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Informações sobre o processo de construção da obra (Documentários,

4 A PSICANÁLISE

5.2 Análise dos extras

5.2.3 Informações sobre o processo de construção da obra (Documentários,

A vocação de um documentário, em um extra é, basicamente, prover o público com informações de um determinado universo, delineando, com o auxílio da

32 Não só no sentido de deslocamento no espaço ou no tempo, e a distância dele resultante, mas,

sobretudo, na acepção mais profunda de falta de concordância. A esse respeito, consultar: PETIT LAROUSSE ILLUSTRÉ 1991. Paris: Larousse, 1990, p. 294, tradução nossa do verbete do dicionário.

câmera, aspectos da “realidade”. Para atingir esse objetivo, ele faz uso, na maioria das vezes, de entrevistas e de imagens dos bastidores do set de filmagens. Esses recursos buscam construir, aos olhos do espectador, um efeito de “verdade”, a ilusão de saber o que haveria do “outro lado” da cena fílmica.

Organizado a partir de procedimentos de revelação dos processos pelos quais o filme – seja na condição de texto, seja na condição de produto disponível no mercado – teria passado antes de atingir sua completude, o documentário, no espaço dos extras, procura apresentar-se como um momento de dissolução da ficção que garantiria a apreensão da integralidade das etapas de estruturação do objeto artístico. Assim, Claude Lelouch narra suas dificuldades financeiras e técnicas, enquanto Visconti é narrado por uma jornalista especializada em cinema. No primeiro, o relato face to face, do diretor ao público. No segundo, o discurso autorizado discorre sobre um mestre da Sétima Arte.

Especificamente, em “Noites Brancas”, a prova dos atores tira partido de imagens sem som e exerce a função de documentário do processo de elaboração dos personagens da trama. Nela, Marcello Mastroianni e Maria Schell dão prova de seu talento e sensibilidade pela linguagem gestual. A câmera registra toda a possibilidade expressiva latente em seus rostos. MukarvskY (1997, p.50) nos lembra que, para o ator, “o gesto é um fato artístico em que domina a função estética”, o que lhe permite uma certa margem de liberdade de criação e de transformação em relação ao sistema de gesticulação presente no cotidiano das relações sociais.

O documentário dos bastidores de “Um homem, uma mulher” destaca os mínimos movimentos de Anouk Aimée, desde seu modo de olhar até sua forma “genuína” de caminhar. Nas cenas que necessitam de refilmagem, o foco incide nos gestos de Jean-Louis Trintignant, reveladores de sua maneira apressada de fazer as coisas, atestando seu próprio savoir-faire de ator, já que seu personagem, na narrativa em questão, é um piloto automobilístico.

A palavra francesa coulisse, que no plural “equivale”33 ao vocábulo bastidores, em português, é bastante interessante para pensarmos o que esses elementos dos extras podem introduzir de atrativo na configuração geral do DVD.

33 A noção de equivalência é sempre problemática. Deixemos esse debate para seus legítimos

Coulisse34, substantivo feminino, de porte coulisse, porta que desliza. Designa a parte de um teatro situada atrás do palco e fora do campo de visão do público. Demarca o que está escondido, conotando o lado secreto de algo.

Geralmente as imagens de bastidores expõem os erros, as gafes, as dificuldades de realização de uma obra cinematográfica, os risos, as lágrimas, enfim, o que há de humano – autêntico, talvez – em um produto midiático.

Os bastidores constituiriam, curiosamente, o locus por excelência de êxitos35, de uma felicidade própria da argúcia, em que, no plano do discurso, se vê oscilar a ordem lingüística, e o sem sentido é descoberto, em um instante, como capaz de fazer vacilar as significações mais estabelecidas. Isso porque no chiste e nos lapsos, o sujeito é sobrepassado por sua criação (MILLER, 2002, p.30). Mas, o que é o que equivoca? O que é o que faz equivocar? A psicanálise descobre que os equívocos se produzem em relação com a verdade (KATZ, 2006, tradução nossa).

Todavia, se “a verdade revela aí sua ordem de ficção” (LACAN, 1978, p.24), os bastidores tentam se caracterizar como o espaço de surgimento de uma verdade capaz de promover um retorno ao in-forme e de evidenciar processos eclipsados pelo esquecimento para gerar informações inéditas a respeito das relações tecidas entre as figuras que, nele, são protagonistas.

