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Exemplo 20: Célula rítmica do semba (GIL 2008, p.111,139)

2 IDIOMATISMO INSTRUMENTAL E INFLUÊNCIAS DA MÚSICA BRASILEIRA

2.2 Influências da música brasileira sobre a linguagem idiomática do violino

O estilo musical de Flausino Vale foi muito influenciado pela música caipira, com a qual ele teve contato durante sua infância, época em que viveu no ambiente rural da região de Barbacena. Flausino incorporou a seus prelúdios vários elementos sonoros próprios desse ambiente: o som de violas caipiras e tambores e sons dos ambientes das fazendas, da natureza e das cidades interioranas. Isso está demonstrado na subseção 3.3.2, Elementos brasileiros e imitação de sons do ambiente externo.

2.2.1 Viola de arame

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Como informado por Corrêa, a viola brasileira, derivada de Portugal, “trazida por colonos e jesuítas portugueses”, possui vários nomes, de acordo com sua utilização ou características próprias: “viola de dez cordas, viola de pinho, viola caipira, viola nordestina, viola de fandango, viola sertaneja, viola de feira, viola brasileira, viola branca, viola pantaneira, viola campeira, entre outros” (CORRÊA, 2000, p.21, 29). Para esse autor, a nomenclatura mais apropriada para designar a viola brasileira seria “viola de arame”:

[...] a todas as espécies de violas diretamente oriundas do popular instrumento português do século XV. Esta opção surgiu da necessidade de um termo que represente, atualmente, de forma genérica e inequívoca, o instrumento em si. A adoção do termo “viola”, sem adjetivação, que seria o ideal para tal função, não é capaz de exprimir a precisão necessária: ele já é utilizado referindo-se ao instrumento de cordas friccionadas da família do violino, como também, em algumas regiões de Portugal, ao instrumento de seis cordas simples que conhecemos por violão. De maneira informal, embora não frequentemente, a designação “viola” também é utilizada no Brasil para referir-se ao violão.

O termo “viola de arame” é capaz de qualificar o instrumento em todas as suas variações. De fato, o uso de cordas metálicas é hoje característica comum às violas em questão e marca a sonoridade do instrumento. É nome que, atribuído a todas as variações do instrumento, não se opõe às particularidades de cada um. Assim, viola caipira, viola de

fandango, viola nordestina, viola braguesa, viola campaniça, viola de dois corações são tipos diferentes de viola de arame (CORRÊA, 2000, p.29).

26 Roberto Corrêa, após buscar, sem muitos resultados, por um material dedicado ao ensino da viola

de arame no Brasil, decidiu pesquisar sobre o instrumento diretamente na “tradição ancestral da viola” (de arame) através da oralidade e da memória dos “antigos violeiros”. Para isso, coletou e desenvolveu materiais que culminaram, vinte anos mais tarde, com a publicação do livro A Arte de

A Figura 1, abaixo, apresenta as partes da viola e suas denominações

mais usuais, segundo Corrêa:

Figura 1:As partes de uma viola caipira, segundo Corrêa (2000, p.31).

Marena Salles (2007, p.43, apud FRÉSCA, 2010, p.168) sugere que há fortes indícios de que Flausino Vale, devido ao fato de ter nascido em Barbacena, cidade próxima a Conselheiro Lafaiete (ambas localizadas no estado de Minas Gerais), tocava ou ao menos tinha tido vários contatos com a viola de Queluz. Vale dizer que as violas de Queluz também são variações das violas-de-arame ou violas caipiras:

A viola artesanal que alcançou maior fama foi a viola de Queluz – atual cidade de Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais – produzida ali, onde havia várias oficinas, no final do século passado e início deste. A viola

de Queluz seguia o modelo da antiga viola toeira de Portugal, apresentando

doze cordas distribuídas em cinco ordens, sendo as duas últimas com três cordas, cada – um bordão e duas cordas finas (CORRÊA, 2000, p.23).

Segundo Goulart, citado por Corrêa, as violas de Queluz foram, inclusive, fabricadas para a Corte de Dom Pedro II após 1889 (GOULART, 1961 apud CORRÊA, 2000, p.23). Essas violas possuíam medidas do bojo (caixa de ressonância) de aproximadamente 43 cm (CORRÊA, 2000, p.30).

Finalizamos esta seção com um comentário do próprio Flausino Vale sobre a viola sertaneja e a música sertaneja em geral:

[...] não há quem, por mais versado nos clássicos, por mais ilustre que em música seja, não fique tomado de sublime enlevo, completamente embriagado pela delícia dos sons, ao ouvir um sertanejo tanger uma viola, ao presenciar a música bárbara e asselvajada de um batuque ou candomblé.

