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Individualidade e comunidade articuladas no espaço da aplicação inovadora das solidariedades

A SOLIDARIEDADE COMO ASPECTO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA

3.4 Individualidade e comunidade articuladas no espaço da aplicação inovadora das solidariedades

Como visto no tópico anterior é possível notar que em Gadamer há uma preocupação com o que seja tomado como vital no sentido da forma de organizar a vida comunitária, de modo que fica clara em sua práxis hermenêutica que cada indivíduo deve reconhecer tal prática de vida (comum) como algo que lhe é crucial à sua sobrevivência no mundo. Neste sentido, conforme Batista (2007), “o que é comum é o que está sempre atuante como parâmetro e condição para a vida humana. Esta condição comunitária e participativa própria das sociedades humanas, indica, em última instância, o nascimento do conceito de razão” 339. Frente a isto se pode entender que há necessidade de uma razão pela qual se possa ter algo que seja tomado como comum, possibilitando que os cidadãos se identifiquem com determinado desejo deliberado racionalmente a partir do uso da liberdade em favor de uma identidade comum. Aqui cabe ressaltar que, nas palavras de Gadamer (1983),

Estamos ainda muito distantes de ter alcançado uma consciência comum – no sentido de que o que está em jogo é o destino de todos sobre esta terra em que ninguém pode sobreviver, à semelhança do que acontece com a insensata utilização de armas de destruição atômica – já que a humanidade, ao longo de, talvez, muitas e muitas crises e muitas experiências dolorosas não consegue encontrar – por necessidade – uma nova solidariedade. Ninguém sabe quanto tempo ainda nos resta 340.

O contexto moderno elencado por Gadamer para se referir a esta necessidade de se alcançar uma nova solidariedade parte dos mais diversos avanços técnico-científicos, que tem ocasionado cada vez mais uma falta de consciência com relação ao que realmente deve ser tomado como prioridade na vida dos seres humanos na atualidade, a saber, uma consciência

comum. Esta ainda estaria às escuras por parte da humanidade, deixando de olhar atentamente

para os problemas que assolam e ameaçam até mesmo a sobrevivência dos seres vivos em geral.

339 BATISTA, 2007, p. 72. 340 GADAMER, 1983, p. 55.

Como alternativa para resolução da cegueira humana frente aos mais distintos problemas, que acarretam nosso planeta e que consequentemente podem levar à exterminação dos seres humanos, Gadamer aponta a necessidade de que se despertem os humanos para a consciência de solidariedade. Isso proporcionaria o surgimento de uma humanidade que possa começar a se entender, mesmo que lentamente, como seres que estão vinculados mutuamente à preservação e manutenção da própria vida, bem como das futuras gerações no mesmo espaço comum, o planeta. E assim, nosso hermenêuta tem esperança de que se possa experimentar, com as futuras sociedades, este despertar para uma consciência que se voltem a “novas solidariedades conjuntas e obrigatórias, que façam falar a razão prática” 341, de modo que a solidariedade, na visão gadameriana, é condição essencial e base da razão social em máxima abrangência, pois a práxis é entendida como o comportar-se e agir com solidariedade.

É basilar à práxis a existência desta consciência comum como necessidade primária para toda e qualquer ação do ser humano diante de sua pertença a um mundo compartilhado, que acaba fazendo exigências de engajamento dos cidadãos em sua vivência no próprio campo da vida em comum, uma vez que a sobrevivência humana depende da preservação do planeta, no que se refere aos aspectos voltados a problemas ecológicos.

A discussão sobre a questão da consciência de solidariedades em Gadamer não se restringe às questões ecológicas, mas que pode ser ampliada às mais diversas situações relacionadas à vida do ser humano, tais como as que se voltam aos aspectos socioculturais e sócio-políticos.

Neste sentido, notando esta visão globalizante, que é característica da práxis hermenêutica de Gadamer, o mesmo defende a noção de responsabilidade que é própria de cada participante da comunidade, uma vez que, em suas palavras, “já que todos nós somos cidadãos políticos e devemos participar na responsabilidade dos acontecimentos (...) significa a responsabilidade que tem cada cidadão para com o bem comum” 342. Isto Gadamer escreve ao analisar o papel dos cientistas na política frente a um contexto de sociedades burocráticas, tecnológicas e ao mesmo tempo especializadas.

