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A construção das reformas navais: os debates parlamentares e ministeriais acerca da construção do oficial naval e sua educação.

2.1 A influência dos programas navais europeus na construção acadêmica militar da Academia de Marinha.

2.1.1 O Caso inglês – a Royal Navy

A supremacia inglesa no século XIX foi algo incontestável. Historiograficamente, em diversos estudos com temas variados, encontra-se referências à liderança inglesa em assuntos comerciais, econômicos e políticos que preencheram o contexto aqui apresentado.231 Nos oceanos a presença naval britânica foi constante, e a conhecida Royal Navy liderou as rotas marítimas e estabeleceu ordens navais em um momento que ficou conhecido como Pax Britannica. Como aponta Michael Lewis, a excelência do poder naval britânico oitocentista surgiu em meio a transição do papel da Marinha no cenário inglês que gradualmente se construía na nova era alicerçada no Estado, nação e cidadania, para a Marinha, especificamente, surgia uma gama de questões que destinava a entrada desta instituição em

229 HUNTINGTON, 1996, p. 58. 230 Idem 231

Uma síntese sobre a presença inglesa no século XIX cf. GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A Presença Inglesa

nas Finanças e no Comércio no Brasil Imperial. Os casos da Sociedade Bancária Mauá MacGregor & Co. (1854-1866) e da firma inglesa Samuel Phillips & Co. (1808-1840). São Paulo : Alameda, 2012

62 um serviço militar moderno232. Neste novo âmbito o papel da Marinha inglesa mudou em dois sentidos: em sua natureza e em seu propósito. O primeiro sentido em sua natureza ocorreu de modo geral as marinhas ocidentais, pois este sentido estava ligado aos quesitos tecnológicos, já citados ao longo do trabalho, que envolviam as mudanças nos navios e armamentos com a introdução do ferro e do vapor nos círculos do pessoal naval. A essa primeira transformação se ligou outra de maior calibre, referente ao papel da Marinha e mais restrita a política naval britânica e que se tornaria guia das relações navais oitocentistas: a questão da defesa do livre comércio. Para Lewis, a maior descoberta da política naval inglesa estava na construção de um império baseado exclusivamente no comércio, e não na conquista, fato reforçado pela mudança de direção inglesa quando em seu discurso começou a anunciar o livre-comércio, inspirados pelos ideais iluministas.233

A projeção do discurso do livre comércio nos oceanos preconizado pelos ingleses possibilitou para Lewis,

“ the sense to see that what really best suited our book was Free Trade, as free as possible and as much of it as possible. So, having by the incomparable exertions o four Navy secured the dominion over the seas, we decided to use that domination in the conscius effort to establish the freedom of the seas: for, by so doing, all civilised nations would be the gainers, while we, as the biggest user, would be the greastest gainer”.234

O desdobramento deste novo pensamento articulou um novo propósito a Royal Naval de que seu corolário seria a defesa da liberdade marítima, e a Marinha não tinha mais apenas o papel de defesa na guerra dos interesses britânicos, mas sim o dever internacional de policiar os interesses de todas as nações. Um exemplo desta nova orientação da política naval residiu na luta da abolição do tráfico de escravos por todas as nações subordinadas a Inglaterra.235

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LEWIS, Michael. The Navy in Transition (1814-1864): A Social History. Londres: Hodder and Stoughton, 1965. p. 9 233 Idem, p.10 234 Idem, p. 11 235

Idem, p. 12. A respeito da pressão inglesa e seu desdobramento sobre o comércio negreiro atlântico e a plantation escravista conferir: BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. A Grã-Bretanha,

o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Tradução de Luiz A. P Souto Maior. Brasília: Senado

Federal, Conselho Editoria, 2002; FLORENTINO, Manolo. Uma lógica demográfica elástica: El Abolicionismo Britânico y la plantatión esclavista en Brasil (1789-1850). Historia critica [online]. 2012, nº. 47, pp. 139-159. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S0121-16172012000200008&script=sci_arttext

63 A primazia da Royal Navy como instrumento da Pax Brittanica ajudou a consolidar ainda mais a liderança da Inglaterra no cenário internacional e a colocar sua frota como exemplo a ser seguido. Entretanto, apesar de continuar no topo no século XIX a Marinha inglesa era uma instituição em transição, voltada a formulação de uma estrutura mais moderna tanto tecnologicamente como administrativamente. Michael Lewis demarcou as décadas de 1840, 1850 e 1860 como focos principais das modificações, e foi nesse período que se iniciou a instalação de vapor e ferro na construção dos navios236, o uso de novas armas e também regulamentação do oficial moderno, que seria aquele profissional com dedicação exclusiva a Marinha, além de uniformização e padronização das especialidades dentro da força.237

