fenomenologia mediante a rearticulação dos domínios físico e psíquico, embutia uma crítica (de inspiração politzeriana) ao cientificismo datado que Freud teria transposto ao domínio da psique. Segundo Merleau-Ponty, o psicanalista não fora capaz de extrair as consequências ontológicas das noções que articulara.

3 FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE EM DIÁLOGO (1942-1952)

“O que nós gostaríamos de perguntar é se os conflitos dos quais ele (Freud) fala, os mecanismos psicológicos que ele descreve, a formação dos complexos, a repressão, a regressão, a resistência, a transferência, a compensação, e a sublimação exigem realmente o sistema de noções causais pelo qual ele os interpreta”.

(MERLEAU-PONTY, 1942/2009, p. 192) “O incêndio que figura no sonho não é, para o sonhador, uma maneira de disfarçar uma pulsão sexual sob um símbolo aceitável, é para o homem desperto que ele se torna um símbolo”.

(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 440) Há na filosofia de Merleau-Ponty um movimento que vai do projeto de restituição do mundo da percepção (presente em suas duas teses) aos temas da verdade e da comunicação com outrem, os quais figuram nos textos pós-1945. Tal passagem remonta já à obra Le métaphysique dans l'Homme (1947). Em 1952, no texto de candidatura ao Collège de France, o filósofo esclarece que seus “dois primeiros trabalhos procuravam restituir o mundo da percepção”, ao passo que, dali em diante, tratar-se-ia de mostrar “como a comunicação com outrem e o pensamento retomam e ultrapassam a percepção que nos iniciou na verdade” (MERLEAU-PONTY, 1962/2000, p. 37). Para Marcos José Müller-Granzotto, tal movimento é:

(...) menos o indício de um abandono das primeiras teses e mais a indicação de uma radicalização daquilo que, nelas, já estava em obra, a saber, a elaboração de uma nova ontologia que viesse sobrepujar o relativismo e o solipsismo resultantes, respectivamente, das incomensuráveis tentativas de objetivação da vida perceptiva (por parte das ciências) e das audaciosas tentativas de redução da vida perceptiva às representações do sujeito (por parte da filosofia) (MÜLLER- GRANZOTTO, 2005, p. 400).

Para além da descrição topológica de um mundo primeiro e fundante da verdade tardiamente capturada pela ciência e pela reflexão, era preciso mostrar a maneira pela qual esse mundo dar-se-ia a conhecer como origem daquela verdade – o que demandaria uma mudança de ponto de vista: um discurso que se ocupasse menos na descrição do que haveria de ser o mundo da percepção e privilegiasse a descrição da dinâmica por cujo meio um fundado pudesse exprimir, nele mesmo, algo como uma origem. Trata-se, como veremos, de uma migração de uma abordagem topológica (característica da SC e da PP) para uma abordagem dinâmica – migração que possibilitaria não só a dissolução da “má ambiguidade” acerca da qual escreve em RC-CF, mas também pode esclarecer a mudança de avaliação de conceitos psicanalíticos na passagem das primeiras para as últimas obras merleau-pontyanas.

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