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INDIVIDUALIDADE SOBREPOSTA AO COLETIVO

5. ANÁLISE DA NARRATIVA NAS POESIAS DE CAZUZA

5.2 INDIVIDUALIDADE SOBREPOSTA AO COLETIVO

Ávidos por não querer nada que prenda nossas mãos, a afinidade, resultado de uma escolha, para manter-se viva e saudável precisa de cuidados, os mesmos que não se enquadram nos hábitos da líquida vida moderna, nem nas músicas “Filho Único,” “eu tento mudar / eu tento provar que me importo com os outros / mas é tudo mentira (tudo mentira) / estou na mais completa solidão / do ser que é amado e não ama / me ajude a conhecer a verdade / a respeitar meus irmãos / e a amar quem me ama” (Cazuza, 1989) e em “O que a gente quiser”, “diga o que faço / mas não faça o que eu digo / se eu estou por perto / isso é sinal de perigo / porque eu apronto e desapronto / e não passo recibo / choro, ressuscito / dou

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risada e vomito / passo pra outra / pro que der e vier” (Cazuza, 1983). Assim como a afinidade é conciliada pelos seres humanos, por eles mesmos pode ser desfeita, como se revela na letra de “Faz parte do meu show”, “confundo as tuas coxas / com as de outras moças / te mostro toda a dor” (Cazuza, 1988) e “Baby Suporte,” “amor escravo de nenhuma palavra / não era isso que você procurava / não viu no fundo da retina a mágoa / a luz confusa onde tudo é o nada” (Cazuza, 1984). Tecer redes é um trabalho tão exaustivo que se luta constantemente contra o impulso de liberdade, onde se está a procura de um caminho protegido dos vínculos, tal dinâmica se manifesta na letra de “Eu queria ter uma bomba”:

“solidão a dois de dia/ faz calor, depois faz frio/ você diz ‘já era’ e eu concordo contigo/ você sai de perto, eu penso em suicídio/ mas no fundo eu nem ligo / você sempre volta com as mesmas notícias / eu queria ter uma bomba / ...pra poder me livrar / ...das tuas frases feitas / pra poder te negar / bem no último instante / meu mundo que você não vê / meu sonho que você não crê” (Cazuza, 1984). Uma vez que para amar ao próximo é indispensável o amor-próprio, o mesmo torna- se um elemento irrefutável na formação do indivíduo contemporâneo, na composição de Cazuza tal temática se ilustra em “O assassinato da flor”, “flores são flores / colhidas sem dó / por alguém que ama / e não quer ficar só.” Um indivíduo só ama o outro porque há de ter algo em troca, que lhe trará autossatisfação, como em “Blues da Piedade”, “pra quem não sabe amar/ fica esperando/ alguém que caiba nos seu sonho / como varizes que vão aumentando / como insetos em volta da lâmpada / vamos pedir piedade / senhor, piedade / pra essa gente careta e covarde” (Cazuza, 1988) e “Não amo ninguém”, “se todo alguém que ama / ama pra ser correspondido / se todo alguém que eu amo / é como amar a lua inacessível / é que eu não amo ninguém, ninguém / eu não amo ninguém, parece incrível / não amo ninguém / e é só amor que eu respiro” (Cazuza, 1984).

No que concerne ao relacionamento puro, é uma dinâmica na qual ambos parceiros precisam ganhar alguma coisa com o relacionamento, sua característica principal é que este possa ser rompido a qualquer momento e por qualquer um deles, como acontece na letra de “Completamente Blue”, “você chega e sai e some / e eu te amo assim tão só / tão somente o teu segredo” (Cazuza, 1987) e “Carne de Pescoço”:

“andava tão calmo / dava pra desconfiar / levando a minha vida / sem me preocupar / você pintou / eu tava quieto no meu canto / curtiu com a minha cara / foi me provocando / achando que eu fosse / entrar no teu jogo / brincar de apaixonar / o coração de um bobo / depois tirar o corpo fora / pra variar / achando otário todo o cara / que quer te amar” (Cazuza, 1983)

