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Ela e o mar

Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.

As águas do mundo.544 Clarice Lispector

(...)

Músicas imaginei

Mas o assombro gelou

Na minha boca as palavras que ia falar

Nem uma brisa soprou

Enquanto Renata Maria saía do mar Renata Maria. Chico Buarque A música “Renata Maria” foi a primeira a ser composta para o CD Carioca, lançado em 2006, também pela Biscoito Fino. Fruto da primeira parceria com Ivan Lins, a canção foi, anteriormente, gravada, em dueto com Leila Pinheiro, no álbum Horizontes do mundo (2005). A letra “aparentemente insignificante”, 545 de acordo com Lucas Bachini, chamou-lhe, entretanto, a atenção pela sofisticação de sua construção, que contrasta com a trivialidade da temática. O prosaísmo de uma mulher, que sai da água e encanta o anônimo eu lírico, vem se juntar a uma série de outras imagens nas quais mulher e mar, com seus mistérios, profundidade e simbologias, apontam para o feminino e a total incapacidade de abarcá-lo ou dizê-lo. Desde o início de sua carreira, as canções de Chico Buarque trazem referências ao mar, simbolizando, conforme análise de Maria Helena Sansão Fontes546, a inacessibilidade da mulher. É o que acontece em “Madalena foi pro mar” (1966), na qual o mar se interpõe entre o eu lírico e a mulher, que o abandonou com os filhos e o deixou a “ver navios” na beira do cais. Também em Leite derramado (2009), Eulálio nos confidencia, mais uma vez, a sensação de distanciamento proporcionada pela 544 LISPECTOR, 1998, p. 144-145. 545 BACCHINI, 2013, p. 139. 546 FONTES, 2003.

interposição do mar: “vedava a escotilha do meu camarote de popa, para não ver o acúmulo de oceano que mais e mais me afastava de minha mulher.”547 Já em “Morena dos olhos d’água”(1966), o elemento feminino se apresenta inacessível ao eu-lírico, não por existir um oceano entre eles, mas porque a mulher se mantém alheia a suas ofertas de amor e conforto, com os olhos postos na imensidão do oceano, à espera do amado que partiu: “Morena dos olhos d’água/Tira os seus olhos do mar/(...) Descansa em meu pobre peito/Que jamais enfrenta o mar”. Mais que a promessa de não abandoná-la, ele lhe oferece o conforto de seu canto: “Vem ouvir lindas histórias/Que por seu amor sonhei/Vem saber quantas histórias, morena/Por mares que só eu sei.” Ao contrário dos heróis mitológicos, como Ulisses, e dos pescadores, personagens das canções e romances praieiros, que se lançavam ao mar em busca de aventuras ou de alimentos, a voz lírica da canção promete jamais abandonar a amada. Dessa forma, subverte a tradição, ao insinuar o fim da espera feminina, uma temática bastante recorrente em nosso imaginário cultural.

Também “Januária” (1967) fala-nos da mulher inacessível “que, malvada, se penteia/e não escuta quem apela. ”Nessa canção, o distanciamento físico, devido ao oceano se interpor entre amante e amada, mostra-se menos doloroso que o desprezo feminino: “Ela faz que não dá conta/De sua graça tão singela/O pessoal desaponta/Vai pro mar, levanta vela.”

“Não fala de Maria” (1969) também traz referência ao mar e a sua ligação com a mulher: “Não fala de Maria/Maria lembra o mar/Que lembra aquele dia/Que não é bom lembrar/Que dia; que tristeza/Que noite; que agonia/ Que puxa a correnteza/E traz a maresia”. Nesta canção, no entanto, o tema da mulher inacessível cede lugar ao sentimento de tormento, de turbilhão, a evocar a angústia e o desespero do poeta que podem, segundo parecer de Maria Helena S Fontes548, ter ligação com o tumultuado contexto político da época em que a canção foi produzida. Entretanto, de acordo com nosso viés de leitura, as palavras do campo semântico da tormenta – correnteza, vento, tempestade e turbilhão – denotam a força aterradora da mulher, que, como a ressaca marítima, arrasta violentamente tudo o que encontra pela frente. Ratifica essa leitura a imagem sugerida pelo nome Mar ia, que lembra o movimento de recolha característico da ressaca. A mesma força aterradora pode ser percebida na canção de 2005, “Renata

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BUARQUE, 2009, p. 58.

