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Influência, produção e prática: sentidos da reforma

A implantação do Projeto Escola Viva: organização do ensino em ciclos ou a Reforma Curricular do Ceará, de 1998, configurou-se como uma das últimas decisões que fecharam o cerco estabelecido pela política educacional Todos pela educação de qualidade para todos, culminando com o ‘discurso da mudança’ da política governamental do Ceará naquele período.

As ações dessa reforma manifestaram-se na sua efetivação, mas, sobretudo, nas idéias que a circunstanciaram. Entender os sentidos imanentes dessa proposta é buscar possibilidades de entendimento acerca do processo de produção das políticas, procurando o ressoar dos estranhamentos contidos nas deliberações de implementação curricular.

Compreender, então, como se processaram as tensões que permitiram a construção de uma proposta curricular, tangenciada por inúmeras deliberações internas e externas, procurando situar os meandros pelos quais a proposta curricular do Ceará se legitimou, constituiu um desafio deste trabalho.

Tomo por base as definições de Ball (1998a) para afirmar que as políticas curriculares sempre são incompletas, tendo em vista a profusão das práticas locais. Para o autor, a análise das políticas requer uma compreensão que é baseada não no geral ou local, na macro ou na micro-restrição, ou ainda na intervenção, mas nas relações que se trocam entre eles e a sua interpenetração. Nesse sentido, as práticas potencializam as políticas da mesma forma que essas influenciam aquelas.

Essa ‘influência’ é identificada por Ball (1994) como componente de um contexto que opera, direta e indiretamente no centro produtor das políticas educacionais. Para Lopes (2004), é nesse espaço que normalmente as definições políticas são iniciadas e

os discursos políticos são construídos na disputa entre o que significa ser educado e quem influencia as finalidades sociais da educação. Fazem parte dessa esfera de influência as disputas políticas entre as redes sociais dentro e em torno dos partidos políticos, do governo, do processo legislativo, das agências multilaterais, etc., ou seja, o espaço de negociações sobre os dispositivos legais das políticas curriculares.

O contexto de influência é a instância mais formal onde os discursos adquirem legitimidade e formam um discurso de base para a política (MAINADES, 2006). Essa circunstância coloca o contexto de influência numa posição de destaque, embora não tenha uma dimensão temporal em relação aos outros contextos, inclusive pelo fato de que as etapas não são lineares ou seqüenciais.

Na proposta curricular do Ceará o discurso de base para sua implantação estava fundamentado no estabelecimento da política educacional Todos pela educação de qualidade para todos, fortemente relacionado com instâncias produtoras de políticas externas, mas sem perder de vista o desenvolvimento das culturas escolares nas instituições, ou seja, sem fugir aos acordos e às orientações externas, embora estivesse atento ao movimento realizado pelos educadores.

Articulado ao complexo espaço de influência, co-atua um segundo contexto identificado por Ball (1994) como sendo o ‘contexto de produção de textos’, que se estabelece dentro do centro produtor de políticas, materializando-se em textos políticos os quais representam a política educacional estabelecida. Para Lopes (2004), há uma associação estreita entre ambos os contextos, sendo esse o espaço no qual se produzem os documentos curriculares.

O contexto de produção de textos está freqüentemente associado ao resultado de disputas e acordos de grupos que competem internamente na definição da política. De acordo com Mainardes (2006) normalmente, os textos políticos são articulados com a

linguagem do interesse público mais geral, uma vez que a política não é feita e finalizada no momento legislativo, e os textos precisam ser lidos e interpretados em relação ao tempo e ao local específico de sua produção.

A produção do texto curricular do Ceará, além de trazer embutidas essas articulações, comportava perspectivas diversas, em função das filiações teóricas e políticas de seus autores; em relação aos acordos para condensar as propostas anteriores e os anseios advindos de iniciativas escolares, e em função da força política da SEDUC na composição da produção desse texto.

O terceiro contexto identificado por Ball (1994) é o da ‘prática’, no qual as idéias de políticas são recebidas e interpretadas diferentemente dentro de arquiteturas políticas outras. A partir da forma como a instituição discute sua organização interna e suas ações, esse contexto assume contornos variados, mostrando-se, assim, atrelado à discussão travada no processo de construção da cultura escolar. Para Lopes (2004), é no contexto da prática que as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas. Desse modo, as escolas como contexto de práticas políticas influenciadas pelos outros dois contextos, reinterpretam e recriam novas políticas curriculares.