O adjetivo fictício, em Lacan, encontra sua referência no filósofo Jeremy Bentham, onde não toma a conotação de “ilusório, nem a de fingimento ou invenção falseadora”. “As ficções, devendo a sua existência inteiramente à linguagem, participam de um modo particular da realidade – aquela verbal, advinda de um radical descolamento da referencialidade imediata” (WAJNBERG, 2001, p.157).

“O sujeito é patológico por definição, sujeito ao pathos” (QUINET, 2003, p.16); ele é não-identificável e pode, por isso, ter várias identificações. Não tendo substância, ele se manifesta na hesitação, na dúvida entre isto e aquilo. “Desejo é o nome do sujeito de nossa era: a era freudiana (p.13)”.

Está claro que as imagens de bastidores têm como matéria-prima as emoções. E as críticas especializadas? A nosso ver, elas dilatam ainda mais essa quimera de maîtrise, de acúmulo e domínio de informações por parte do receptor.

34 Cf. PETIT LAROUSSE ILLUSTRÉ 1991. Paris: Larousse, 1990, p. 268, tradução parcial do verbete

do dicionário.

Barthes (2003, p.161-162) afirma que o discurso crítico nunca é mais que tautológico: ele consiste em “dizer com atraso, mas colocando-se inteiramente nesse atraso, que por isso mesmo não é insignificante”. A “prova crítica”, na reflexão barthesiana, se existe de verdade, depende de uma aptidão não para descobrir a obra interrogada, mas, ao contrário, para cobri-la o mais completamente possível com sua própria linguagem.

De modo geral, a articulação de um discurso supõe que sejam situadas as duas vertentes que o especificam: a vertente do enunciado e o ato enunciativo que origina esse enunciado. Uma distinção já clássica em Lingüística, mas que do ponto de vista lacaniano é essencial para especificar a relação que o sujeito falante mantém com o inconsciente e o desejo. Usualmente, é pela inscrição do “eu” que o sujeito se atualiza em seus enunciados. Contudo, o emprego de outros pronomes pode constituir um meio de engendrar uma certa neutralidade subjetiva por parte de quem enuncia, como é comum, a título de ilustração, no discurso didático. Neste tipo de discurso, constituído por enunciados gnômicos, o sujeito articula proposições generalizando ou universalizando. Cria-se, então, uma distância entre o sujeito do enunciado e da enunciação (DOR, 1989, p.115-117).

Podemos perceber que a heterogeneidade composicional de um DVD fílmico explora a oposição evidenciada no interior do sujeito por sua própria divisão constitucional – Spaltung36. “Se onde não está, ele pensa, se onde ele não pensa,

está, é precisamente porque está nos dois lugares” (LACAN, 1969-1970/1992, p.109, grifos do autor). A banda de Moebius expõe essa contradição. Dor (1995, p.110, grifo do autor) explica que “a faixa de Moebius é uma superfície unilateral de uma borda que pode ser obtida a partir de uma superfície quadrilátera chamada

polígono fundamental”.

36 Joël Dor explica que a divisão do sujeito implica, na perspectiva lacaniana, ter de se definir uma

parte de nossa subjetividade como sujeito do inconsciente, como sujeito do desejo. É preciso, portanto, distinguir o sujeito do enunciado, propriamente dito, de sua participação diretamente subjetiva que o invoca como tal no discurso. Esta participação subjetiva, que atualiza um representante como sujeito do enunciado num discurso será designada como sujeito da enunciação. O inconsciente emerge, pois, no dizer, ao passo que no dito a verdade do sujeito se perde, por somente aparecer sob a máscara do sujeito do enunciado, onde ela não tem outra saída, para se fazer ouvir, senão se meio dizer. Cf. DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan, v.1: o inconsciente estruturado como uma linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, p.114-118.

Esse polígono fundamental tem duas bordas vetorizadas em direções opostas. Para construir a faixa de Moebius, basta suturá-las, orientando-as na mesma direção, isto é, efetuando uma torsão (ibid.).

Nos bastidores, joga-se com o “isso fala”, apresentando o sujeito na suposta37 verdade de seu desejo; já nas críticas especializadas, procura-se apagar a participação diretamente subjetiva que o invoca como tal no discurso. Ele não é falado, mas uma autoridade no assunto fala dele. Por fim, os documentários promovem uma alternância entre essas duas vertentes discursivas.