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Maria.” Nela, a imagem fulgurante da mulher saindo do mar provoca no eu-lírico sentimentos tão perturbadores que fazem com que passado, presente, futuro, paisagem e sonho se misturem, ou se plasmem, dando origem ao que Luca Bacchini definiu como “um cenário castastrófico”.549

Um cenário onde tudo desvanece e não é mais possível perceber qual é o limite entre um objeto e outro, onde elementos aniquilados formam uma massa, que só se identifica como não sendo Renata Maria:

Tudo o que não era ela desvaneceu Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês

Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas

suspensas no ar Pássaros cristalizados no branco do céu E eu, atolado na areia, perdia meus pés

Esse cenário, de confusão, de dissolução e de fragmentação, remete inexoravelmente aos romances de Chico Buarque, nos quais os protagonistas masculinos, como já foi dito, deambulam por uma realidade na qual fatos reais, sonho e fantasia se misturam numa espécie de delírio.

A referência constante ao mar, nas produções culturais em geral, sempre chamou a atenção para o simbolismo desse elemento. De acordo com Jean Chevalier, o mar simboliza a dinâmica da vida:

Tudo sai do mar e retorna a ele; lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes, as realidades ainda não configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que se pode concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo imagem da vida e da morte.550

Esse trecho leva-nos a especular a identidade existente entre mar e mãe, ambos lugares onde tem início a vida. Constituem-se ainda em territórios profundos,

549 BACCHINI, 2013, p. 142. 550 CHEVALIER, 1990, p. 592-593.

cheios de mistérios e perigos, a nos dizer da fragilidade do homem, perante as leis da natureza, ao mesmo tempo em que representam uma abertura à aventura e ao fascínio de sondar o desconhecido. Tal identidade já foi, inclusive, apontada por Leyla Perrone Moisés que, no posfácio à obra “O amante”, de Marguerite Duras, chama-nos a atenção para a identificação homofônica, na língua francesa, entre La mer (o mar) e La mère (a mãe). Segundo Perrone-Moisés, “o mar incomparável”, La mer incomparable551 descrito pela protagonista, associa-se à mãe igualmente incomparável. Corrobora com essa leitura o lugar central que a mãe ocupa na narrativa, apesar de o título sugerir o protagonismo do amante. Sustenta essa centralidade, de acordo com a análise da mesma autora, o fato de ser essa figura, e não a do amante, que ganha destaque, mesmo nas passagens em que ocorrem as relações sexuais. Continuando sua análise, a crítica, desenvolvendo noções psicanalíticas, fala-nos da presença de “gozo [materno] devorador e mortífero”552 pré-edipiano que suscitaria uma sensação mista de fascínio e terror diante da figura materna.

É, talvez, a reminiscência desse misto de atração e temor que gela os corações dos pescadores e suas esposas em sua relação com o mar nos romances de Jorge Amado e nas canções praieiras de Dorival Caymmi:

Porque eles, o marinheiro e a mulher morena, eram familiares do mar e bem sabiam que se a noite chegara antes da hora, muitos homens morreriam no mar, navios não terminariam a sua rota, mulheres viúvas chorariam sobre a cabeça dos filhos pequeninos. Porque, eles sabiam, não era a verdadeira noite, a noite da lua e das estrelas, da música e do amor, que chegara. Esta só chegava na sua hora, quando os sinos tocavam e um negro cantava ao violão, no cais, uma cantiga de saudade. A que chegara carregada de nuvens, trazida pelo vento, fora a tempestade que derrubava os navios e matava os homens. A tempestade é a falsa noite.553

Submissos ao inexorável destino de morrer no mar, esses homens veem, na morte, um encontro irresistível com Iemanjá. Uma recompensa aos fortes e corajosos pela qual anseiam, mesmo que por esse prazer tenham que deixar suas mulheres e seus filhos em situação de penúria. Nesse encontro, com a “mãe das águas” reside o fascínio que remete ao mesmo tempo à vida tendo em vista que em sua origem está o útero

551 DURAS, 2007, p. 32.

552

Ibidem, p. 34.

materno, nossa primeira morada – e a morte. É o que se insinua na canção “É doce morrer no mar”, de Dorival Caymmi:

É doce morrer no mar

Nas ondas verdes do mar

A noite que ele não veio foi

foi de tristeza pra mim

saveiro voltou sozinho

triste noite foi pra mim.

Saveiro partiu de noite

madrugada não voltou.

O marinheiro bonito

sereia do mar levou.