Essa abordagem assume que os professores e demais profissionais que trabalham na escola exercem um papel ativo no processo de interpretação das políticas educacionais, e o que eles pensam e no que acreditam têm implicações para o processo de implementação das políticas (MAINARDES, 2006). Na escola pesquisada, as iniciativas tomadas pelo coletivo dos educadores têm relação com suas concepções de escola, de gestão, de ensino, com seus valores e hábitos que modelam as maneiras de fazer próprias da instituição. Ao desenvolverem suas práticas, a partir da discussão sobre a escola, reinterpretam as decisões curriculares e o contexto da prática cria, então, novas políticas.

Os três contextos citados não mantêm entre si uma relação linear nem homogênea, entretanto, eles compõem um espaço conflituoso de produção de conhecimento, uma arena de disputas, que fazem da política curricular uma política cultural. São, pois, acontecimentos plurais que misturam silêncio, olhar do silêncio, diálogo, narrativa, espaços nômades de vida inseridos à escola, como bem lembra Lins (2005:1239).

De acordo com Ball (1998) embora não haja uma idéia ou um conjunto de idéias principais, funcionando como um ‘pacote’ que sustenta a definição das políticas, é inegável reconhecer que existe uma disseminação de influências e que políticas são articuladas tanto para atingir resultados essenciais quanto para produzir o suporte desses resultados.

A política educacional, implementada na gestão do Governador Tasso Jereissati, entre os anos de 1995 e 2002, e cuja culminância foi o estabelecimento da Reforma Curricular Estadual, numa tentativa de padronização do currículo, constituiu parte dos acordos de ordem estrutural firmados com organismos internacionais. Esses organismos dispõem sobre a recuperação da qualidade do ensino fundamental e a política educacional está fortemente relacionada a uma plataforma de governo no processo de convergência dessas políticas resultantes de nexos de influência que combinam lógicas globais e locais, como sugere Ball (1998).

No que se refere à política educacional brasileira é importante lembrar que, desde a Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtiem, na Tailândia, em 1990, passando pelo Plano Decenal de Educação para Todos - 1993-2003, elaborado pelo Ministério da Educação e culminando com as formulações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB - 1996, a recuperação da qualidade do ensino fundamental está em pauta, acrescida da idéia de redução das responsabilidades do Estado.

A política educacional cearense não acontece desvinculada da política educacional brasileira. É a partir das relações do Brasil com o Banco Internacional para

Reconstrução e Desenvolvimento Mundial – BIRD (conhecido como Banco Mundial), com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, e com as demais agências internacionais, que se compõe o financiamento de grande parte dos projetos educacionais brasileiros, gerando um realinhamento às orientações dessas agências de fomento. Esses projetos são acordados pelo Ministério da Educação e pelas Secretarias de Educação de alguns Estados da Federação, entre eles o Estado do Ceará, que também firma acordos com organismos multilaterais de crédito.

Por mais que as políticas educacionais brasileiras tragam, na sua configuração, a prerrogativa das esferas internacionais através do que Soares (2000) chama de intervenção consentida ou consentimento para a intervenção, essas prerrogativas são respaldadas em decisões e projetos internos que as legitimam.

Com a deflagração do conjunto de medidas que vêm referendar o projeto governamental, o sistema educacional brasileiro passa por intensas alterações. É instituído o controle do sistema escolar por uma política de avaliação em todos os níveis de ensino, ao mesmo tempo em que, medidas de ajuste são implementadas, como: racionalidade de recursos, ênfase no ensino fundamental, discurso da qualidade, formação em serviço em detrimento da formação inicial, entre outras.

De acordo com Ball (1998a), a disseminação e institucionalização de influências sobre as reformas são concebidas em condições de aceitação prévia, nos padrões de convergência da política educacional, o que dá possibilidades de interpretações próprias da heterogeneidade de cada País, capazes de permitir diversos rumos para as políticas curriculares na relação com as práticas escolares.

Para Lopes (2004), as políticas curriculares estão sempre em processo de vir a ser. Os textos oficiais e não oficiais, no seu processo de circulação, são ressignificados, se associam a fragmentos de outros textos, em um processo que Bernstein (1996) chama de

recontextualização, referindo-se à apropriação ou à transferência de discursos de um contexto para outro.

A recontextualização indica a proeminência da circulação de textos e discursos concorrendo para constantes reinterpretações realizadas nos diversos níveis de produção de políticas. Convém, contudo, entender que essas reinterpretações não se limitam apenas a processos de seleção e distribuição de conhecimento, mas com igual preponderância às políticas culturais, com suas heterogeneidades e variedades de mensagens.

Ainda que a institucionalização do currículo do Ceará estivesse baseada em princípios reguladores externos, ela não se configurava como mera reprodução, porque articulava diferentes tradições e discursos, traduzia novas experiências, mobilizava alguns sentidos e reprimia outros consolidando, assim, em um espaço plural ao qual não se pode atribuir apenas um sentido (DUSSEL, 2002).

