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Iniciativas não governamentais voltadas para o acesso aos alimentos na década

CAPÍTULO 3 POLÍTICAS DE COMBATE À FOME – UM ENFOQUE NA

3.2 P OLÍTICAS BRASILEIRAS DE COMBATE À FOME

3.2.2 Políticas de combate à fome no Brasil dos anos 90 ao Governo Lula

3.2.2.1 Iniciativas não governamentais voltadas para o acesso aos alimentos na década

No contexto nacional, o envolvimento da sociedade civil e de instituições não governamentais com os problemas relacionados à Segurança Alimentar foram extremamente importantes para o reconhecimento da verdadeira causa da fome no Brasil na década de 90.

De acordo com Belik (2010), alguns movimentos sociais demonstraram que ―o país

entrou nos anos 90 disposto a olhar para as suas mazelas, entre estas a fome e a pobreza‖.

Destaca-se, nesse contexto, o documento ―Política Nacional de Segurança Alimentar‖, elaborado por Luiz Inácio Lula da Silva e José Gomes da Silva, no âmbito do chamado Governo Paralelo, um projeto do Partido dos Trabalhadores, que, mesmo na oposição, continuou expondo alternativas e propostas de políticas públicas ao Presidente da República Fernando Collor de Mello, cujo programa era fundamentalmente liberal (NORDER, 1998).

No documento, que incorporou a garantia de acesso ao alimento seguro, as origens da carestia e da fome foram atribuídas ao desemprego e à pobreza, agravadas pelas políticas recessivas dos anos 80. Ele revela que a modernização e a ampliação da capacidade de produção e distribuição de alimentos no Brasil não acarretaram a ampliação do acesso aos alimentos pelos segmentos de menor renda da população; e defende a retomada do crescimento econômico, com recuperação do emprego e dos salários e a necessidade de implementação de políticas de regulação dos mercados como condicionantes da Segurança Alimentar (MALUF et al., 1996).

Segundo Pessanha (2004), essa proposta apresenta o mérito de ter recolocado a questão alimentar na arena política nacional, inserindo-a no campo da luta político-partidária e na disputa pelo conteúdo das políticas voltadas para o setor agroalimentar, abarcando questões relativas à defesa dos direitos da cidadania e à democracia social, tornando-a um marco da difusão do tema no país. Além disso, tendo em vista a conjuntura econômica altamente inflacionária prevalecente no período, o documento dá grande destaque ao problema do aumento dos preços dos alimentos.

A proposta, se tivesse sido implementada, o que não aconteceu, teria se tornado um objetivo estratégico de governo no sentido de tornar a Segurança Alimentar uma orientação para as políticas de produção agroalimentar (políticas agrária, de produção agrícola e agroindustrial), comercialização, distribuição e consumo de alimentos, com uma perspectiva de descentralização e diferenciação regional, em conjunto com ações emergenciais contra a fome (MALUF et al., 1996).

Ainda no início da década, o ano de 1993 pode ser considerado um marco nas discussões e nas ações relacionadas à Segurança Alimentar no país.

Nesse ano, o IPEA divulgou o ―Mapa da Fome‖, que demonstrou a existência de trinta e dois milhões de pessoas no país vivendo em condições de indigência no Brasil.

Diante de um panorama como esse, surgiu naquele mesmo ano, uma ação não governamental relevante, criada por representantes de mais de duzentas entidades da sociedade civil, associada ao combate a fome, que foi o ―Movimento pela Ética na Política‖. Este movimento lançou as primeiras iniciativas da ―Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida‖, importante passo para o reconhecimento da fome como uma questão vinculada à pobreza e por apresentar medidas direcionadas à acessibilidade alimentar. Liderado por Herbert de Souza, esse movimento ganhou significativa expressão a partir da adesão de diversos setores da sociedade civil, que passaram a assumir a problemática da fome em virtude da omissão do Estado (SILVA, 2006).

A operacionalização da ação contou com a criação de comitês que buscavam soluções imediatas para os que passavam fome, na campanha "A fome não pode esperar", lançada oficialmente em 23 de junho de 1993 (PESSANHA, 2002).

A Ação Cidadania teve seu início com a distribuição de comida de restaurantes do Rio para alimentar pessoas carentes, espalhou-se pelo país e chegou a aglutinar 30 milhões de pessoas em 1993. Apesar da doação de alimentos ser a face mais visível, não se limitava a isso, pois tinha ciência da necessidade de uma reforma estrutural e atuava de forma independente ou em parceria com o governo, distribuindo alimentos e desenvolvendo projetos que favoreciam a relação entre Segurança Alimentar e cidadania (ROCHA, 2008).

Essa Ação, constituída por um grande e diversificado conjunto de organizações sociais distribuídas pelo território nacional, pretendia constituir-se num movimento social democrático e emancipatório, cujo êxito implicava intenso envolvimento por parte da sociedade. Entretanto, com o passar do tempo, a gradual redução da participação popular nas suas campanhas restringiu a capacidade de pressão da organização, e a entidade passou a atuar mais como uma organização privada que mobilizava recursos para ações sociais de cunho filantrópico (PESSANHA, 2002).

Para Pessanha (2002), isto demonstra que a adesão social espontânea e significativa limitou-se às campanhas iniciais da Ação da Cidadania, quando se buscava uma atitude assistencial imediata. Nas etapas posteriores, quando se pretendia uma ação pública voltada para a solução de problemas estruturais geradores da fome, da miséria e da exclusão social, houve um refluxo tanto da participação popular como das organizações sociais, restringindo-

se a participação nas campanhas a um conjunto de organizações da sociedade civil. Ficou evidente, assim, que a participação espontânea da população circunscrevia-se, em geral, às campanhas sociais de natureza caritativa.