Dentro destas modificações encontra-se a construção de uma oficialidade naval alicerçada em novos parâmetros. O processo de modernização obedeceu a certos padrões de carreira ligados a entrada, educação, promoção, patente entre outros quesitos que conformaram aos poucos as linhas de uma profissão seguida integralmente e a serviço de um Estado e nação virtualmente estabelecidos. No caso inglês, a trajetória dos oficiais navais remonta o período de junção de dois atores de guerra da esquadra: “os homens do mar” e os “guerreiros”.238

Lewis explica que durante a época medieval a frota naval era reunida em tempos de tensão e sempre composta por navios do Rei e navios mercantes tripulados por pescadores, mercadores e soldados que cumpriam ações diferentes dentro da órbita naval, sendo os primeiros responsáveis apenas pela condução e manobra dos navios e o último pela gerência e manuseio da artilharia. Não havia uma Marinha, ou seja, uma força nacional marítima de guerra permanente.239 No século XVI, com a entrada do revolucionário canhão nos navios, surgiu uma nova especialidade a bordo dos navios que exigia além de administrar a manobra naval, também a direção intelectual para o ataque feito por canhões, já que ambas as funções eram agora parte de uma ação só. Todavia, isso não representou o surgimento por completo do oficial naval, e sim em uma categoria de homens do mar guerreiros que se difundiram na época de Henrique VIII. Apenas no período da Restauração inglesa que se principiou a ideia de organização de uma frota naval permanente e também de um corpo de oficiais mais rígido e dividido hierarquicamente em patentes. Contudo a Marinha continuava a

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“Entre os anos de 1850 e os 1890, a viagem da Inglaterra para a cidade do Cabo (África do Sul) foi encurtada de 42 para 19 dias”. FERGUSON, Nials. Império: como os britânicos fizeram o mundo moderno. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2010, pp. 185-186

237 LEWIS, 1965, p. 14 238 LEWIS, 1948, p. 40. 239 Idem, p. 19.

64 ser apenas parte do controle real, uma força privativa, mesmo tendo suas despesas transferidas aos cofres públicos.240 A consolidação de uma Marinha britânica voltada para a defesa nacional, aos avanços industriais e as novas exigências do poder naval foi algo gestado lentamente, assim como a conformação mais moderna da oficialidade, parte de interesse central para este trabalho.

O nascimento do oficial naval britânico moderno está associado aos avanços de etapas essenciais ao processo, já citados neste trabalho, que configuraram um tipo de profissional especializado na arte da guerra naval, gerenciador da violência do Estado e que conseguiria exercer uma profissão hierarquicamente dividida, galgada aos poucos através das promoções que eram estabelecidas de acordo com o tempo de serviço e mérito. Além disso, a forma de entrada estaria associada a educação técnica e militar oferecida por um treinamento e estudo. O século XIX representou para a formação da oficialidade britânica um momento em disputa, pois duas formas de entrada estavam em jogo: a primeira envolta na indicação dos comandantes dos navios, os voluntários de primeira-classe, e a segunda envolta na indicação do Almirantado (representante do governo), os voluntários do Colégio.

Historicamente na Inglaterra a forma de entrada e a educação dos oficiais navais estiveram associadas a um método onde as decisões ficavam a cargo do Comandante ou de oficiais dos navios. Eram eles responsáveis por um apadrinhamento dos voluntários ao oficialato colocando-os a bordo para uma aprendizagem na prática do ofício marinheiro, tanto de manobra como de comando. Em geral, a família do indivíduo procurava um oficial ou comandante e entregava o aspirante e sua carreira a proteção deste oficial, utilizava-se assim para entrar na Marinha inglesa uma rede de solidariedade baseada na amizade, privilégios e interesses.241 Tal ação conhecida como comitiva do capitão foi regulada ainda no século XVII, estabelecendo um número de aprendizes por Comandante. Tal prática permaneceria viva nas dependências navais até meados do século XIX, dificultando em alguns pontos a entrada de novos parâmetros para educação naval.242 Esse sistema de aprendizado era baseado na relação entre aprendiz e mestre, onde a evolução da carreira dependeria exclusivamente do Capitão ou do Oficial Naval responsável pela educação do aprendiz.

240 Idem, p. 46. 241 LEWIS, 1965, p. 99. 242 LEWIS, 1948, p. 70.

65 Algumas tentativas de mudança e controle deste sistema foram pensadas apenas a partir da Restauração inglesa, estabelecendo-se idade mínima de entrada e que parte do oficialato deveria ser escolhida pelo Almirantado. Com a evolução de novas configurações do Estado e a busca por um controle do governo sobre as forças militares, representante agora da defesa e o poder naval nacional as assertivas em torno de uma regulamentação florescem com mais vigor em fins do século XVIII com o surgimento de uma escola naval. Contudo, chegou- se ao início dos Oitocentos com a prevalência da escolha dos capitães dos navios para os futuros oficiais navais ingleses, e apenas 10% da entrada era realizada diretamente pelo governo.243 Apenas em 1838, o Almirantado de fato conseguiu estabelecer regras e maior controle na admissão dos novos aspirantes como a introdução de testes e conhecimentos necessários, além de uma base educacional mais rica e disciplinar.244