À vista da falta de incondicionalidade do outro, o relacionamento precisa ser evitado para não surgir o sofrimento que acarreta, assim, a linguagem da poesia do Cazuza consegue exprimir esta dinâmica perfeitamente, em “Blues do Iniciante”, “eu traço tantos planos / brilhantes, antes / de te ganhar num salto / mortal, de iniciante / na pirraça de te ter / por

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enquanto, por enquanto” (Cazuza; Frejat; Guto Gofi; Dé; Mauricio Barros, 1983) e em “Guerra Civil”, “foram frases decoradas / tristes e sagradas / feito missas toda madrugada” (Cazuza, 1988)

Desta forma, direcionar sentimentos torna-se difícil, uma vez que pode-se ser romper os laços facilmente, mesmo sem a concordância do outro, assim, criam-se indivíduos incapazes de amar, mas que anelam não ficar sós, em “Mulher sem Razão” esta temática se expressa da seguinte forma:, “...parta, pegue um avião, reparta/ sonhar só não tá com nada / é uma festa na prisão”. O primordial a se entender na poesia de Cazuza, é que a experiencia individual não se importa com a reciprocidade, mas com a certeza que ele tem sobre ele mesmo, como em “Exagerado” “exagerado/ jogado aos seus pés/ eu sou mesmo exagerado/ adoro um amor inventado” (Cazuza, 1985)

5.3 O QUE É SER PLENAMENTE "FELIZ" E O QUE É "DOR" NAS LETRAS DO CAZUZA?

Cazuza se caracterizava por ser uma pessoa intensa e explosiva, entregava-se as alegrias e as dores da vida, estas mesmas peculiaridades encontram-se na sua poesia. O mesmo se reflete no que Bauman expõe sobre desfrutar do mais doce do amor, mas precisar, também, passar pelas amarguras que ele envolve, o que implica, ao mesmo tempo, se amarrar a algo que não tem previsibilidade para o futuro, como em “O assassinato da flor”, “é alguém com flores e eu já fico a mil / morro de dores / da dor mais vil” (Cazuza, 1988); “Desastre Mental” “Baby, eu lamento / mas não tenho tempo / pra sentir as tuas dores / as minhas eu já não aguento / minha vista torta / já não se importa / não me conte um bando de mentiras /...não é que eu não ligue / de correr o perigo / de nunca te achar direito / eu quero de qualquer jeito / eu tenho que me salvar” (Cazuza, 1985)

A falta de compromisso, causada pelas inseguranças e os medos que a dinâmica contemporânea favorece, se mostra em frases de canções como “Exagerado”, “eu nunca mais vou respirar / se você não me notar / eu posso até morrer de fome / se você não me amar”; e; Assim, evitam-se as ameaças dos relacionamentos a longo prazo, “aqui ninguém entra / daqui ninguém sai / somos sobreviventes / de um desastre mental”.

Uma vez que não existe segurança nos relacionamentos, fadados ao fracasso, a dor é evitada a qualquer custo, assim como em “Eu queria ter uma bomba”, “eu queria ter uma bomba / um flit paralisante qualquer / pra poder me livrar / do prático efeito / das tuas frases feitas / das tuas noites perfeitas”; “Você se parece com todo mundo”, “é, eu te amei demais / eu sofri pra burro” (Cazuza, 1984); e “Completamente Blue,” “como é estranha a natureza /

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morta dos que não têm dor / como é estéril a certeza / de quem vive sem amor, sem amor” (Cazuza,1987)

