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O desenvolvimento das tecnologias de reprodução do som, como procura apontar Sterne, envolveram um amplo sistema de interconexões sociais - o aparato de captação e transmissão, a formação de uma classe média receptiva, de técnicas de escuta (principalmente nos modelos pioneiros, a manipulação não era simples, envolvendo uma rede de assistência técnica e a produção de um material de orientação de uso para as novas tecnologias, tais como longos filmes publicitários e manuais de instruções) e um certo desejo do público por colaborar com as máquinas, uma disponibilidade para ouvir e estabelecer a correspondência necessária entre os dados percebidos e seu conteúdo informativo, distinguindo-o de seus ruídos externos e de interferências do próprio meio.

Todos esses fatores foram requisitos na formação de um sistema de convencionalização das práticas de escuta num nível denotativo e, tendo sido inicialmen-te imaginadas com fins utilitários - para atendimento a corporações com promessas de economia de trabalho, deslocamentos e mão-de-obra, a função dessas novas tecnologias foi adaptada às aplicações que seus usuários fizeram dela, principalmente no uso informal, evoluindo com as transformações da classe média.

Antes do fonógrafo tornar-se um meio para reproduzir música, foi uma ferramenta de escritório, uma forma de comunicação de longa distância, e um equipamento de gravação caseiro. Em outras palavras, as funções dessas novas tecnologias mudou à medida em que se moviam através de contextos culturais e em que eram fixadas em diferentes tipos de práticas culturais, incluindo o uso de outras tecnologias de reprodução do som. (STERNE, 2003: 192)41.

As primeiras transmissões de broadcasting (tecnologias que conectam de um ponto a vários), por exemplo, foram realizadas por telefone enquanto o rádio utilizou tecnologia ponto-a-ponto nos seus primórdios. As primeiras transmissões de programa-ção institucionalizadas por rádio só ocorreram nos anos 20, quando também o telefone, não tendo sido bem recebido pela dona de casa vitoriana, finalmente integrara-se à vida doméstica.

Os dispositivos de gravação de som precedentes, como relata Sterne, eram menos adaptados à reprodução de cópias fabricadas em larga escala, como os discos, que à produção de gravações personalizadas, sendo utilizados artesanalmente na manufatura de espécies de álbuns de família, como os fotográficos, o que se inverteria mais tarde, como sabemos, no estabelecimento da indústria fonográfica.

O rádio amador, no começo operando por código Morse, também fornece um parâmetro dessas transições: foi um dispositivo que permitia aos usuários adquirir mestria técnica e, comunicando-se com estrangeiros, transcender o espaço doméstico e a domesticidade das gravações vitorianas, integrando-se numa cultura de classe média mais ampla, construindo um sistema de redes sociais em torno das quais se poderia organizar e disseminar o consumo e esse fenômeno radiofônico, a respeito do qual Schaeffer fez o comentário "E acabou-se aquilo que nossos antigos designavam-se pela curiosa expressão “o muro da vida privada.”" (2010 [1941-1942]: 28), que viria a ser igualmente induzido pelo disco, ao proporcionar um acesso compartilhado por vários consumidores em vários lugares ao mesmo tempo à cópia.

Com a popularização dessas tecnologias, Jakobson chama a atenção para o aparecimento de uma habilidade e um hábito segundo os quais "(...) Graças ao telefone, ao fonógrafo, e sobretudo à rádio, habituámo-nos a ouvir a palavra desligada do sujeito falante. O acto fonatório apaga-se perante seus produtos fónicos. É a eles que cada vez mais nos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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(…). Before the phonograph became a means for reproducing music, it was an office tool, a form of long- distance communication, and a home recording device. In others words, the functions of theses new technologies shifted as they moved across cultural contexts and as they were embedded in different kinds of cultural practices, including the use of other sound-reproduction technologies.

prendemos." (1977 [1942]: 28 [sic]). A observação é interessante porque essa prática de "escuta acusmática"42 deve ter tido uma importância especial na descoberta e isolamento do "objeto sonoro" como elemento básico de estudo e composição, ainda que Schaeffer nos previna de que ela não o criou ipso facto (1966: 268): "Se Pitágoras se faz ouvir, assim, oculto, ao discípulo, é porque ele pensa que se ouvirá melhor, e o que ele é, e o que ele diz." (SCHAEFFER, 1966: 153).43

Assim, através dessas transições sociais foram sendo exploradas, alteradas com as mudanças de atitudes e as provocando, por outro lado, as propriedades dos “relés”. O que ocorre com suas descobertas como meio de expressão é a formação de outros sistemas de convencionalização das práticas, que se manifestam no nível conotativo. Trata-se de um campo amorfo, que tendo ultrapassado o âmbito da pura obsessão pela fidelidade - e consciente tanto de sua impossibilidade material tanto quanto da limitação ideológica imposta por essa vontade de reconstrução do original, toma referências da literatura, do teatro, da música, das artes plásticas, entre outras, para elaborar algo que se passará entre a técnica e a estética, entre a captação e o produto montado e a que já haviamos caracterizado por aquela analogia do rádio com a arte da balística.44

A metáfora, que se extende às outras tecnologias de reprodução, quer compreen- der, por esse “uso da arma”, o desenvolvimento de um conhecimento tático, de uma prática e um saber sobre o poder da linguagem do concreto em "sugerir" e "ser bela" (no sentido mais genérico do termo, ser "expressiva"), ou seja, em criar, abrindo-se, assim, um leque, do qual Kurt Weill nos oferece uma amostra nesse texto de 1925, de interesses e problemas concernindo a pesquisa de efeitos estéticos e dramáticos.

