• Nenhum resultado encontrado

IV. Divisão dos capítulos

2.1. Infância e trabalho

Era muito comum nos jornais do século XIX anúncios que faziam referências a trabalhadores em tenra idade. Os “moleques”, “meninos” ou “rapazes” estavam empregados nos mais diversos ofícios, tanto nas oficinas artesanais espalhadas pela cidade, como também nos estabelecimentos comerciais das principais ruas do Recife. A pouca idade não fazia com que fossem ignorados no mercado de trabalho. Mas, antes de tratarmos do ingresso desses indivíduos no mercado de trabalho, é necessário tecer algumas considerações a respeito do que vinha a ser a infância para os padrões do oitocentos.

A existência de diferentes conceitos sobre o que vem a ser infância dificulta, em certa medida, determinar precisamente com qual idade esses “moleques”, “meninos” e “rapazes” ingressavam no mercado de trabalho. É consenso, na historiografia que trata da criança, a existência de indefinições sobre os critérios etários que determinavam o fim da infância. Em fins do século XVIII, era incerta a separação entre a infância e a idade adulta. Meninos de sete anos por vezes já eram classificados como “rapazes” nos censos. A classificação “rapaz” ia dos sete aos quinze anos 40. Lenira Martinho, verificando nos maços de população para os anos de 1765 a 1836, aponta que eram considerados como crianças os indivíduos de 0 (zero) a 7 anos, e os de 7 a 14 anos são referidos como “rapazes”, “moças”, ou “raparigas”. Para a autora, seria o reconhecimento de uma situação

40

de fato, pois aos 9 anos esses indivíduos já estavam trabalhando (1993, p. 83). Com base nas Ordenações Filipinas, a autora conclui que só eram considerados juridicamente maiores aos 25 anos (1993, p. 83). Porém existiam situações legais em que, excepcionalmente, a maioridade podia ser antecipada.

Segundo Renato Pinto Venâncio, em Portugal eram vagos os critérios utilizados para delimitar a primeira infância. O final da primeira fase da vida variava entre 7 ou 14 anos. Para o referido autor, havia uma ausência de critérios gerais, que se alterava de acordo com o sexo e a condição social, por exemplo: aos 14 anos podia responder em juízo criminal. Além do que a condição social alterava os valores relativos às “idades de vida”. De acordo com o Código Filipino, os meninos pobres deveriam começar a trabalhar a partir dos sete anos de vida (VENÂNCIO, 1999, p. 22).

Referindo-se aos escravos, as definições sobre a infância eram também imprecisas. Nos censos brasileiros dos séculos XVIII e XIX, as crianças cativas de apenas três anos eram arroladas com ocupações específicas, como pajens ou empregadas domésticas. O Alvará de 1758, referente ao tráfico de africanos, definiu como “criança” os escravos que não tivessem alcançado altura superior à “quatro palmos”, aproximadamente, um metro (VENÂNCIO, 1999, p. 22). Segundo Góes e Florentino, o adestramento que tornava essas crianças adultas estava se concluindo por volta dos doze anos. Aos quatorze já se trabalhava como um adulto (2004, p. 182). É o que mostra alguns anúncios oferecendo escravos, ainda crianças, mas altamente qualificados. É o caso de um “molecote” de “bonita figura” e “bom cozinheiro” que “não só sabe cozinhar o diário de uma casa” como também “apronta um banquete sem socorro de mais alguma pessoa”41. O mesmo anunciante ainda oferecia um mulatinho com ofício de sapateiro. A precocidade caracterizava a infância dos escravos.

É interessante perceber que o termo “moleque” era normalmente usado para designar a condição social da criança, que nem sempre era tão criança assim. A exemplo disso encontramos vários anúncios onde os chamados “moleques” por vezes aparecem com idades variando entre os “18 a 20 anos”42. Essa confusão na faixa etária tanto do “moleque” como do “molecão” também é apontada por Kátia Mattoso (1982, p. 86). Provavelmente, o que devia distinguir era a constituição física e a fragilidade desses indivíduos.

41

APEJE, Diário de Pernambuco, 26.09.1853, n. 216.

42

De acordo com a língua quimbundo originária da África Central, muleke significa dependente. Talvez esses indivíduos em idade adulta, mas de constituição franzina ou comportamento infantil, eram também chamados de moleques pelos seus pares. A apropriação da palavra pela classe senhorial revela que mesmo em idade avançada esses cativos ainda dependiam dos seus senhores, pelo menos para receber ordens.

Uma toada do Bumba-meu-Boi, folguedo de bastante aceitação das classes populares do Recife no século XIX, responde bem essa distinção: “Em casa de gente

pobre/ abano serve de leque/ fio [filho] de branco é menino/ fio [filho] de negro é moleque” (FILHO, 1982, p. 16). Mesmo omitindo a condição de ser escravizado, essa

toada revela tanto a questão referente à idade infantil, como também a distinção entre “meninos” e “moleques”. Porém, encontramos anúncios em que a dicotomia “menino” e “moleque” desaparecem. Na rua das Cruzes, n.33, um certo estabelecimento chamava “meninos forros ou cativos” para aprender o ofício de latoeiro e funileiro43.

Confusões semânticas à parte, o certo é que, tanto crianças escravas, como livres e libertas, engrossaram o contingente de trabalhadores nas cidades, pois o mundo do trabalho não era exclusividade dos adultos. Mesmo porque não se considerava a infância como uma fase da vida na qual a criança deveria ser separada do mundo dos adultos. Até nas atividades ligadas ao comércio também se faziam presentes esses pequenos trabalhadores. Nesse setor, era muito comum a existência de jovens vindos da Europa. Gilberto Freyre, citando uma publicação da época, demonstra que boa parte da imigração portuguesa consistia em indivíduos de idade infantil. É que, no Brasil, eram mais procurados para caixeiros e até para trabalhos em fábrica meninos de 10 a 14 anos (FREYRE, 1990, p. 272).

O fato é que, em se tratando de crianças advindas de famílias pobres, a concepção de trabalho era inserida de forma precoce em suas vidas, a começar pelos trabalhos domésticos a que eram submetidos ainda dentro da esfera familiar. O aproveitamento dessa mão-de-obra infantil como força de trabalho é uma das características básicas das sociedades pré-industrializadas.

Pela incerteza e ambigüidade dos critérios para se definir o que vem a ser a infância, torna-se também difícil o entendimento quando a questão se refere à entrada desses indivíduos no mundo do trabalho. Contudo, a exposição de alguns critérios acima

43

citados permite, até certo ponto, estabelecer algumas faixas etárias possíveis para o ingresso no mundo do trabalho, pelo menos em se tratando de indivíduos proveniente de lares pobres. Para os filhos de famílias abastadas, a escola era o caminho natural para um futuro exercício de ocupações privilegiadas.

Mas vamos aos critérios: até os sete anos de idade, a criança não se envolvia formalmente com o trabalho. Embora em casa, junto à família, esses indivíduos eram solicitados constantemente a prestar pequenos serviços. A partir dos sete anos a condição mudava um pouco. Já se podia exigir do pequeno trabalhador um maior envolvimento com as atividades próprias dos adultos. Essas atividades já faziam parte do processo de formação profissional. Aos quatorze anos, admitia-se que esse indivíduo já era um trabalhador completo. A partir daí, o grau de responsabilidade exigido dele era o mesmo de um adulto.

Definida uma idade para o exercício do trabalho, devemos agora perceber como se dava o ingresso desses homens, jovens aos nossos olhos, no mercado de trabalho.

Documentos relacionados