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O latim vulgar falado nas diferentes províncias romanas já apresentava, certamente, grandes variações ainda durante o efetivo domínio de Roma. No latim clássico escrito, a posição dos constituintes na sentença era bastante livre. Essa liberdade foi mais restringida no latim vulgar em decorrência, principalmente, do sincretismo dos casos morfológicos. A posição dos constituintes tornou-se mais rígida e os casos genitivo, dativo e ablativo, foram gradativamente substituídos pelo emprego da preposição seguida do caso acusativo, o caso com valor default. No período românico, eram empregados apenas dois casos: o nominativo para o DP sujeito, e o acusativo nas demais funções. Com o esfacelamento do império, no

século V d.C., o processo de mudanças se acelerou, adquirindo, à revelia de Roma, nuances peculiares em cada ex-província romana. No romance, estava em uso nos diferentes dialetos latinos somente um caso: o nominativo (italiano, francês antigo, romeno) ou o acusativo (os dialetos da península Ibérica e o francês). As cinco declinações foram reduzidas a três e as quatro conjugações verbais foram comprimidas em três com neutralização de inúmeras idiossincrasias, como a introdução de conjugações perifrásticas (mais econômicas) e a regularização dos depoentes e das desinências do infinitivo. Ocorreu também um rearranjo na escala temporal dos verbos: o mais que perfeito do subjuntivo (amavisse) substituiu os usos do imperfeito do subjuntivo (amarem), decretando seu presumível ostracismo do latim vulgar medieval falado na Ibéria, e o infinitivo “invadiu” terrenos sintáticos de outras formas nominais do verbo.

O infinitivo latino não admitia desinências flexionais de nome no latim clássico, e, muito menos, a regência de preposição. O uso da preposição lexical nos DPs acusativo e ablativo supria, aparentemente, a insuficiência de informações sintáticas veiculadas pelo morfema de caso na associação do DP com o seu regente. A expansão do emprego da preposição (também como categoria funcional) provocou o enfraquecimento dos casos morfológicos, alterando profundamente o QUADRO 2. Outros mecanismos sintáticos foram instaurados: posição mais fixa dos constituintes e amplo emprego da preposição seguida de caso oblíquo. O infinitivo “usurpou” domínios de outras formas nominais do verbo, expandindo seu emprego principamente em detrimento do gerundivo e do supino, e, também, parcialmente do particípio e do gerúndio.

No latim, as orações subordinadas adverbiais eram construídas, ordinariamente, com o emprego de conjunção e o verbo preferencialmente no modo subjuntivo. Essas estruturas eram extremamente ricas e complexas, o que permitia aos falantes optarem, às vezes, por mais variantes (paráfrases) para expressar uma “mesma” idéia. Essa rica variação revelava tendências das mudanças lingüísticas em curso no latim vulgar falado nas diferentes ex-províncias romanas. Os exemplos (77) ilustram bem a variação sintática e as nuances semânticas implícitas.

(77) a. Hostes venerunt ??[pacem petire]. = infinitivo

b. Hostes venerunt [pacem petitum]. = supino ativo c. Hostes venerunt [pacem petentes]. = particípio presente d. Hostes venerunt [pacem petendi causa]. = gerúndio genitivo e. Hostes venerunt [pacis petendae causa] = gerúndio ablativo f. Hostes venerunt [ut pacem peterent] = imperfeito do subjuntivo g. Hostes venerunt [qui pacem peterent]. = imperfeito do subjuntivo

A senteça encaixada para pedir a paz, uma oração subordinada adverbial final, é normalmente expressa com ut + imperfeito do subjuntivo (77f), dentro das normas da consecutio temporum. Mas pode, também, ser expressa, por formas nominais do verbo:

infinitivo (77a), (embora de aceitação duvidosa); supino ativo (77b); particípio presente (77c); gerúndio genitivo + causa/gratia (77d); gerúndivo ablativo + causa/gratia (77e); e qui + imperfeito do subjuntivo (77f), (o pronome relativo qui equivalendo a ut ii = para que eles). O uso dessas variantes não co-ocorria certamente num mesmo corte sincrônico, pois o conceito latim vulgar compreende um período histórico de mais de oitocentos anos.