Da mesma forma se encontra na sua poesia os encontros sexuais que servem só para o prazer, para a alegria momentânea do encontro dos corpos, um tipo de felicidade garantida: “Bicho Humano”, “dance / eu quero que você me canse / até o sol raiar / canse / eu quero ver você em transe / me chamar, me chamar / me gritar pedindo, deixando / bicho humano uivando / bicho humano uivando / eu não te amo, não” (Cazuza, 1983); “Vem comigo”, “bebe a saideira / que agora é brincadeira / e ninguém vai reparar / já que é festa / que tal uma em particular? / há dias que eu planejo impressionar você / mas eu fiquei sem assunto / vem comigo / no caminho eu explico / vem comigo / vai ser divertido / vem comigo” (Cazuza; Guto Goffi; Dé, 1983); “Só se for a dois”, “o beijo do soldado em sua namorada/ seja pra onde for/ depois da grande noite/ vai esconder a cor das flores/ e mostrar a dor”; e “Você se parece com todo mundo” (Cazuza, 1983). Ao mesmo tempo em que se encontra a felicidade nos relacionamentos curtos e intensos, nos encontros sexuais cheios de paixão, mas passageiros, a dor se esconde na insegurança do futuro incerto, se utiliza da falta de interesse para não precisar aflorar.

39 6. CONCLUSÃO

Cazuza foi considerado um dos melhores letristas da música popular brasileira no ano de 1987 pela Associação Brasileira de Produção de Discos, não surpreendentemente, as letras das suas músicas tornaram-se o reflexo da sua geração e das que vieram depois. Sua obra é um veículo de expressão que nos conecta como indivíduos residentes deste mundo hiper- fluido – que se manifesta ao pé da letra na sua poesia. Direcionei o estudo dentro da sociologia da cultura sobre o amor na pós-modernidade, assim, me apropriei de 26 canções compostas pelo poeta e procurei entender, por meio delas, as dinâmicas dos relacionamentos dos indivíduos pós-modernos.

Sendo Cazuza o autor dos textos analisados, foi preciso primeiro uma análise do seu histórico biográfico como forma de nos adentrar no seu corpo social e compreender a sua escrita, quais eram as suas motivações, sobre quem escrevia, para quem? Escrevia sobre seus sentimentos, sobre a sua vida social e a boêmia, de extrema importância na sua trajetória, pois eram elas que inspiravam sua poesia, acarretando, assim, o retrato do amor pós-moderno, do amor líquido. Sendo assim, a teoria do amor líquido de Bauman foi meu principal material de estudo.

É possível entender que o indivíduo das músicas de Cazuza é o mesmo indivíduo sobre o qual Bauman, uma vez que a análise de conteúdo possibilitou a interpretação das músicas à luz do Amor Líquido, objetivo da pesquisa, conferindo sua fidedignidade e sua validade. A análise de conteúdo auxiliou, também, a deduzir os valores e os estereótipos do texto assim como compreender o aparelho cultural. Já com a análise estrutural, preocupada em propor uma teoria da estrutural e do funcionamento da literatura, alcancei os objetivos da pesquisa ao extrair a estrutura formadora da poesia de Cazuza e estudá-la, não só perante o amor liquido, mas perante ela mesma.

O amor liquido expresso nas músicas de Cazuza foi construído a partir do aparelho cultural no qual ele estava inserido, a boêmia, a zona sul carioca, a música popular brasileira, assim como suas referências pessoais, como a poesia beatnik de Jack Kerouac e o rock de Janis Joplin e os Rolling Stones. Desta forma os desejos e anseios de Cazuza mostrados na sua poesia fizeram com que este trabalho seja possível. Foi preciso fazer a restrição do objeto de pesquisa e escolher as músicas nas quais se sustentaria este trabalho, já que Cazuza possui mais de 100 composições da sua autoria. Assim, foram escolhidas 26 canções, nas quais o

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assunto principal se refere a relacionamentos amorosos por começar, inacabados, paixões e términos.

Desta forma, para realizar a análise foi preciso compreender a sociedade e o indivíduo pós-moderno da poesia do Cazuza, para assim justapor a música à teoria do Bauman. Feito isto, assim como Bauman explica no seu livro, constatei os diferentes tipos dos laços humanos produzidos nas músicas e suas similitudes com os relacionamentos dos indivíduos em uma sociedade que visa o consumo como forma de satisfação imediata das inquietudes pessoais. Os versos constatam as observações do Bauman sobre o amor na pós-modernidade, assim, este trabalho amplia o nosso olhar para o estudo sociológico com base em material culturalmente significativo, como é a música.

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