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Indivíduo-sociedade: de fora para dentro

A preocupação com a questão da relação indivíduo-sociedade, ou, dito de outro modo, com a forma como o meio social nos faz humanos, está presente de modo intenso em todas as categorias que serão discutidas neste capítulo a partir de Lev Vigotski. Destacamos aqui as reflexões em que ele a apresenta de modo mais direto.

O primeiro e mais fundamental pressuposto é que a lei geral da relação entre mundo externo e mundo interno é: todas as funções psicológicas foram sociais, ou seja, foram relação entre duas pessoas, antes de se tornar função (VIGOTSKI, 2000). Para olhar por essa ótica é preciso entender a metodologia que ele adota, a dialética.

Em estudo de caráter mais metodológico sobre as relações indivíduo-sociedade, Vigotski (2004) defende a ideia de que o que muda com o aprendizado e a sociabilidade não são as funções psicológicas ou sua estrutura, mas sim as relações, o que ele chama de nexos das funções entre si, “de maneira que surgem novos agrupamentos desconhecidos no nível anterior” (p.105). A dinâmica dessas funções, sempre novas e mutáveis, compõe o chamado sistema psicológico.

Para discutir o assunto, o autor parte do estudo da sensório-motricidade e percepção, como caminho para revelar a dinâmica do sistema psicológico. Os processos referidos são complexos e podem, em determinadas situações, ser independentes uns dos outros ou conectados, dependendo da situação particular vivida. O que os caracteriza não são suas constituições iniciais e sim suas novas e complicadas sínteses e conexões com as outras funções e com o todo da personalidade. Estas sínteses só são possíveis a partir da interação, das trocas ativas, com o meio social.

Para tratar do conteúdo dessa síntese de funções, Vigotski discute a formação de conceitos e reflete sobre os sentimentos. Os conceitos, segundo a psicologia empírica, foram explicados a partir de uma função parcial: a abstração, a atenção, etc., e a lógica formal considerava o conceito como um conjunto de traços gerais do objeto. Vigotski traz a ideia de que o conceito, seguindo o método dialético, se torna cada vez mais amplo, pois passa a se referir a um número cada vez maior de objetos, enriquecendo seu conteúdo.

[...] Dois pontos chamam nossa atenção. Em primeiro lugar, o conceito não consiste na fotografia coletiva, nem depende de que se apaguem os traços individuais do objeto, mas no fato de que o conhecemos em suas relações, em suas conexões, e, em segundo lugar, no conceito o objeto não é uma imagem modificada mas, como mostram as investigações psicológicas atuais, a predisposição a toda uma série de apreciações. “Quando me dizem ‘mamífero’ – pergunta um dos psicólogos –, a que corresponde isso psicologicamente?” Isso equivale à possibilidade de desenvolver o pensamento e, em última instância, a uma concepção do mundo. Porque encontrar o lugar do mamífero no reino animal, o lugar deste último na natureza, constitui uma verdadeira concepção de mundo. (VIGOTSKI, 2004, p.121).

O exemplo acima quer demonstrar que mesmo quando se opera com um conceito isolado, o fazemos em relação com um conjunto muito maior do nosso sistema psicológico, da nossa história pessoal. E na maneira de pensar, seguindo as mesmas complexas premissas, Vigotski inclui os sentimentos, que também existem em relação. O autor explica que não sentimos “puramente”, mas percebendo o sentimento de determinada forma, seja raiva, ciúme ou alegria. Nomear um sentimento faz com que ele varie, seja percebido de diferentes maneiras, pois o conceito mantém relação com o pensamento e suas conexões conceituais.

Já dissemos que, como expressava corretamente Spinoza, o conhecimento de nosso afeto altera este, transformando-o de um estado passivo em outro ativo. O fato de eu pensar coisas que estão fora de mim não altera nada nelas, ao passo que pensar nos afetos, situando-os em outras relações com meu intelecto e outras instâncias, altera muito minha vida psíquica. Em termos simples, nossos afetos atuam num complicado sistema com nossos conceitos e quem não souber que os ciúmes de uma pessoa relacionada com os conceitos maometanos da fidelidade da mulher são diferentes dos de outra relacionada com um sistema de conceitos opostos sobre a mesma coisa, não compreende que esse sentimento é histórico, que de fato se altera

em meios ideológicos e psicológicos distintos apesar de que nele reste sem dúvida um certo radical biológico, em virtude do qual surge essa emoção. (VIGOTSKI, 2004, p.127).

Todas as reflexões de Vigotski são pautadas pelo pressuposto sócio-histórico do psiquismo, que o leva a sugerir que se deve substituir o termo “subjetividade” por “intersubjetividade”, pois é preciso analisar em movimento e com suas contradições o que constitui o psiquismo.

Um exemplo que o autor traz em dois textos (2004, 2009) e nos pareceu bastante significativo para explicar a sua concepção é o sonho do Cafre, a partir das observações de L. Levi-Bruhl, 1930. O Cafre buscará e verá respostas para suas questões em sonhos, que são entendidos por Vigotski como a sua maneira de pensar. Mesmo que as leis dos sonhos sejam as mesmas para nós e para Cafre, o que muda não é a função psicológica em si, mas como elas são distribuídas. E, segundo o autor, não foi Cafre que buscou individualmente essa maneira de resolver seus difíceis problemas, pois “o seu conceito de sonho está integrado ao sistema conceitual da tribo a que pertence” (VIGOTSKI, 2004, p.116). Temos, pois, um claro mecanismo psicológico produzido socialmente, a partir do valor que se dá a tal sistema.

Decorrente dessa concepção ele cria três categorias importantes para a presente pesquisa, pois têm o potencial de guardar a dialética subjetividade/objetividade e singular/universal, são elas: vivência, sentido/significado e subtexto.

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