Cabe aqui ressaltar que, mesmo diante dos atuais tipos de sociedades encontradas na reflexão de Gadamer, este nota que pode ser dado maior enfoque nas questões relacionadas à prática das solidariedades, uma vez que, nas palavras de Walhof (2006), “Gadamer acredita que, mesmo em um mercado altamente especializado e sociedade burocratizada, é possível fortalecer as solidariedades existentes. Na ausência de fontes tradicionais de unidade, este

341 GADAMER, 1983, p. 56. 342 GADAMER, 1990, p. 142.

fortalecimento deve ocorrer politicamente” 343, fazendo um apelo a que os políticos não visem a olhar as situações populares apenas e somente em período de eleições, tendo como objetivos meramente se promoverem para se colocarem ou permanecerem no poder, mas que possam efetivamente dar mais visibilidade às reais situações em que se encontram questões direcionadas para a resolução de problemas que podem afetar, além de nós mesmos até as gerações futuras, sob as quais somos responsáveis. Neste sentido, como nos alerta Gadamer, é preciso que exista preocupação “efetivamente com as coisas em comum que nos unem a todos na responsabilidade de nosso futuro”344 em seus mais diversos aspectos.

Assim, Gadamer nos chama atenção para que os políticos possam de certa maneira, se tornarem atuantes no sentido de proporem esta solidariedade entre o eleitorado, uma vez constatada nas sociedades democráticas – entendidas como voltadas ao princípio “de uma ação conjunta” 345 na resolução de problemas relacionados ao bem estar comum, a ausência ou pouca visibilidade da prática solidária. Neste sentido, havendo esta prática da solidariedade nas atuais democracias representativas, a ação conjunta acaba mostrando que a vivência humana estaria, como defende Robert Sullivan (1989), “certamente na direção da comunidade política bem integrada” 346, onde cada um está fazendo sua parte como ser responsável que se torna pela boa sociedade na qual pensamento e ações estejam harmoniosamente relacionadas. Deste modo, como menciona Gadamer (2002), na atualidade há uma preocupação quanto à “democracia representativa, por que parece que nosso eleitorado é pouco solidário. Temos motivos para reconhecer que ainda é verdade que as organizações políticas como tais devem produzir uma consciência solidária” 347.

Diante deste contexto, a solidariedade, tomada como esta consciência comum, aquilo que nos pode unir, que Gadamer defende, acaba sendo deixada de lado, não havendo esta preocupação dos indivíduos, enquanto cidadãos componentes de uma sociedade. Nesta tentativa de trazer às sociedades democráticas esta reflexão sobre como deve se conduzir a razão social com relação ao bem comum, nosso filósofo ainda acrescenta que “temos nos preocupado muito menos do que devíamos em manter despertada a consciência de nossa própria responsabilidade como cidadãos e membros da sociedade” 348. Mesmo pertencendo a uma época histórica já tão avançada quanto aos mais diversos conhecimentos e progressos 343 WALHOF, 2006, p. 571-572. 344 GADAMER, 1990, p. 144. 345 GADAMER, 2002, p. 87. 346 SULLIVAN, 1989, p. 181. 347 GADAMER, 2002, p. 86. 348 GADAMER, 1990, p. 142.

técnico-científicos ainda não se tem esta devida preocupação com a noção de responsabilidade que compete a cada pessoa em seu espaço de vida compartilhada.

Aqui é possível perceber a tamanha importância que Gadamer dá para o papel que o indivíduo deve exercer dentro da sociedade enquanto cidadão frente a seus direitos e também deveres, consciente de que existe algo que deve nos unir como cidadãos. Com isto, nas palavras de Vattimo & Zabala (2003), “a identificação da ação moral como algo de interesse é fundamentalmente uma questão de sociabilidade (e, portanto, de negociação, consenso e compartilhamento). No plano político, a deflação da ética ao consenso e ao compartilhamento está longe de ser uma questão de pouca importância349”. Assim, não quer dizer que simplesmente um indivíduo tenha determinada função a ser cumprida num sistema burocrático trabalhista, mas como um cidadão, que tem senso de responsabilidade, deve partir da deliberação para com o bem de todos, enquanto participante de uma vida comunitária. Com isto, como é ressaltado por Gadamer (2002), em seu texto Amizade e Solidariedade,

Enfim, o que quero colocar como de expressiva relevância é que voltemos nossa atenção nisto, que a verdadeira solidariedade deve ser plenamente consciente; de outro modo não terá êxito (...). É necessário ter claro que a verdadeira solidariedade depende dos indivíduos que se comprometem e dão a cara 350.