Ao considerar as articulações entre os múltiplos contextos produtores de políticas curriculares, Ball (1998a, 1999, 2001) defende que, no mundo globalizado os processos de recontextualização são, sobretudo, produtores de discursos híbridos. Nos processos de hibridismo, como advoga Garcia Canclini (1998), a cultura assume um caráter difuso no qual identidades e diferenças se mesclam, fecundando processos de desterritorialização e reterritorialização capazes de romper hierarquias, instaurando múltiplas ressignificações e novos sentidos.

Ball (2001) admite uma ambivalência das políticas e as considera resultados de acordos, produtos de um nexo de influências e interdependências que resultam numa interconexão e hibridização das lógicas globais e locais. Há sempre uma tensão global-local nos processos de recontextualização, pois ao mesmo tempo em que os discursos curriculares são globalizados, são também inseridos em contextos locais de forma a se legitimarem e a se desenvolverem.

As políticas curriculares cearenses incorporam múltiplas vozes configurando-se em construções híbridas em razão dos seus antecedentes históricos, em conseqüência dos aportes que respaldam sua composição, e em função das negociações internas e externas que formulam esse arcabouço curricular.

Desse modo, a reforma congrega discursos oriundos de agências multilaterais; de articulações políticas nacionais; de proposições outras acerca do ensino em ciclos; de negociações internas acerca dos saberes e das práticas cotidianas; de perspectivas disciplinares e interdisciplinares como eixos articuladores e de orientações teóricas construtivistas que embasam os fundamentos da prescrição.

As múltiplas vozes que constituem esse hibridismo trazem a marca da ambivalência para o currículo e refletem uma construção social e política dos atores envolvidos, realizada em condições históricas específicas.

De acordo com Lopes (2005), a ambivalência nos textos e nos discursos das políticas de currículo pode produzir deslizamentos de sentidos que favoreçam a leitura heterogênea e diversificada nos diferentes contextos. Isso não significa, entretanto, que a hibridização, por si só, supere as hierarquias. Significa, sim, a abertura de possibilidades de ação, conferindo aos diversos contextos múltiplos sentidos e significados.

O fato de o texto curricular conter um caráter heterogêneo não equivale a avanço, nem garante a horizontalidade de perspectivas, mas representa uma diversificação de idéias, o que dá oportunidade de construção de novas formas de entendimento acerca dos textos apresentados uma vez que a variedade de idéias que circulam pode fazer surgir uma multiplicidade de novas proposições, ações, etc.

Os sentidos construídos pela escola no desenvolvimento da política educacional Todos pela educação de qualidade para todos reterritorializam concepções, referenciais, saberes, práticas, contextos. A reforma curricular propriamente dita ou o Projeto Escola Viva: organização do ensino em ciclos, pelo seu caráter híbrido, contempla a formulação de diversos discursos, o que gera novos sentidos e novas práticas e permite sua análise a partir da abordagem do ciclo de políticas.

Assim, as vozes manifestas na formulação das práticas curriculares articulam elementos do contexto de influência, do contexto de produção de textos e da prática. A política educacional do Ceará, tão efusivamente referenciada pelos educadores da escola pesquisada - como se pode perceber nas atas e nos registros ordinários do seu arquivo -, indica que o ciclo de políticas está fortemente marcado em sua política educacional cujas imbricações estão muito visíveis no cotidiano escolar.

Na tentativa de situar aspectos relacionados com tal política, apresento, no capítulo seguinte, amarras e ramificações que caracterizam o cenário político cearense no qual a política educacional teve origem e o processo em que a reforma transitou para chegar às escolas.

Capítulo 2:

Condições sócio-históricas de efetivação de uma política educacional

“A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças”.

Hanna Arendt.

Neste capítulo, abordo aspectos relacionados com o estabelecimento da política do conhecimento escolar, procurando entender os jogos de intercâmbios que se enredam através de acordos, negociações e disputas que se movimentam para consolidar uma reforma curricular.

Tento entender os contornos e desvios que permeiam os caminhos de implementação curricular, procurando vislumbrar os desdobramentos dos seus movimentos de expressão, relacionados aos elementos de poder que compõem o cenário dessa implementação, enquanto a formulam.

Assim, focalizo a trajetória da reforma, com suas veredas e seus roteiros entrelaçados no mapa educacional cearense, ao tempo em que tento situar a organização administrativa do Ceará naquele momento, as modificações sociais, políticas, econômicas e culturais do Estado e sua relação com a política do conhecimento.