O que o filme trouxe de novo: a mudança contínua de cenário, a simultaneidade de dois eventos, o andamento [Tempo] da vida real e o tempo mais acelerado da comédia satírica, a veracidade - similar à das marionetes - do filme de animação e a possibilidade de se seguir uma linha desde sua criação até sua transição em outras formas, tudo isto - transposto para relações acústicas - o microfone também deve produzir. Assim como o filme enriqueceu os meios ópticos de expressão, também os meios acústicos devem ser imprevisivelmente multiplicados através da radiotelefonia. A “câmera lenta acústica” deve ser inventada - e muito mais. E tudo isso !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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42 O termo se refere aos sons que ouvimos sem ver sua proveniência. Pierre Schaeffer o utilizaria para pensar a escuta a partir das tecnologias de difusão do sonoro, recuperando-o de sua origem que remete à escola de Pitágoras e aos discípulos que ouviriam o mestre falar dissimulado por uma cortina. (OBICI, 2008: 30, 31). 43

Si Pythagore se fait entendre ainsi voilé au disciple, c'est qu'il espère qu'on entendra mieux, et c'est qu'il est, et c'est qu'il dit.

44 Uma imagem que ilustra metonimicamente essa citação é a de um rádio que se transforma em arma quando uma parte é movida, objeto que aparece duas vezes em La chinoise (1967), de Jean Luc Godard.

poderia então conduzir a uma radioarte absoluta. (WEILL, 2004 [1925]: 25).

Ao observar os processos de produção e as técnicas do cinema mudo, Kurt Weill é motivado por uma busca de equivalentes para discutir o desdobramento das novas tecnologias na produção e recepção de obras essencialmente acústicas, nos quais a montagem e o microfone teriam papéis fundamentais. (FREIRE, 2004: 9).

A articulação de Weill apresenta-se como um ponto de partida que conecta as preocupações desse autor a outros textos e experiências, numa investigação dos valores intrínsecos presentes nos limites e possibilidades dos materiais e na modalidade de arte proporcionada pelos relés, como destaca a passagem que se segue sobre o cinema.

Nós testemunhamos o nascimento de uma nova arte. Ela cresce por saltos e limitações, destacando-se da influência das artes mais antigas e até começando a influenciá-las ela própria. Ela cria suas próprias normas, suas próprias leis, e então confiantemente as rejeita. Está se tornando um poderoso instrumento de propaganda e educação, um fato social diário e onipresente; a este respeito está deixando todas as outras artes para trás. (JAKOBSON, 1981 [1933]: 732).45

Até aqui localizamos nosso problema com relação à algumas importantes questões que protagonizaram a história das artes, dos meios e das práticas com as quais ele se relaciona: ele se trata da realização de um roteiro de cinema, que reconhecemos como uma forma literária menor, degenerado pelo modo de construção utilizando sons como material e um método de fixação e montagem por meio de tecnologias de reprodução do som que podemos chamar já de cinematográfico ou simplesmente concreto.

Nos próximos passos nos concentraremos na essência desses métodos e meios cinematográficos ou concretos dos pontos de vista filosófico, prático e pragmático e suas implicações nas formas de apresentação dos materiais. Então, primeiro seguiremos as concepções de Deleuze na descrição da percepção e da produção de imagens/narrativas e, em seguida, os relatos de Schaeffer na fabricação de uma música concreta, procurando encontrar o que poderia haver de aproximação entre o que nos legaram essas duas abordagens dos relés para elaborar uma compreensão teórica desse problema que nos propusemos.

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We are witnessing the rise of a new art. It growing by leaps and bounds, detaching itself for the influence of the older arts and even beginnig to inflence them itself. It creates its own norms, its own laws, and then confidently rejects them. It is becoming a powerful instrument of propaganda and education, a daily and omnipresent social fact; in this respect it is leaving all the other arts behind.

Gostaríamos, após esse trabalho de procura e encontro de uma poética, de retomar um pouco às questões a que nos referimos, de imaginar qual a motivação dessa busca e como ela se insere nesse contexto mais amplo.

4 A PRODUÇÃO DE IMAGENS-NARRATIVAS

Pouquoi la fascination? Voir suppose la distance, la décision séparatrice, le pouvoir de n'être pas en contact et d'éviter dans le contact la confusion. Voir signifie que cette séparation et devenue cependant rencontre. Mais qu'arrive-t-il quand ce qu'on voit, quoique à distance, semble vous toucher par un contact saisissant, quand la manière de voir est une sorte de touche, quand voir est un contact à distance? Quand ce qui est vu s'impose au regard, comme si le regard était saisi, touché, mis en contact avec l'apparence? Non pas un contact actif, ce qu'il y a encore d'iniciative et d'action dans un toucher véritable, mais le regard est entraîné, absorbé dans un mouvement immobile et un fond sans profondeur. Ce qui nous est donné par un contact à distance est l'image, et la fascination est la passion de l'image.

Maurice Blanchot46

Este capítulo apresenta alguns conceitos elaborados por Deleuze para classificar as imagens cinematográficas. Verificaremos posteriormente (capítulo 5) que relações poderiam haver entre a fundamentação que Deleuze utiliza para teorizar o cinema e descrever suas variedades e a formalização que Pierre Schaeffer empreende sobre suas observações entre eventos sonoros, registro e percepção.