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Inexauribilidade: um senso de religiosidade literária

3. Experiências interiores: quatro cosmovisões em Minha luta

3.4 Inexauribilidade: um senso de religiosidade literária

Palavras desprovidas de semântica pertencem à morte, pois desprovidas de humanidade. É necessária a performance da leitura, o violino interior, se se quer alcançar o frêmito de que fala Proust:

Mas era sobretudo em mim que eu ouvia inebriado um som novo emitido pelo violino interior. Suas cordas são retesadas ou soltas por simples diferenças de temperatura e da luz exteriores. Em nosso ser, instrumento que a uniformidade do hábito fez silencioso, o canto nasce desses desvios, dessas variações, origem de toda música: o tempo que faz em certos dias transporta-nos logo de uma nota a outra. Reencontramos a ária esquecida cuja necessidade matemática poderíamos ter adivinhado e que nos primeiros instantes cantamos sem conhecer. Somente essas modificações internas, conquanto vindas de fora, renovariam para mim o mundo exterior. Portas de comunicação, desde há muito condenadas, reabram-se em meu cérebro. A vida de certas cidades, a alegria de certos passeios retomavam o seu lugar em mim. Fremindo todo inteiro ao redor da corda vibrante, eu teria sacrificado minha mortiça vida de outrora e o meu porvir, apagados pela borracha do hábito, por esse estado tão particular (PROUST, 2016c, p. 46).

Esses transes, arrebatamentos e estados teopáticos que foram descritos a porfia por místicos de todos os credos (hindus, budistas, muçulmanos ou cristãos — sem falar dos que, mais raros, não pertencem a uma religião) têm o mesmo sentido: trata-se sempre de um desapego em relação à conservação da vida, da indiferença a tudo o que tende a assegurá-la, da angústia sentida nessas condições até o instante em que as forças do ser naufragam, da abertura enfim para esse movimento imediato da vida que é habitualmente comprimido e que se libera de repente no transbordamento de uma alegria infinita de ser (BATAILLE, 2017, p. 272).

Para Bataille, o êxtase pode prescindir da representação de Deus e está relacionado ao silêncio e ao dilaceramento, sendo um estado “mais intenso que a volúpia erótica”, um estado que nos faz soluçar e “torna triste e pesado morrer” (BATAILLE, 2017b, p. 55)

Uma obra literária é um lugar para estar, não uma imitação verbal de um mundo pré-existente, mas um outro mundo, infinitamente explorável. A principal preocupação artística de Knausgård é aquilo que ele chama de “estar na inxauribilidade”, preocupação pela primeira vez citada à metade do primeiro volume. Sentado na sala durante uma madrugada insone, Karl Ove folheia um livro de Constable.

Bastava bater os olhos nas imagens e eles se enchiam de lágrimas, tal era o arrebatamento que algumas das pinturas me causavam. [...] Era meu único parâmetro para avaliar pinturas, o sentimento que despertavam em mim. O sentimento de inexauribilidade. O sentimento de beleza. O sentimento de presença. Tudo concentrado em instantes tão intensos que às vezes era difícil suportar. Além do mais, eram completamente inexplicáveis. Pois, se eu observava a pintura que me provocava a impressão mais forte, não havia nada nela que pudesse explicar a intesidade do meu sentimento. Acima uma faixa de céu azul. Abaixo, névoa esbranquiçada. Depois as cascatas de nuvens. Brancas onde a luz do sol batia, verde- claras nas partes mais ensombrecidas, verde-escuras e quase negras nas áreas mais densas e distantes do sol. Azul, branco, turquesa, verde-claro, verde-escuro. Era só isso. [...] Eu havia estudado história da arte, e estava habituado a descrever e analisar a arte. Mas jamais escrevi sobre o mais importante, a experiência da arte para mim. Não apenas porque não seria capaz, mas também porque os sentimentos que as pinturas despertavam em mim iam de encontro a tudo que eu aprendera sobre o que era arte e para que ela servia. Então eu guardava isso comigo. Ia sozinho à Nationalgalleri em Estocolmo, ou à Nasjonalgalleri em Oslo ou à National Gallery em Londres, e observava as obras.Experimentava assim uma espécie de liberdade. Não precisava justificar meus sentimentos, não havia ninguém a quem eu tivesse que me reportar e nada que devesse discutir. Liberdade, porém não paz, porque, mesmo que as pinturas retratassem cenas pastoris, como as paisagens arcaicas de Claude, eu sempre ficava agitado depois de vê-las, pois o que traziam, no núcleo da sua existência, era inexauribilidade, e isso despertava em mim uma espécie de desejo. Não encontro explicação melhor. Desejo de estar dentro da inexauribilidade (KNAUSGÅRD, 2015a, p. 191-192).

