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Individuação/Autonomização no plano Coletivo

De saída, Simondon (2003) afasta-se de uma forma de pensamento que parte da constatação da existência de indivíduos enquanto matérias dadas de uma vez por todas. Ao invés disso, ele propõe uma noção de individuação que apreende o indivíduo, por um lado, como uma fase do ser que supõe uma realidade pré-individual anterior e inesgotável em relação a ele; e, por outro lado, o que a individuação faz aparecer é não só o indivíduo, mas também o par indivíduo-meio31. Sendo assim, a individuação deve ser considerada como resolução parcial e relativa de um sistema tenso que concebe o ser como uma unidade transdutora32, que se manifesta em um sistema contendo potenciais e encerrando certa incompatibilidade (feita tanto de forças de tensão quanto de impossibilidade de uma interação entre termos extremos das dimensões) em relação a si própria.

31) Ao conceito de Meio pode-se distinguir aqui dois sentidos.O primeiro é o sentido geométrico que permite ao pensamento pensar o movimento se fazendo fora dos estados de equilíbrio. Designa um espaço no qual “se passa o gesto que transforma em conjunto as duas direções simétricas que se originam no centro”. O segundo sentido é o de meio ecológico – meio associado – é a idéia de meio como reserva, resíduo ou excesso, decorre do fato de que a individuação não esgota o potencial de realidade pré-individual, e este permanece acoplado ao indivíduo, forçando novas individuações. . Neste trabalho, tal qual Escóssia, nos utilizamos, distinguindo, mas sem separar, esses dois sentidos, ou seja, ambos os sentidos se incluem no que Simondon afirma como meio. (ESCÓSSIA, 2008)

32) Esta refere-se a uma operação física, biológica, mental, social, pela qual uma atividade se propaga gradativamente no interior de um domínio, fundando esta propagação sobre uma estruturação do domínio operada de região em região: cada região da estrutura constituída serve de princípio de constituição à região seguinte, de modo que uma modificação se estende progressivamente ao mesmo tempo que esta operação estruturante. A operação transdutora é uma individuação em progresso.É a aparição correlativa de dimensões e de estruturas em um ser e é mais que uma unidade e/ou uma identidade, e que ainda não se defasou em relação a si próprio em múltiplas dimensões, manifestando a gênese de um tecido de relações fundadas sobre o ser – o que define a maneira de progredir da invenção. (SIMONDON, 2003)

E aqui a gênese do ser passa a designar a aparição de fases no ser, sendo, ela mesma, esta própria operação enquanto se efetua. E para que isso ocorra, não podemos pensar a individuação a partir da clássica noção de equilíbrio estável – no qual todas as transformações possíveis foram realizadas e não existe mais nenhuma força capaz de transformar novamente o sistema, já que o mesmo atingiu o seu mais baixo nível energético potencial – mas sim a partir de um sistema de equilíbrio metaestável – no qual a individuação é uma resolução que surge no seio de um sistema rico em potenciais de realidades díspares, entre as quais não existe ainda comunicação interativa. Equilíbrio que implica, portanto, um estado de dissimetria, na medida em que, nele, a diferença existe como energia potencial repartida em tais ou quais limites. É possível ainda supor que a individuação não esgota a realidade pré- individual, posto que o regime metaestável não só é mantido pelo indivíduo constituído, como este último também transporta consigo certa carga associada de realidade pré-individual, animada por todos os potenciais que a caracterizam e que é a fonte de estados metaestáveis futuros de onde poderão sair novas individuações. (ESCÓSSIA, 2008)

Processo este que faz do indivíduo um indivíduo associado ao grupo pela realidade pré-individual que traz consigo e que, reunida à de outros indivíduos, se individua em unidade coletiva correspondente à noção de coletivo transindividual. Este aparece então, como o cruzamento de uma dupla relação: a relação ao mundo e aos outros e a relação a si. Sendo que devemos entender relação como regime recíproco de troca de informação e de causalidade em um sistema que se individua. Relação é ressonância interna do ser individuado ao mesmo tempo em que exprime a individuação. A individuação do coletivo pode ser traduzida como relação entre os seres, somente na medida em que os seres são concebidos segundo esse regime de ressonância interna. Por isso, a relação transindividual é relação de relações e não de indivíduos. (ESCÓSSIA, 2009a, 2009b).

Pode-se então dizer que a relação que se estabelece de si para consigo mesmo se efetua inicialmente sob a forma de uma tensão que coloca o indivíduo em relação a algo que ele carrega consigo, mas que é experimentado como um problema que lhe é exterior. E aqui a categoria do “problemático33” ganha grande importância, justamente na medida em que ela

33) Refere-se ao plano onde as práticas de problematização se dão. Todo problema tem necessariamente uma dupla origem: por um lado, há uma exigência de invenção, uma diferença ou um excesso que quer passar; por outro lado, um obstáculo a superar, uma resistência ao movimento ou uma condição com a qual se deve contar. O problema marca a inadequação da coisa àquilo que está em excesso nela, exprime uma espécie de tensão entre

designa um momento do ser onde a individuação é a organização de uma possível resolução para um sistema objetivamente problemático. Por fim, trata-se de saber como efetivamente os processos de individuação produzem indivíduos, ou seja, como o indivíduo se individua, posto que Simondon sustenta a existência de uma dimensão pré-individual – da ordem do coletivo transindividual e situada num plano de forças – como condição prévia de todo processo de individuação.

Por outro lado, cabe frisar que o acesso a esse coletivo não é garantido pelo simples pertencimento a uma comunidade social, mas pela parte pré-individual existente no resultado do processo no qual emergem indivíduo e meio. É ela que faz tender ao coletivo, como forma de resolução de uma problemática para além dele. E aqui é importante destacar dois esclarecimentos que Escóssia (2008) nos aponta: 1) essa tendência ao coletivo não é natural, visto que implica uma atividade na qual o indivíduo deve passar por uma experiência para acessar o transindividual – experiência esta que paradoxalmente adquire um estatuto de solidão; esta apresentada como um meio e condição de auto-constituição, como a entrada num plano relacional distinto do plano interindividual; 2) este plano – o interindividual – não deve ser encarado como um simples obstáculo à efetivação da pré-individualidade residual, visto que é, paradoxalmente, ele que permite essa efetivação, pois todo processo de auto- constituição emerge forçosamente sobre o fundo das relações interindividuais que constituem nossa existência social. Na própria existência social, podem surgir “acontecimentos excepcionais” capazes de suspender a modalidade funcional das relações interindividuais. (ESCÓSSIA, 2008)

o ser e o devir do ser. Em outras palavras, um problema se inventa através de uma mudança que se exprime por uma desproporção entre aquilo que se é e aquilo que se está em via de se tornar. Assim, um problema verdadeiro cria mais do que simplesmente um novo modo de pensar: ele engendra um novo modo de existir, uma nova forma de subjetividade. (EIRADO, A; PASSOS, E., 2004).

4.3 – O ESTUDO DA VIDA EM MATURANA, VARELA E