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1.2 (Nova) definição programática

Parte 2 | A HABITAÇÃO ADAPTÁVEL E FLEXÍVEL 2.1 Introdução à adaptabilidade e flexibilidade

2.2 Indeterminação programática

Para desenvolver qualquer tipo de obra arquitectónica é sempre necessário um programa que determine a função dos espaços e o objectivo da construção. Neste sentido o programa surge como um instrumento operativo do projecto enquanto tradução interpretativa deste. Desta forma, exploramos agora a questão programática pois a sua evolução tem igual importância para o desenvolvimento da temática em causa.

76 Monteys, Xavier, Fuertes, Pere, Casa Collage – un ensayo sobre la arquitectura de la casa, Barcelona, Gustavo Gili, 2001, p. 50.

Na arquitectura residencial, o programa materializa-se desde o conjunto edificado à distribuição interna da célula. No que à habitação plurifamiliar diz respeito, o arquitecto trabalha com um programa fictício de necessidades, meramente baseado em estatísticas, fornecido por quem está a promover o respectivo projecto.77

Assim, muitas vezes, o programa final traduz-se numa homogeneização, fundamentado numa série de premissas e preconceitos sobre o modo e hábitos de viver das pessoas. Hertzberger fundamenta-o da seguinte forma: “Se na cidade funcional e na planta funcional

dos andares, a identidade daqueles que conceberam a ideia em primeiro lugar se perde sem deixar rastro, não se pode responsabilizar a uniformidade das unidades habitacionais, mas a maneira como elas são uniformes, ou seja, admitindo uma única função, em um conceito prescrito e rigorosamente padronizado. As casas e as cidades que estão sendo construídas actualmente não permitem e não permitirão absolutamente nenhuma mudança fundamental. Ao prescrever colectivamente onde as pessoas terão de colocar suas mesas e camas – geração após geração – nós estamos produzindo essa uniformidade. Esta cristalização colectiva da liberdade individual de acção atribui um objectivo predeterminado a cada lugar da casa e da cidade (...).”78 E Roger Diener ilustra este problema quando afirma

que “se fizermos um corte por um edifício habitacional numa qualquer cidade, verificaremos

a multiplicidade dos modos de vida, a diversidade das utilizações que partilham a mesma realidade estratificada, a homogeneidade dos dispositivos habitacionais é uma realidade obsoleta.”79 Revela-se, assim, importante pensar em atribuir ao âmbito programático uma

maior abertura à mudança.

Na vontade de contrariar esta realidade, parece ser fulcral projectar de tal modo que os edifícios se consigam adaptar à mudança, mas conservando sempre a sua identidade. Entender para quem se destinam as actividades, o espaço necessário ao seu desenvolvimento e as perspectivas e possibilidades de evolução são as premissas fundamentais de um programa. Todavia, não se pretende a personalização de uma habitação, exclusivamente, para um primeiro e determinado utilizador, mas a capacidade de se adequar a eventuais futuros e distintos utilizadores, na medida em que cada um poderá criar a identidade da sua própria casa. É nesta consciencialização da necessidade de mudança, e na incapacidade de prever todas as formas e modalidades de ocupação que surgem formas e estratégias que encaram a indeterminação como matéria criativa, isto é, onde a indeterminação pretende ser matéria enriquecedora para o desenvolvimento de metodologias que se desejam libertar da rigidez na apropriação do espaço.

77 Galfetti, Gustau Gili, Pisos Piloto = model apartmens : células domésticas experimentales = experiment domestic cells, Barcelona, Gustavo Gili, 1997, p. 8.

78 Hertzberger, Herman, Lições de Arquitectura, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 147.

79 Roger Diener cit. por Figueiredo, Bruno, Da (in)disposição do habitar, Porto, FAUP, 2000, p.77, Prova Final de Licenciatura em Arquitectura.