Outro fator importante, em 1993, foi a criação da Associação Brasileira de Agribusiness – a ABAG70 (RAMOS, 2010).

A posição da Associação sobre a questão da Segurança Alimentar mostra que apesar de, na década de 90, ter avançado o reconhecimento da fome vinculado à falta de acesso aos alimentos, permaneceram também interesses específicos que ignoravam este aspecto, ao sugerir medidas exclusivamente direcionadas à questão produtiva como melhor forma de resolver o problema.

A ABAG representou o ponto de vista dos segmentos empresariais integrados ao complexo agroindustrial brasileiro sobre a Segurança Alimentar, com um enfoque setorial e economicista, já que reivindicava a intervenção estatal na defesa dos interesses do setor agroindustrial modernizado (PESSANHA, 2004).

De acordo com Norder (1998), o documento, produzido em 1993 por essa Associação, evidenciou a divergência política e social na redefinição do modelo de desenvolvimento que traria a Segurança Alimentar ao país. A Segurança Alimentar é exibida como ―a principal responsabilidade social do Agribusiness - o maior negócio do país, representando quase 40% de seu PIB, mais de 40% de suas exportações e é, de longe, o setor da economia que mais emprega mão de obra‖. O principal ponto para alcançar a Segurança Alimentar no Brasil, considerando uma economia de mercado, foi definido como a valorização e expansão da produção agropecuária.

A ABAG defendia a implementação de mudanças macroeconômicas, ao lado da promoção de melhores relações capitalistas de trabalho no campo e na cidade, com consequências na produção e distribuição interna de alimentos e na inserção da economia brasileira no mercado internacional; sem fazer referência a um tipo de produtor em específico, e considerando como aceitáveis apenas políticas de preços mínimos limitadas aos produtos essenciais à Segurança Alimentar (NORDER, 1998).

Para Pessanha (2004): ―a proposição de política de Segurança Alimentar da ABAG é quase um sinônimo de política setorial agrícola‖, com atendimento à demanda por alimentos por meio de elevação da produtividade, numa proposta de retificar o modelo tradicional de modernização pela inovação tecnológica no setor; enquanto que, para Marques (1996), a

70 A ABAG visa ―sensibilizar os segmentos decisórios do país para a importância do setor e de todas

noção de Segurança Alimentar da ABAG nada mais era do que instrumento de legitimação do discurso patronal moderno no complexo agroindustrial brasileiro.

A posição da ABAG reflete, portanto, o quanto há disputa de interesses envolvidos na questão alimentar no país (assim como acontece no mundo) e o quanto a compreensão da questão do acesso como ponto central para a Segurança Alimentar no Brasil tem ocorrido permeada por conflitos.

Outro exemplo nesse sentido foi a forma como se deu a participação do país na Conferencia Mundial de Alimentação em 1996.

A importância adotada pela questão do acesso no país é assumida publicamente no documento brasileiro preparado para a participação na Cúpula Mundial Sobre Alimentação, elaborado por um comitê constituído por representantes do governo federal, das universidades públicas e das organizações da sociedade, que afirmava o acesso à alimentação como um direito humano em si mesmo, sobreposto a qualquer outra razão que pudesse justificar a sua negação, fosse de ordem econômica ou política (PESSANHA, 2004).

Entre suas recomendações, estavam: o papel das prioridades da política macroeconômica e das políticas setoriais não ser definido exclusivamente por uma lógica econômica, devendo se orientar por objetivos sociais e por uma visão de desenvolvimento pautada na eficiência econômica, na equidade social, na sustentabilidade ambiental, na universalização da cidadania e no fortalecimento da democracia; levando a um avanço na direção de políticas universais associadas a uma visão de Estado social. Ressaltava, ainda, que a Segurança Alimentar somente poderia ser assegurada mediante o planejamento convergente de um conjunto de políticas articuladas e voltadas para o desenvolvimento humano (PESSANHA, 2004).

Entretanto o discurso oficial da comissão brasileira na Cúpula, por intermédio do então ministro da agricultura Arlindo Porto, desconsiderou o relatório, pronunciando-se a favor do livre comércio no mercado mundial de alimentos, afirmando, textualmente, que ―o Brasil acredita que maior liberalização do comércio agropecuário promoveria decisivamente a Segurança Alimentar mundial‖ (PESSANHA, 1998).

Já no final da década de 90, no âmbito da sociedade civil, vale destacar a criação do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional – FBSAN, uma rede de organizações não-governamentais, movimentos sociais, universidades e outras instituições. Esse Fórum foi um desdobramento, cinco anos depois, do movimento Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, e tinha como objetivo promover o direito humano à alimentação (NASCIMENTO, 2009a).

O fórum definiu como metas mobilizar a sociedade para o tema da Segurança Alimentar e Nutricional, fomentar políticas públicas, atuar na capacitação de atores da sociedade civil e estimular ações locais (como as experiências-piloto do Projeto Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional em Piracicaba e em Porto Alegre, e a inserção do componente Segurança Alimentar no Plano Diretor Rural da cidade de São Paulo) (BELIK, 2003).

De acordo com Burlandy (2003), o FBSAN registrou sua insatisfação com as diretrizes e resultados das políticas voltadas para a garantia do direito ao alimento implementadas pelo governo federal desta década, tema explorado na seção a seguir.