Nesta citação acima vemos a necessidade de que na atualidade se tenha uma maior atenção no concernente ao que Gadamer tem denominado como esta consciência comum, ou seja, aquilo que nos une uns aos outros em prol de algo que tenha como objetivo essencial a resolução de problemas que podem consequentemente comprometer até mesmo a manutenção da vida humana. Daí ressaltar o papel da consciência individual de cada cidadão, bem como a solidariedade verdadeira sendo pautada, conforme Gadamer, na vivência dos compromissos por parte de cada ser humano. Assim, pode ser notada a dependência de que, para serem consolidadas as mais diversas solidariedades na contemporaneidade, se exige dos indivíduos, nesta relação intersubjetiva, o dar a cara, ou seja, este mostrar-se compromissado com as devidas responsabilidades em sua efetividade a partir deste conhecer, ou melhor, “descobrir e dar voz às coisas que temos em comum” 351. Deste modo, podemos, então, ser realmente conscientes das solidariedades já existentes, partindo da pressuposição gadameriana de que os componentes de qualquer comunidade política têm certas coisas comuns necessariamente,

349 VATTIMO, G. & ZABALA, S., 2003, p. 403. 350 GADAMER, 2002, p. 87.

uma vez que são pertencentes a uma tradição cultural e contexto histórico que os fazem seres de uma dada vida em comum.

É possível acrescentar que na visão de Gadamer as solidariedades, enquanto existentes em cada contexto comunitário não teriam necessidade de serem construídas ou inventadas, mas apenas percebidas – embora sendo difíceis estas percepções frente ao contexto das sociedades industrializadas atualmente – por cada ser humano, de maneira que possam dar abertura a outras solidariedades, tendo em vista que a partir do argumento de que “uma solidariedade por necessidade pode fazer com que se manifestem outras solidariedades” 352, sendo estas encaradas como verdadeiros desafios no sentido de torná-las conscientes nas democracias modernas. Como argumenta Walhof (2017), numa tentativa de observar melhor a expansão da consciência das solidariedades proposta por Gadamer,

[...] ele aconselha seu público a recordar suas próprias experiências de solidariedade, começando com aquelas entre familiares e trabalhando a partir daí para experiências com amigos, colegas e a comunidade acadêmica em forma mais ampla. Essas formas de solidariedade, Gadamer diz, servem de ‘precursores’ para formas mais amplas que incluem concidadãos e potencialmente até mesmo ‘o grande universo da humanidade’ 353.

Neste sentido, seguindo a argumentação proposta por Gadamer, é notável que esta percepção das solidariedades se deem a partir de âmbitos mais particulares de modo que possam ir se ampliando, ao ponto de chegar até mesmo a uma esfera em que possam ser abrangidas a todas as situações, desde as do próprio ser humano, aos demais seres e chegar à dimensão planetária. Isto se referindo a uma visão mais global de preservação da própria vida no planeta com medidas que visem à proteção ecológica.

Entretanto, reforçando a ideia acima discutida por Gadamer no que tange às responsabilidades de todos os cidadãos, em seu texto Os limites do perito, se traz à reflexão que – embora na atual conjuntura de sociedades burocratas e especializadas em seus afazeres e que, consequentemente, acaba marginalizando o senso de responsabilidades frente suas mais diferentes decisões pautadas no uso ciência como única forma de considerar algo como conhecimento válido independente das consequências que pode trazer à humanidade – “só existe uma possibilidade do emprego responsável dos resultados, cuja responsabilidade recairá sobre a sociedade em seu conjunto e sobre sua organização política” 354.

352 GADAMER, 1983, p. 55. 353 WALHOF, 2017, p. 109-110. 354 GADAMER, 1990, p. 143.

É possível ver na reflexão gadameriana a respeito das solidariedades, tão necessárias na atualidade, que o papel das comunidades se faz de extrema importância neste entrelace de tomada de consciência comum por parte dos indivíduos, pois é nas mesmas, quaisquer que sejam elas, que se encontram os pontos comuns que ligam os cidadãos a ela pertencentes, de modo a haver este vínculo entre solidariedade e vida prática na hermenêutica de Gadamer, fazendo com que se mostre mais claramente esta dimensão política em seu desenvolvimento filosófico. A práxis hermenêutica de Gadamer é entendida como uma visão na qual somos levadas a fazer escolhas tendo em vista sempre ao bem comum, ou seja, tendo como objetivo principal agir com solidariedade na sociedade com base naquilo que fundamenta a vida em convivência harmônica entre todos os pertencentes à comunidade política. Como ressalta Walhof (2017),

[...] as escolhas sobre o bem que fazemos são moldadas por nossos preconceitos, os compromissos antecipatórios que estão nas tradições que habitamos, mas essas escolhas também são um meio pelo qual esses preconceitos são chamados e revisados e, portanto, também um meio nos quais nossas identidades individuais e coletivas são re-narradas. Para variar em graus, em outras palavras, as escolhas feitas sobre o bem são feitas em nosso nome e em nome do coletivo 355.

A partir da citação acima, podemos notar o quanto são importantes as dimensões da individualidade e da comunidade/sociedade, que fazem parte de um contexto histórico e cultural. Neste sentido, nota-se que estas características têm influência nas decisões que devem ser feitas pelos integrantes desta coletividade, não podendo deixar de lado os preconceitos, bem como as tradições de determinada vida compartilhada frente aos compromissos assumidos para as melhorias da coletividade. Estas escolhas sempre devem ser feitas levando em consideração o bem comum, uma vez que a prática da solidariedade hoje “certamente exige de nós toda a boa vontade com a qual estejamos em condições de contribuir” 356.