035. Estudos S.A.R., N.John Habraken, 1960. 036. Estudos, Herman Hertzberger

Trata-se, então, de potenciar as habitações de “incentivos”80, de características e condições

na capacidade de uma coisa se transformar noutra. Hertzberger esclarece que deverá ser através da capacidade imaginativa específica dos arquitectos que conseguiremos atingir os factores verdadeiramente básicos: o programa por trás do programa (de construção). Isto é, o grande papel do arquitecto será potenciar os edifícios e respectivas habitações de incentivos capazes de produzir associações para que diferentes interpretações sejam feitas por parte dos usuários, com o objectivo destes se poderem apropriar melhor das suas habitações consoante os seus estilos de vida. Ou seja, o arquitecto deve conceber o espaço sem coarctar a liberdade e autonomia do habitante. Assim, a capacidade de transformação que se pretende que o projecto ofereça tem como principais objectivos a resposta para os diferentes estados das necessidades contemporâneas (alterações no agregado familiar, mudança de estilo de vida, etc, conforme temos vindo a referir até aqui) e não meramente um artifício espacial, ou uma mais valia de uma estrutura arquitectónica; possibilitar uma maior identificação do usuário com a sua própria casa; e possibilitar uma maior resposta à instabilidade programática que se faz sentir pelas diferentes necessidades e exigências.

Assim, a abordagem programática que aqui pretendemos explorar baseia-se apenas numa visão mediadora do arquitecto entre espaço e ocupação. A questão deve focar-se no modo como o arquitecto retira informação do programa, e qual a importância atribuída a essa abstracção de eventos anunciados antecipadamente. Na dialéctica defendida por B. Tshumi: “um programa arquitectónico é uma lista de utilidades necessárias e suas relações,

mas não sugere nem combinações nem proporções.”81 Ora, se o programa denota um

conjunto de utilidades e ocupações, qual o tipo de relação que o programa estabelece com o espaço em que aquelas ocorrem? Nesta possível relação de mediador, até que ponto o programa rege a formalização e organização espacial? As deduções que podemos tirar destas questões passam pela validação do programa no processo projectual. É porém evidente que a discussão sobre as transformações no modo de habitar e a interpretação dos programas se encontram interligadas.

A questão do programa como “transcrição” de actividades/usos leva-nos a questionar o seu papel na definição espacial do ambiente habitacional. Para Tschumi o problema encontra-se na relação entre uma listagem abstracta de necessidades e intenções – o programa – e a complexidade por detrás dos modos de ocupação – o uso. Ao revelar a redutibilidade da descrição da realidade alcançada pelo programa, Tschumi propõe desenvolver abrangentes configurações espaciais, livres de uma interpretação rígida e consciente da ocorrência de eventos indeterminados. O programa deve ser assim entendido como esquema de apoio.

80 conceito desenvolvido por Hertzberger em Hertzberger, Herman, Lições de Arquitectura, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 164.

Muitas das actividades que ocorrem nas habitações deixaram de se relacionar com lugares específicos e especializados.82 E talvez possamos questionar a real utilidade de muitos

dos espaços que, referidos durante a elaboração de um programa habitacional, são normalmente desejáveis, pois tem-se vindo a assistir a uma maior emancipação do espaço em relação à sua suposta ocupação. Neste contexto, a especialização de espaços tende, assim, a ser posta em causa. “Poderíamos assegurar que, quanto maior é a especialização

dos compartimentos da casa, e quanto mais compartimentos indefinidos desapareceram, maior foi a perda de flexibilidade”.83

Assim, tal como Hertzberger propõe, é necessário uma revisão a certos preceitos e preconceitos do processo projectual no debate quanto à instabilidade programática: “Se

queremos responder à multiplicidade na qual a sociedade se manifesta, devemos libertar a forma dos grilhões dos significados cristalizados. Devemos procurar continuamente as formas arquetípicas que, pelo facto de poderem ser associados a múltiplos significados, são capazes não só de absorver mas também de gerar um programa. Forma e programa produzem-se mutuamente.”84

Acreditamos, assim, na essencialidade da questão programática como motor de evolução. A questão principal surge na qualidade e riqueza dos espaços projectados pelo arquitecto, no pensamento que põe e no que diz, excluindo ou potenciando diversas hipóteses, deixando também espaço para a interpretação. Parece-nos, portanto, que estas estratégias vêm da capacidade de dotar a casa de diferentes qualidades espaciais e potenciar novas possibilidades de combinação para que cada pessoa possa decidir a qualidade e distribuição espacial que prefere para a função desejada. Estratégias que apenas poderão ser aplicadas se consequentes do programa e tidas em conta aquando da fase de projecto, atribuindo à habitação uma maior capacidade de adaptação e assim uma maior longevidade.