Após um parágrafo em que o narrador reflete sobre como, tendo estudado história da arte, está habituado a descrever e analisar arte, embora nunca tenha escrito “sobre o mais importante, a experiência da arte para mim”, o narrador se aproxima de uma síntese explicatória desse sentimento intenso e misterioso que experimenta diante da arte: liberdade.

Experimentava uma espécie de liberdade. Não precisava justificar meus sentimentos, não havia ninguém a quem eu devesse me reportar e nada que devesse discutir. Liberdade, porém não paz, porque, mesmo que as pinturas retratassem cenas pastoris, eu sempre ficava agitado depois de vê-las, pois o que traziam, no núcleo de sua experiência, era inexauribilidade, e isso despertava em mim uma espécie de desejo. Não encontro explicação melhor. Desejo de estar dentro da inexauribilidade. Era como eu me sentia naquela noite. Fiquei folheando o livro de Consable durante quase uma hora. Voltava à página da pintura das nuvens esverdeadas, e toda vez ela evocava as mesmas emoções. Era como se duas diferentes formas de reflexão surgissem e desaparecessem na minha consciência, uma com seus pensamentos e racionalizações, a outra com seus sentimentos e impressões, e, muito embora existissem lado a lado, uma excluía os insights alcançados com a outra. [...] No exato instante em que eu voltava a olhar para a pintura, todos os pensamentos desapareciam na onda de energia e beleza que se erguia dentro de mim. Sim,

sim, sim, eu ouvia então. É aí. É para esse lugar que devo ir. Mas para o que

eu tinha dito sim? Para onde eu deveria ir? (KNAUSGÅRD, 2015a, p. 192).

A experiência acima é explorada por Bataille:

A experiência é a colocação em questão (à prova), na febre e na angústia, daquilo que um homem sabe do fato de ser. Se, nessa febre, ele apreender alguma coisa, qualquer que seja, não poderá dizer: “eu vi isto, o que vi é assim”; não poderá dizer “vi Deus, o absoluto ou o fundo dos mundos”; poderá dizer apenas: “o que vi escapa ao entendimento”, e Deus, o absoluto e o fundo dos mundos não são nada senão categorias do entendimento (BATAILLE, 2017a, p. 34).

É impressionante o quanto Karl Ove busca o êxtase, em todos os volumes da obra, seja através da música, da bebida, ou do sexo, mas essas experiências têm uma expectativa de vida muito curta. No último volume, alternativas mais duradouras se apresentam. Na universidade, Karl Ove estuda literatura e começa a ler história e crítica. Lendo esses livros, ele pode sentir algo que se abre. Como o narrador d’A busca..., Karl Ove descobrirá, ao cabo de muitas experiências, que melhor é uma vida longe da amizade37 e

otimamente dedicado ao trabalho, ao ofício de descrever: “tencionava recomeçar a viver na solidão a partir do dia seguinte, se bem que agora com um objetivo preciso”, escreve Proust, “o dever de compor minha obra era mais importante que o de ser polido, ou até mesmo indulgente” (PROUST, 2016c, p. 781-782).

37 De que me serviria se, durante alguns anos, ainda perdesse tempo em reuniões, fazendo deslizar ao eco

mal expirado de suas palavras o som igualmente vão das minhas, pelo estéril prazer de um contato mundano que exclui qualquer aprofundamento? Não seria melhor que, dos gestos que faziam, das palavras que pronunciavam, de sua vida, de sua natureza, eu tentasse traçar a curva e extrair as leis gerais? Infelizmente, teria de lu tar contra o hábito de me pôr no lugar dos outros, hábito que, se favorece a concepção de uma obra, retarda-lhe a execução. Pois, devido a uma polidez superior, ela nos leva a sacrificar aos outros não só o nosso gosto, mas também nosso dever, quando, do ponto de vista alheio, esse dever, qualquer que seja, é o de permanecer na retaguarda, onde será útil, aquele que não pode prestar serviço no front, sendo considerado comodismo o que na realidade não é (PROUST, 2016c, p. 782).

Perguntado se ele achava que a vida dele merecia o tipo de atenção dada em seu Minha luta, Knausgård respondeu que a vida de todo mundo merece o tipo atenção que ele deu a sua vida no livro. Proust, como nota Fernando Py em prefácio ao último volume, “o Narrador [...] se dirige à individualidade criadora de todos os leitores38” [grifo nosso].

Observemos um trecho em que o autor francês faz isso:

Quanto ao livro interior de signos desconhecidos (signos em relevo, dir-se-ia, que minha atenção, explorando o inconsciente, ia procurar, feria, contornava, como um mergulhador que faz sondagens), para cuja leitura ninguém poderia me ajudar com nenhuma regra, essa leitura consistia num ato criador para o qual coisa alguma nos pode suprir ou até colaborar conosco. Assim, quantos deixam de escrevê-lo desviando-se para outras tarefas! (PROUST, 2016c, 699).