Nas ondas verdes do mar, meu bem,

ele se foi afogar

fez sua cama de noivo

no colo de Iemanjá. A iconografia do candomblé representa Iemanjá, também conhecida como Janaína, Inaê, Mãe d’água ou Princesa Aioca, como uma mulher de cabelos longos – como vimos um símbolo da feminilidade – com seios grandes e largos quadris – estes símbolos de fertilidade. Como parte dos orixás ligados à criação, ela representa a figura da Grande Mãe, que apresenta duas faces: a terrível e a encantadora. Essa ambiguidade materna relampeja na imagem de Iemanjá embalando, como diz a canção, seu filho- noivo nas profundezas do mar. As canções de Dorival Caymmi, com certeza, ressoaram fundo na sensibilidade de Chico Buarque, que considerava perfeitas as setenta canções do ídolo baiano e seu estilo de cantar único.554 Uma delas é “O mar”, cuja apresentação “num espetáculo promovido pela primeira-dama Darcy Vargas” garantiu-lhe “fama eterna.”555 O mar quando quebra na praia

É bonito, é bonito O mar...pescador quando sai

Nunca sabe se volta, ou se fica

Quanta gente perdeu seus maridos, seus filhos

Nas ondas do mar

554

ZAPPA, 2011, p. 55.

O mar quando quebra na praia

É bonito, é bonito

Pedro vivia da pesca

Saía no barco

Seis horas da tarde

Só vinha na hora do sol raiá Todos gostavam de Pedro

E mais que todas

Rosinha de Chica

A mais bonitinha

A mais bem feitinha

De todas as mocinhas lá do arraia Pedro saiu no seu barco

Seis horas da tarde

Passou toda a noite

Não veio na hora do sol raiá

Deram com o corpo de Pedro

Jogado na praia

Roído de peixe

Sem barco sem nada

Num canto bem longe lá do arraiá Pobre Rosinha de Chica

Que era bonita

Parece que endoideceu

Vive na beira da praia

Olhando pras ondas

Andando rondando

Dizendo baixinho

Morreu, morreu, morreu,oh... O mar quando quebra na praia

Ecos dessa composição ressoam em vários momentos da obra de Chico, em inusitadas imagens presentes em seus romances que, como vimos, apesar do protagonismo masculino, nos falam muito do feminino:

Portanto me recostei no sofá, fechei os olhos e fechei os olhos e fiquei à escuta do mar, como fazia toda noite até pegar no sono. Como fizemos Matilde e eu ao amanhecer de nossa primeira noite, eu nunca tinha dormido antes defronte da praia. E a partir de então liguei uma coisa a outra, a respiração de Matilde chamava as ondas, que lhe respondiam com seu espraiar. Passar uma noite sem Matilde me parecia tão improvável quanto cessarem todas as ondas sem mais nem

menos. Mas súbito escutei uma pancada cheia, como se o mar batesse em à minha porta, e quando abri os olhos, amanhecia.556

Eulálio d’Assumpção Montenegro, nesse fragmento de Leite derramado, assume a postura passiva, tradicionalmente destinada à mulher, que permanece em dolorosa espera por alguém que não mais voltará. Em seu relato, ressoa o lamento insano da pobre Rosinha de Chica à beira da praia. Afinal, tal qual essa mulher do povo, que cai em desgraça ao perder para o mar o seu amado, o representante da elite carioca ronda de um canto a outro de sua memória, como a repetir, com a mesma perplexidade: “Morreu, morreu, morreu, oh...”

Chama-nos também a atenção o fato de, entre as muitas versões para a “desaparição” de Matilde, o afogamento em mar bravio apresentar-se em toda a sua carga dramática:

Numa delas, se bem me recordo, ele de fato mencionava que Matilde chegou a pensar numa solução extrema, quando soube da gravidade da doença. Mas naquela noite ela se afogou porque o tempo enlouqueceu, o mar encheu num segundo e as ondas gigantes tragariam qualquer incauto que estivesse na praia. Foi o que eu disse a Maria Eulália, e buscando seus olhos, lhe falei dos meus dias de vigília à beira-mar, dos meus sobressaltos noite adentro a cada onda que rebentava. E lhe confessei que a ver o corpo de Matilde dar na praia, sabe lá com que mutilações, preferi afinal que ela permanecesse enrascada para sempre no fundo do oceano.557

Nessa passagem, podem-se perceber dois outros ecos da canção praieira de Caymmi: a condição em que o corpo de Matilde poderia ser devolvido, igualmente “jogado na praia/ roído de peixe”, também a angustiante e interminável vigília à beira- mar:

Matilde precisava saber disso, eu a acordaria para lhe relatar o flagrante, mas ela ainda não estava em casa ao meu regresso. Portanto me recostei no sofá, fechei os olhos e fiquei à escuta do mar, como fazia toda noite até pegar no sono. (...) E a partir de então liguei uma coisa a outra, a respiração de Matilde chamava as ondas, que lhe