[...] A melodia que escapa da garganta rústica de um sertanejo é como se fora a própria natureza cantando pela sua boca (VALE, 1972, p.10-11 apud ALVARENGA, 1993, p.25).

2.2.2 Música Caipira

O termo “música caipira”, segundo Corrêa, “remete-nos aos diferentes estilos e gêneros da música produzida pelas duplas caipiras”. Já o termo “música de expressão caipira” abrange de “músicas de autoria produzidas no contexto das manifestações tradicionais a composições modernas e desvinculadas de regras e estilos definidos”. Além disso, segundo o autor, os dois termos se referem a música produzida por pessoas que vivem na porção Centro-Sul do Brasil, porque essa região e a cultura de seu povo estariam ligadas à “essência do meio rural”, que tem influência sobre as expressões artísticas oriundas desse local mesmo que os autores não a tenham vivenciado de fato. Em outras palavras, Corrêa defende que a “essência da música caipira” é o “elo com a tradição, com o meio rural e seus códigos subjetivos”, ainda que esse elo tenha sido criado de forma indireta (CORRÊA, 2000, p.63-64).

Ainda segundo Corrêa, a música tradicional caipira abrange:

“[...] os toques de viola, as maneiras de se entoar a voz, os ritmos percussivos, os trejeitos na dança, melodias, versos, toadas e muito mais, criações com autorias pouco definidas, ou cujas autorias se diluíram no tempo, e que se foram apurando no gosto popular (CORRÊA, 2000, p.65).

Outros elementos muito marcantes da cultura musical caipira são a religiosidade e a fé, assim como a forte presença da poesia (CORRÊA, 2000, p.65-67). Esses elementos, além do costume de se cantar em duplas, têm origem nas tradições populares:

Trazendo elementos das manifestações populares – como Folias e

Catiras – as duplas representavam muito bem o gosto popular do meio rural

e acabaram criando um estilo, que eu denomino “estilo das duplas”. Este ‘estilo’ caracteriza-se, principalmente, pela utilização de ritmos típicos do meio rural; pelo canto, entoado em dueto; e pela instrumentação, geralmente composta por viola e violão, conhecidos como “casal”.

Em suas composições e interpretações, as duplas caipiras aproveitaram estruturas musicais já presentes no meio rural. Assim, funções tradicionais acabaram consolidando-se como gêneros da música brasileira. Foi o que se deu, por exemplo, com os ritmos de danças como Cateretê, Batuque, Mazurca, Querumana, Cana Verde, entre outras – frequentes nos bailes populares – largamente difundidos na discografia da música caipira.

O dueto está presente na maioria das funções populares. Pode-se dizer que a noção de duas vozes, entoadas em terças e sextas, é quase intuitiva no meio rural. É comum alguém cantar uma melodia e outra pessoa, naturalmente, fazer uma segunda voz, em terças ou sextas.

[...] A estrutura musical das canções das duplas é, basicamente, a mesma: introdução e parte A, que se repetem de acordo com o tamanho da poesia. Em alguns casos, é acrescentado um refrão. As poesias privilegiam as quadras e a métrica de sete sílabas.

A harmonia é simples, e grande parte das músicas utiliza-se de uma tonalidade maior, centrada nos acordes de Tônica Sétima da Dominante, e Subdominante. [...]

Com o tempo, alguns músicos e compositores foram acrescentando inovações: na estrutura musical, com o acréscimo de uma parte B; e, na evolução do dueto, com a utilização de movimentos contrários e oblíquos. Apresentam belos exemplos André e Andrade, em Flor do Ipê, de Djalma, André e Andrade; e a dupla Pedro e Paulo, em Tropas e Boiadas, de Tony Damito e Carlos César.

Na parte melódica e harmônica, houve também evoluções. O grande poeta Gerson Coutinho da Silva – nome artístico Goiá – compunha melodias primorosas, com a harmonia repleta de modulações, que obriga seus intérpretes a realizarem trabalho vocal cuidadoso, originando belíssimas interpretações, como as da dupla Zilo e Zalo (FERRETE, 1985

apud CORRÊA, 2000, p.69).

Flausino Vale, cujas composições são objeto de pesquisa desta dissertação, é um significativo representante da cultura caipira, discutida em toda esta seção. Nascido e criado no meio rural, o compositor vivenciou as tradições desse ambiente. Pelo fato de ter buscado imprimir a essência da cultura caipira em seu trabalho composicional, pode ser considerado um canal de expressão da cultura caipira.

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FLAUSINO VALE E SEUS 26 PRELÚDIOS CARACTERÍSTICOS