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5. Uma revista, muitos olhares: barómetro das sensibilidades historiográficas

5.1. Inquietações com o poder

O artigo de abertura, “Mothering: Another Transfer Point of Power?”, pela decana Harriet Lyons busca encontrar as interconexões entre, por um lado, o vasto arquivo de teorização e relatos antropológicos e etnográficos relativos à maternidade e, por outro, as grelhas conceptuais mais amplas e mais recentes em torno das questões de poder e de género - sejam do domínio da antropologia, da antropologia histórica e dos estudos imperiais, com destaque para a obra de Ann Laura Stoler (2002), seja a própria "tradição" foucaultiana em geral. A autora, contudo, não pretende apenas desconstruir as abordagens clássicas da primeira metade do século XX e mesmo anteriores; de forma ponderada caso a caso, ela é igualmente recetiva a encontrar fios imprevistos, reveladores de que a disciplina, nesses períodos tidos por menos sensíveis ao lado político da família e do lugar da mulher, também contribuiu a forjar, por vezes a antecipar, preocupações a esse nível. Estamos perante uma autora com um pé em cada campo, que não demoniza nem romantiza o passado da antropologia, mas que faz do poder um critério de apreciação do arquivo em sentidos que só o trabalho historiográfico, em filigrana, pode resolver. O seu entendimento da riqueza e ambivalência dos contributos

46 A expressão sucesso editorial refere-se à pluralidade temática da revista; à diversidade historiográfica de

autores e assuntos abordados e sua consequente aceitação no meio, a não confundir com sucesso comercial em relação ao volume de vendas e/ou ao retorno financeiro de um expressivo mercado editorial científico.

passados fica bem expressa logo num dos primeiros parágrafos:

“(...) As construções da evolução cultural do século XIX ligavam noções de ‘direito da mãe’ à ideias de promiscuidade primitiva, e esses conceitos eram usados para apoiar uma variedade de posições sobre questões envolvendo raça, sexo e género - como era a rejeição de tais noções por um geração posterior de escritores, incluindo Westermarck, Ellis e Malinowski. No século XX, os teóricos da cultura e da personalidade, entre os quais Mead, Du Bois, Linton e Kardiner, tinham muito a dizer sobre as práticas infantis dos assuntos etnográficos. Suas descobertas foram incorporadas a uma antropologia pública que abordou questões como o emprego de mulheres fora de casa, bem como tópicos que, aparentemente, parecem ter pouco a ver com estudos transculturais de maternagem (...)”. (Lyons 2009:1)

A autora percorre episódios da literatura etnográfica e antropológica que considera serem chaves para demonstrar como então se formaram, de uma forma que imbrica diferentes gerações de antropólogos até ao período pós-colonial, grelhas de leitura variadas, e para variados propósitos, sem deixar de os relacionar com o contexto, mas com vista a compreender a formatação final que tomou a literatura antropológica em relação à maternidade sob a perspetiva do poder. Esta vasta literatura pode aliás ser lida sob a ótica daquilo que se considera ser vanguarda ou reprovável na educação dos filhos em determinadas épocas e/ou culturas, ou ainda da influência das questões de género e do controlo masculino naquele que sempre foi o reduto privilegiado da mulher. Embora o artigo de Lyons nos lembre que parte considerável da etnografia tenha sido escrita por mãos masculinas, a sua lente feminista faz sobressair o contributo de diversas antropólogas. Seria caso de levantar a hipótese de o seu enfoque ser também uma antropologia “obcecada com o poder”? A responder afirmativamente a esta questão, haveria que enfatizar a subtileza da abordagem, que não permite conotar Lyons com a crítica da antropologia e nomeadamente com as historiografias de julgamento e intenso reexame da disciplina.

Herbert S. Lewis reaparece nas páginas do 5º volume de Histories of Anthropology Annual, no artigo “The Radical Transformation of Anthropology: History Seen through the Annual Meetings of the American Anthropological Association, 1955–2005”. Lewis traça uma linha de estudo através de uma investigação cronológica linear dos programas das reuniões anuais da American Anthropological Association em sua historicização da disciplina (em especial durante os anos de 1965 até o início da década de 70) e utilizando a expressão “transformação radical” - o que sinaliza na sua leitura um claro e rutural “antes e depois”. Essa metamorfose não teria sido viabilizada se não fora o contexto subversivo e a atmosfera contestadora explosiva dos anos 1960: “Sem os anos 60, como os conhecemos e vivemos, o nosso mundo intelectual e profissional seria muito diferente” (Lewis 2009:200). O autor