Uma das peculiaridades mais interessantes do latim vulgar é a supressão da conjunção, especialmente de ut, em determinados contextos sintáticos de subordinação e, em outros, a sua substituição por preposição + infinitivo. Vimos que o emprego de orações

infinitivas estava restrito no latim escrito a certos contextos sintáticos muito particulares, pois o infinitivo era puro, isto é, não se podia ligar a seu regente por meio de preposição. Em outras palavras, não admitia encaixe em PP. No latim vulgar, o infinitivo parece ter perdido sua pureza verbal, passando a admitir a regência da preposição, como os DPs. Por isso, Maurer (1959:185) saúda a difusão da preposição para as orações infinitivas no latim vulgar como “a mais notável inovação na sintaxe do infinito”, porque “abriu o caminho a inúmeras aplicações novas”. Além disso, os dialetos falados na parte mais ocidental da península Ibérica passaram a “reduzir a forma infinitiva a verdadeiro modo finito” (Maurer, 1959:187).

Nos exemplos (78), logo abaixo, podemos observar o fenômeno da supressão de conjunções como ut, ne, quod, quia, quo etc. No português, muitas vezes, a opção é pelo emprego de preposição + InfP. A conjunção ut teria sofrido esvaziamento semântico no latim vulgar, passando a ser omitida ou substituída gradativamente por equivalentes mais vulgares como quod.

(78) a. Adhortor ∅properent.

Exorto (para que) se apressem > para se apressarem

b. Tandem impetravit ∅ abiret. Enfim conseguiu (que) saísse.

c. Equidem suasi (ut) Romam pergeret.

De fato, aconselhei (que) se dirigisse a Roma > aconselhei-o a seguir para Roma

d. Suadeo tibi (ut) legas.

Aconselho-te (a que) leias > Aconselho-te a leres > Aconselho-te a ler.

e. Cave (ne) cadas.

Cuida (para que não) caias > Cuida para não caíres > Cuida para não cair.

f. Persuadet Castico (ut) regnum occuparet.

Persuadiu Cástico (para que) ocupasse o reino > Persuadiu Cástico a ocupar o reino.

g. Otiare (quo) melius labores.

Descansa (para que)melhor trabalhes > ... para trabalhares melhor > Descansa para trabalhar melhor.

h. Puella incepit plangere

*A menina começou chorar > A menina começou a chorar. i. Dixi in carcere ires. (Plauto)

Disse (que) ao cárcere fosses > Disse para ires ao cárcere.

j. Quaeso ∅ ignoscas.

Peço-te (que) perdoes > me perdoares

l. Quaeso (ut) mihi dicas.

Peço-te (que) me digas > me dizeres

Vimos que o infinitivo latino, embora fosse avesso à flexão número-pessoal, admitia sujeito próprio e diferente da oração regente. Essa característica permitiu, presumivelmente, criar variações no latim vulgar falado nas diferentes províncias romanas quanto ao emprego de infinitivo impessoal e pessoal. Essa “pessoalidade virtual” do infinitivo pode ter sido um dos fatores que abriu as portas para o licenciamento de sujeito nominativo, e a subseqüente oscilação entre o emprego [-Agr] e [+Agr] do infinitivo no latim vulgar medieval e em fases posteriores. Fortalece-se, assim, a hipótese de que o infinitivo pessoal do português tenha sua origem no infinitivo impessoal latino. A omissão da conjunção em certas construções finitas reforça, por sua vez, a hipótese da origem do

infinitivo pessoal de uma forma verbal finita (imperfeito do subjuntivo latino). Essa questão polêmica e ainda não-resolvida, depois de quase dois séculos de discussão, abordaremos na seção 1.4, logo abaixo.