Em Gadamer cabe serem feitas algumas observações com relação à compreensão de solidariedade, para que a mesma não venha a ser confundida com outras ações, a saber, ser vista como mero interesse político, sem considerar a coletividade ou mesmo como de cunho universal, não levando em conta os contextos nos quais seja vivenciada.

Quanto ao primeiro aspecto, para Gadamer, a solidariedade não pode ser confundida com o mero compartilhamento de interesses políticos, pois se tornaria muito restrita esta visão frente à complexidade de nossa vida compartilhada. Isto por que temos a capacidade de tornar

355 WALHOF, 2017, p. 110-111. 356 GADAMER, 2002, p. 88.

alguns de nossos interesses em algo possivelmente a ser dado às outras consciências para serem compartilhados. Entretanto, isto ocasionaria perda de valores realmente relacionados às comunidades políticas, tendo em vista que supervalorizaria apenas osinteresses subjetivos em detrimento aos da coletividade em sua complexidade. Já no que concerne ao segundo aspecto, deve-se ter cautela quanto ao entendimento de solidariedade para que a mesma não seja comparada às solidariedades universais, pois, conforme Walhof (2017),

[...] em vez de apelar para fontes universais de solidariedade pré-existentes baseadas numa humanidade comum ou na capacidade de racionalidade, as solidariedades de Gadamer se destacam para fazer coisas que ligam as pessoas umas às outras em determinado momento histórico e em contextos culturais e sociais específicos 357.

Neste sentido, para Gadamer, são de elevada importância os aspectos voltados à dimensão que une as pessoas em determinado tempo histórico e seus contextos tanto culturais quanto sociais em suas peculiaridades, e não em uma visão que dê ênfase ao atomismo humano, não considerando sua própria narrativa histórica.

Como visto em nosso primeiro capítulo, quando tocamos precisamente na tópica concernente à amizade enquanto forte elemento que constitui relações de afinidades, servindo como fundamento e associada à formação de solidariedades na sociedade, é possível recordar que neste aspecto se tem a real importância da dimensão política em Gadamer, tendo em vista a tentativa de dar consciência à formação de um mundo que, em seus aspectos político e social, tenha uma visão mais abrangente e compartilhada. Isto no sentido de não se restringir meramente ao ciclo de proximidade entre amigos, mas fundamentando-se no sentimento de solidariedade, que por sua vez, como já observado, está presente em todas as comunidades, pois estas têm sempre aspectos comuns que nos ligam uns aos outros.

Deste modo, pode-se dizer que Gadamer defende as solidariedades existentes nas comunidades e a política democrática com seu papel de ajudar a divulgá-las levando à consciência comum, levando em conta que amizade e solidariedade estão sempre interligadas, mesmo não sendo idênticas. Neste sentido, “como a amizade, a solidariedade tem a ver com essa dimensão das coisas que compartilhamos e em que nossa vida política depende em conjunto” 358, constituindo, então, nossa vida juntos.

Esta Solidariedade mencionada na hermenêutica gadameriana pode ser entendida na perspectiva de uma possibilidade do surgimento de decisões que sejam tomadas em comum acordo com todos, de modo que acabam sendo validadas pela comunidade em todos os

357 WALHOF, 2017, p. 111-112. 358 WALHOF, 2006, p. 584.

campos da vida dos cidadãos, seja na vida moral, política e social. Entretanto, nas sociedades com características burocráticas e tecnológicas, bem como dominada pelo anonimato, Gadamer chama atenção para que seja resgatada urgentemente, como tarefa política atual, a questão do desenvolvimento das relações de proximidade entre os cidadãos por meio da experiência dialógica, “onde a língua não é só a casa do ser, senão também a casa do ser humano, na qual vive, se instala, se encontra consigo mesmo, se encontra no Outro” 359, neste envolvimento nas mais diversas atividades que possibilitam este encontro sem intermediações com os outros e o mundo.

Como podemos perceber, em Gadamer, a solidariedade, em sua dependência das interações sociais e políticas, desenvolve uma essencial função enquanto meio de co- percepção recíproca, onde assim como na amizade, faz com que nas interações mostre o quanto temos nossas vidas interligadas através do dar-se a conhecer uns aos outros de modo mútuo, revelando muitas vezes a nós mesmos de maneiras anteriormente não reconhecidas. Deste modo, as solidariedades que surgem serão sempre particulares, pois dependerão sempre do contexto histórico e social em que estejam inseridas.

359 GADAMER, 1990, p. 156.