entende metodologicamente que as reuniões anuais da AAA são uma excelente fonte para averiguar o estado do campo em um dado momento e é olhando para a história destas reuniões anuais que diagnostica uma veloz e crescente inserção de preocupações politizadas na disciplina (em suas palavras, uma escalada da raiva ano após ano). Lewis exterioriza sua preocupação com os efeitos dessa “revolta” absorvida pelo campo da antropologia e ante a forma como a epistemologia da disciplina foi afetada, pois terá sido motivada por preocupações de natureza política e ética ao invés de ter sido promovida pelos paradigmas da ciência, ou seja, uma antropologia feita com as vísceras e não com a teoria resultou numa autofagia do campo que não perdoou nem a si própria e passou a conduzir o fazer etnográfico:

“(...) Pode-se ter a impressão de que a profissão da antropologia se tornou, em grande parte, uma arena da política e do discurso politizado. (...) Os legados daqueles dias - de raiva, suspeita, desapontamento e sentimento de traição - levaram diretamente a muitos dos principais discursos da antropologia hoje em dia. (...) Desde o início, uma parte importante dessa rebelião foi dirigida às falhas éticas e políticas percebidas de dentro do próprio campo (...)”. (Lewis 2009:202;204; 219)

Percorrendo os títulos de trabalhos apresentados nas sessões, Lewis demonstra como vão sendo construídos e desconstruídos as temáticas e os domínios de interesse desse mundo que tanto mudou - e a antropologia também. Os estudos avançaram por campos interdisciplinares, abrangendo inclusive áreas de interesse fora do escopo etnográfico, ou que antes estavam mais restritos aos profissionais de outras ciências humanas. Seja para aqueles que celebram a transformação radical da antropologia, seja para aqueles que a deploram, ele, que deliberadamente não ignora esta mudança, em mais de uma oportunidade sublinha:

“(...) Houve muitos aspetos nas reestruturações e transformações da antropologia americana nas últimas quatro décadas; é claro, não menos importante é o notável crescimento no tamanho do campo e o grau de diversificação que isso tem implicado (...). O facto mais óbvio e facilmente reconhecido sobre as mudanças na antropologia durante este meio século é o crescimento em tamanho e escopo da disciplina (...)”. (Lewis 2009:200;205)

Friza Lewis que esta transformação, além de ser criticada por uns, e celebrada por outros, é também ignorada por outros tantos antropólogos. Mas entre qual dessas três categorias se encontra o prório Lewis? Não sendo embora uma surpresa47, creio que a seguinte passagem

resume com razoável propriedade o seu sentimento em relação às mudanças que ele se propôs a dissecar: “Admiro e honro as origens desta revolução, mas não posso dizer o mesmo quanto

47 Ver capítulo 1.

ao resultado e às consequências” (Lewis 2009:221). É importante compreender como este seu sentimento foi construído, pois ele é o resultado de uma leitura que considera que a antropologia, ao mover-se para muito longe de suas origens teóricas e disciplinares, assumiu uma tendência para um fascínio e preocupação quase neuróticos com o mal na cultura e na sociedade - lembrando que esse mal pode, na leitura dos críticos mais ácidos, ser a própria ciência antropológica, pois “a própria natureza do campo é questionada e considerável esforço é gasto na descoberta de malfeitores antropológicos e transgressões ao longo da história” (Lewis 2009:201). Sempre a contra-corrente, Lewis deplora as interferências (quais manipulações genéticas) no ADN epistemológico da disciplina:

“Muitos antropólogos atuais são mais herdeiros de Nietzsche, Heidegger, Foucault, Marx e Engels (...), e de muitos outros que não conheceram nem Boas nem Malinowski (...) Esquecidas estão as raízes da disciplina, as realizações, o conhecimento comum e o senso comum do passado, e o considerável corpo de etnografia e ideias que se produziu antes das revoluções de 1968. (...) O passado da antropologia foi entregue ao esquecimento”. (Lewis 2009:220)

O diagnóstico feito por Lewis desta meteórica transformação tem endereço num espaço e num tempo precisos (reuniões anuais da AAA entre 1955–2005); e se por um lado a seriedade deste pesquisador e o volume quantitativo pesquisado de arquivo outorgam a este artigo, em minha análise, um grau irretocável de profissionalismo, por outro lado considero que seja pertinente (sem necessariamente discordar de seu parecer) levantar a questão de se neste meio século tamanha preocupação com dominação, violência, resistência e sofrimento deve ser compreendido como parte ou totalidade da antropologia que se faz no tempo presente. Ao mesmo tempo, isso permite indagar a existência de outros diálogos entre a teoria social contemporânea e a historiografia da disciplina.