O inacessível que se nos abre, sensação de “uma conivência secreta com natureza inapreensível, ininteligível, das coisas” (BATAILLE, 2017, p. 57).

Se a existência humana, à questão: “O que há?”, responde outra coisa que não: “Eu e a noite, ou seja, a interrogação infinita”, ela se subordina à resposta, ou seja, à natureza. Em outros termos, ela se explica a partir da natureza e renuncia assim à autonomia. A explicação do homem a partir de um dado (de um lance de dados qualquer que substitui algum outro) é inevitável, mas vazia na medida em que responde à interrogação infinita: formular esse vazio é, ao mesmo tempo, realizar a potência autônoma da interrogação infinita (BATAILLE, 2017, p. 170) [grifo do autor].

Os acontecimentos da obra são, todos, registrados com a mais profunda intimidade, na região onde o senso sacral arrebata. É Vilém Flusser quem nos afirma: “Não é da crítica da religião que devemos esperar um esclarecimento do fenômeno religioso. [...] Somos, nesse esforço, remetidos a nossa vivência interna, à religiosidade. É ela, embora tão variável e insegura, nossa única via de acesso ao sagrado” (FLUSSER, 2002, p. 16).

A Leitura Religiosa, por seu turno, também é uma vivência interna, e consiste em explorar o alcance emocional da ideia de deidades da literatura. Ler consiste, para o Leitor Religioso, em buscar o contato com o Literário, visto aqui como O Eterno, O Senhor Deus. Com a mesma devoção dos homens bíblicos, ler é abrir-se ao mundo. É na consciência que Deus se manifesta. A consciência é soberana, nosso deus se interessa sobretudo pelas formas artísticas geradas pela individualidade que, com a sensibilidade amolecida, entrega-se ao seu domínio; não se interessa muito pelas individualidades em si – a psicologia é, para o devoto (ou seja, para o artista desta religião, autor ou leitor),

algo que ele não conseguiu destruir em si, por enquanto, e com que ele se vê obrigado a lidar. O deus da literatura é como qualquer outro: supremo demais para sobrestimar as psicologias, deseja mais uma obra!

A leitura literária é uma sensibilidade: “uma sensibilidade tornada, por liberação daquilo que atinge os sentidos, tão interior que o mínimo detalhe do exterior, a queda de um alfinete, um estalido, passam a ter uma imensa e longínqua ressonância” (BATAILLE, 2017, p. 49).

A leitura literária funciona como a catedral da recordação: “recordações que acabavam de me assaltar e nas quais, em vez de me fazer uma ideia mais lisonjeira de mim mesmo, pelo contrário, quase duvidara da realidade atual do meu eu” (PROUST, 2016c, p. 695). Experiência de fundir-se ao objeto como descreve Bataille, anular-se; lemos para nos tornar um com outra coisa. Experiência de estar sem individualidade (selfless), tão cara ao personagem Karl Ove e ao autor empírico. A verdade da leitura – na qual o Leitor Religioso tem fé – é um êxtase inexaurível do qual tudo flui, todas as cosmovisões; localiza-se no espaço o Eu e as palavras, entre as ideais e o mundo dos mortos. Você e eu somos apenas breves lampejos de luz no sonho de Deus. Pelas palavras vamos – em uma experiência de imersão e ascensão simultâneas – em direção ao divino. O eu é uma ilusão. Não há eu. O ego é uma construção mental. Isso explica por que constantemente precisa ser inflado e defendido. Não existe realmente. O você aos cinco anos de idade, o você aos trinta anos de idade, e você aos sessenta anos de idade não são os mesmos você – porque nunca houve um você. Você, lendo, chama-se vida. Vida. É isso. Isso é o que você é. É isso! É para aí que você tem que ir!

A leitura literária é a experiência interior de ser, à semelhança de deus, criador. E não há experiência interior, segundo Bataille, “sem uma comunidade daqueles que a vivem” (BATAILLE, 2016, p. 56). A leitura literária aspira ao senso artístico tal como o descreve Proust: “senso artístico, ou seja, submissão à realidade interior” (PROUST, 2016c, p. 702). A leitura literária aspira ao êxtase de um momento fora do tempo: “júbilo extratemporal” (PROUST, 2016c, p. 702).

Apesar de os poetas serem “mentirosos [...], a fusão do sujeito e do objeto, do homem e do mundo, não pode ser fingida” (BATAILLE, 2017c, p. 39). A verdade só é possível como ficção.... A verdade é poética. Esse é o significado inerente ao instante

singular em que a religiosidade da leitura se idealiza e se realiza em nascedouro de cosmovisões.