Já em fins do século XVIII, existiu uma instituição voltada a uma educação formal antes de se embarcar os aspirantes a oficial a bordo dos navios da Esquadra. Essa antiga escola naval, chamada Royal Navy Academy durou até 1837 e se voltou ao estudo teórico, entretanto não era uma escola formal e estava longe de ser parte obrigatória da carreira do oficial naval.245 Apenas alguns voluntários a oficiais frequentavam este espaço que era muito mais de estudo do que de ensino, pois não havia aulas e professores, e sim uma vasta cópia de grandes obras sobre técnicas navais. Em 1806, ganhou pequenas reformas trazendo maior teor escolar e técnico a formação, se iniciou estudos mais profundos científicos e acompanhados de uma equipe de professores.246 Segundo Lewis, em 1837 a escola foi fechada e reaberta em 1839 com uma nova natureza, voltada mais para um ensino adulto de tenentes e de guardas- marinha já estabelecidos na carreira. Todavia, foi importante por apresentar uma ação embrionária de instalação de curso técnico e educacional que ascenderia a história naval britânica a partir de 1873.247

Apesar de haver uma ação de formação em terra mais formal o pensamento político naval da Era Vitoriana se concentrou na tradição da educação realizada a bordo, como aponta Lewis, “a University man borne as Schoolmaster in every ship”.248 O Almirantado, em 243 Idem, p. 85. 244 Idem, p. 99. 245 LEWIS, 1948, p. 91 246 Idem. 247 Idem, p.92. 248 Idem, p. 93.

66 meados do século XIX, acreditava que apenas através da prática profissional se conseguiria formar os futuros oficiais navais, se consolidou assim uma direção educacional baseado no treinamento a bordo de navios-escolas ancorados em Portsmouth.249 Tal ação, nomeada Training Ship, se estabilizou entre os anos de 1857 e 1903, com a criação de um esquema de ensino a bordo de um navio-escola voltado à instrução, e que foi resultado direto das ações do pensamento naval inglês, iniciadas ainda na década 1830.

O sistema consistia em aliar um ensino mais profissional diário aos cadetes navais, que o realizavam a bordo de um navio ancorado no porto, mas também era herança direta da tradição inglesa de formar os oficiais navais desde muito cedo na vida marítima a bordo. Em um relatório entregue em 1879 por um professor naval americano ao Secretário da Marinha dos Estados Unidos, onde se encontravam informações sobre os sistemas navais educacionais da Inglaterra, França e Alemanha, se esclarece que250, neste período a bordo de dois navios se encontravam um grupo de cadetes navais ingleses que utilizavam a área como quartel e escola. Os navios eram dirigidos por um comandante e sua tripulação composta por oficiais instrutores encarregados da educação naval. A entrada dos cadetes era realizado pelo Almirantado, prevalecendo a política de nomeação como no tempo onde a escolha caberia ao comandante, a idade dos cadetes ficava na faixa entre 12 e 14 anos e exigia-se noções básicas de inglês e operações matemáticas.251 Na grade curricular se tinha espaço para dois grupos de conteúdo: o primeiro associado as ciências matemáticas e da natureza ligados a pratica naval como aritmética, astronomia; e o segundo ligado a desenhos e instrumentos da navegação.252 Os cadetes eram obrigados a fazer exames e a uma rotina de disciplina com regras a serem seguidas, e após a passagem neste navios os cadetes realizam um exame para seguirem sua carreira a bordo de um outro navio da marinha britânica como Guarda-Marinha, adentrando a carreira naval.253

A educação prática calcada na vivencia diária com a tripulação e as manobras no oceano ofereciam uma larga experiência e uma intensa socialização dos aspirantes a oficialidade, forçando a subordinação e a assimilação da vida marítima e militar. Apenas em

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Idem, p. 104.

250

SOLEY, James Russel. Report foreign systems of naval education. Washigton: Government printing officer, 1880. Disponível em: https://archive.org/stream/reportonforeign00senagoog#page/n4/mode/2up

251 SOLEY, 1880, p. 30 252 Idem, p. 31 253 Idem, p. 43.

67 1873 se inauguraria pretensões de estabelecer um ensino militar e naval mais completo, em terra, na sede da Royal Naval College em Greenwich.254 Tradicionalmente a ideia de aprendizado a bordo, alargada na década de 1830, ajudou na construção de uma imagem educacional britânica associada a prática e ao ensino técnico realizado pelos comandantes ou em navios-escolas. Através deste pequeno aprofundamento na formação educacional e naval inglês já se demonstrou que o processo foi algo lento e de experimentação, associando novos contextos e antigas tradições, e que às vezes a defesa de um sistema naval prático não foi único e determinante na construção moderna da oficialidade. Entender até que ponto a principal característica do sistema naval inglês foi utilizado pelos homens políticos do Império do Brasil como parâmetros da realidade naval inglesa, também se torna necessário para entender os limites do discurso político.