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BUARQUE, 2009, p. 161.

respondiam com seu espraiar. Passar uma noite sem Matilde me parecia tão improvável quanto cessarem todas as ondas sem mais nem menos. Mas súbito escutei uma pancada cheia, com se o mar batesse à minha porta, e quando abri os olhos, amanhecia. Saí para a rua, e já não existia praia, as águas cobriam a areia e as ondas quebravam contra a calçada, levantando enormes leques de espuma.558

O eterno ir e vir das ondas, a responder ao chamado da respiração de Matilde, pode também ser visto como a impossibilidade de se definir a mulher, captar seu ser, sua essência. Afinal, a cada novo espraiar, diferentes são as águas que vão dar na praia, tal qual a mulher que, com suas variadas facetas e insondáveis mistérios, apresenta-se como “fulgurante visão/Que não se reproduz duas vezes no mesmo lugar”. Isso faz com que o homem, na dependência de uma catalogação, que promova o controle desse ser perigoso, empreenda, em danação, uma busca inútil.

Dia após dia na praia com olhos vazados de já não a ver

Quieto como um pescador a juntar seus anzóis

Ou como algum salva-vidas no banco dos réus

Noite na praia deserta, deserta, deserta daquela mulher

Praia repleta de rastros em mil direções

Penso que todos os passos perdidos são meus559

Mesmos “passos perdidos” conduzem os protagonistas de Estorvo, Budapeste, Leite derramado e Benjamim a lugar nenhum. Esses personagens, frustrados em suas procuras, são como o pescador, que recolhe seus anzóis, após retornar sem peixes, ou o salva-vidas, que não conseguiu tomar do mar sua vítima. Apesar de fracassados em seu desafio de captar a imagem evanescente da mulher, a qual sempre lhes escapa, e cientes de sua derrota, eles são incapazes de abandonar a empreitada, mesmo depois que o dia cessa: “Noite deserta, deserta, deserta daquela mulher.” Uma busca contínua que sempre recomeça e volta aos mesmos lugares na circularidade da narrativa. A canção “Renata Maria” subverte, assim como os romances, os tradicionais papéis do feminino e do masculino, quando tira a mulher da posição de

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BUARQUE, 2009, p. 161.

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espera, como Penélope, e dá esse lugar ao homem. Nesse sentido, Leila Cristina Barros, citando Barthes, caracteriza os personagens da obra de Chico Buarque como “homens feminizados” e explica-nos que isso acontece, quando o homem “fala a ausência do outro, ou seja, quando se apaixona.” O que equivale a dizer que ele “feminiza-se, na medida em que sua existência de sujeito apaixonado resume-se na perseguição e na espera, inútil e desesperada,”560 de sua amada. Os personagens de Chico Buarque assumem as mesmas posturas das tradicionais personagens de nosso universo cultural, entre as quais citamos: Penélope, a voz lírica das cantigas de amigo medievais, as amadas dos pescadores à beira do cais, as “Mulheres de Atenas” e também o eu-lírico feminino do samba-canção “Ronda”, composto pelo professor/biólogo Paulo Vanzolini e gravado pela primeira vez em 1953 por Inezita Barroso:

De noite eu rondo a cidade

A te procurar sem encontrar

No meio de olhares espio

Em todos os bares você não está

Volto pra casa abatida

Desencantada da vida

O sonho alegria me dá

Nele você está A mulher que outrora amargava, no recinto de seu lar, a espera pelo homem ou que perambulava pela rua em desencantada e humilhante procura, na canção “Renata Maria”, após fascinar o eu lírico masculino em uma aparição “alumbradora”, desaparece na imensidão da cidade, deixando-o imobilizado a catar os rastros/restos de poesia que ela derramou no chão. Por outro lado, além da subversão das figurações do masculino e do feminino cristalizadas em nossa tradição literária, o momento em que Renata Maria sai da água traz ecos do surgimento da deusa Vênus, Afrodite para os romanos, da espuma do mar. Esse momento foi imortalizado por inúmeros artistas em todos os tempos, entre eles Sandro Botticelli, no quadro O nascimento de Vênus, que se encontra na galeria Degli Uffizi, em Florença. Muitas são as versões, também na literatura, que explicam esse raro momento, entre elas a do poeta Hesíodo em sua obra Teogonia. Tal qual a deusa da beleza, Renata Maria e a garota de Ipanema passaram a espalhar fascinação

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