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INSPIRAÇÃO MALAGUZZIANA PARA PENSAR A DIDÁTICA DA MARAVI-

4 APRENDER PELA EXPERIÊNCIA: UMA GRAMÁTICA EDUCATIVADA ES-

4.2 INSPIRAÇÃO MALAGUZZIANA PARA PENSAR A DIDÁTICA DA MARAVI-

A escola, para Malaguzzi (2017), é um organismo vivo, um sistema. Tal concepção acentua a imagem do dinamismo desse lugar e das relações e interações que são construídas. Fala ainda de uma escuela amable, cuja atmosfera convida à participação legítima, aberta e democrática que torna possível a atuação da tríade: criança, professor e pais. Uma escola que se faz cotidianamente, ativa, inventiva, habitável, reflexiva, documentada e comunicável, um lugar de investigação e aprendizagem. Torna-se possível a partir do olhar (escuta) dos profes- sores, que consideram os princípios ético, estético e político para, com sensibilidade, diálogo e postura crítica, estabelecer o encontro entre a cultura do adulto e a cultura infantil.

Sete aspectos, ou argumentos, se destacam na abordagem malaguzziana: (1) centrali- dade na criança e não no ensino; (2) transversalidade cultural ao invés de um saber setorizado, fragmentado; (3) foco no projeto e não na programação; (4) o valor está no processo e não apenas no produto final; (5) observação e documentação dos processos individuais e coleti- vos; (6) confronto e discussão utilizados como estratégia formativa; (7) autoformação dos professores (CAVALHERO, 2017).

O currículo, nesta perspectiva, é pensado a partir de uma pedagogia da escuta, quando as propostas se desenvolvem por meio de projetos que surgem da relação e são comunicados e expressados a partir de múltiplas linguagens. A imagem de criança como alguém com capaci- dade de pensar e organizar o pensamento de forma complexa e sofisticada permite, conforme explicita Rinaldi (2012, 2014), uma abordagem que protege a originalidade e a subjetividade. No Regimento Escolas e Creches para a Infância (REGGIO CHILDREN, 2012), entre os princípios do projeto educativo está à projetação36. Diz o texto:

A ação educativa toma forma através da projetação, da didática, dos ambientes, da participação, da formação do pessoal, e não através da aplicação de programas pre- definidos. A projetação é uma estratégia de pensamento e de ação respeitosa e soli- dária com os processos de aprendizado das crianças e dos adultos, que aceita a dúvi- da, a incerteza e o erro como recursos e é capaz de modificar-se de acordo com os contextos. É feita através dos processos de observação, da documentação e da inter- pretação em uma relação recursiva. A projetação realizada através de uma estreita sinergia entre a organização do trabalho e a pesquisa educativa (REGGIO CHIL- DREN, 2012, p. 12).

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Em italiano: progettazione. Derivado do verbo italiano progettare, que significa desenhar, inventar, planejar ou projetar. O substantivo progettazione é usado no contexto educacional como planejamento flexível, em que são criadas hipóteses iniciais sobre grupos de crianças, mas que estão sujeitas a modificações e mudança de direção conforme o trabalho progride. O termo é usado em Reggio em contraposição à programmazione, que implica planejamento baseado em currículos predefinidos, programas ou estágios (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016, p. 370).

Os projetos, na perspectiva da projetação e como método de trabalho, tornam-se “contextos de apoio para a aprendizagem como construção do conhecimento” (VECHI, 2017, não paginado). Ao conceber a dúvida, a incerteza e a própria funcionalidade do erro como recurso, desenvolve e cresce para direções inesperadas, uma vez que não foram traçadas pre- viamente, tampouco determinadas antes de o percurso investigativo iniciar. Nasce da escuta do desejo individual de uma criança ou de um pequeno grupo, e o professor o torna interesse coletivo por meio da problematização (do questionamento, da dúvida), como se criasse um “nó” no fio condutor da ação, de modo a provocar uma pausa. Ao chamar a atenção da crian- ça, convida-a a pensar, propõe uma didática que constrói contextos e estratégias facilitadoras da aprendizagem (NIGRIS, 2014).

Malaguzzi (1999; 2017) dizia que não se ensina para uma criança algo que ela pode aprender sozinha. Defendia, ainda, que uma das funções do professor fosse a de nutrir na cri- ança uma curiosidade divertida em nível máximo, para que ela tivesse o desejo de aprender. Falava da sedução estética como uma estratégia para o maravilhamento, disparadora da capa- cidade da criança em encantar-se com a descoberta, com o desejo de conhecer(-se). Uma ma- neira de tornar acessível e possível o direito de sonhar, de pensar poeticamente, de emocionar- se, de expandir seu mundo, de impulsionar a fantasia e a brincadeira como produtora de espa- ço potencial, onde a curiosidade de aprender acontece com a alegria de maravilhar-se com a beleza do mundo e com as imagens poéticas criadas e produzidas pelo humano (MATA, 2014).

Historicamente, menciona Nigris (2014, p. 137), a didática “foi interpretada como um conjunto de regras, receitas e técnicas a serem aplicadas ao ensino de modo prescritivo, ousaria dizer, quase determinado”; no contexto deste estudo, a didática é compreendida como a produção de contextos e estratégias capazes de seduzir esteticamente a criança para apren- der. Uma estética como expressão de admiração que gera sentidos e emoções que conectam o sujeito à obra (MALAGUZZI, 2017). Esta conexão torna-se potente na medida em que é ca- paz de alimentar a admiração e a maravilha que ativam o desejo de conhecer. Vincula-se a uma dimensão revolucionária e emancipatória, que Nigris irá chamar de “didática da maravi- lha”.

A “didática da maravilha” acolhe o pensamento divergente da criança, o qual surge tanto de uma intencionalidade como do erro entendido como recurso, ou, como bem define a própria criança sobre o seu direito ao erro (equívoco): “cuando te equivocas, aprendes mu-

chas cosas: si al dibujar haces otra cosa, está bien, no es uma equivocación, hás inventado algo que no habías pensado antes” (MALAGUZZI et al., 2005, p. 29).

Romper com uma prática em que todas as coisas são apresentadas à criança a partir de uma determinada ordem, uma atividade com início, meio e fim programada pelo(a) profes- sor(a), não confere à criança o direito de explorar e descobrir, pois elimina a possibilidade da dúvida e da incerteza. Para que professor(a) e criança se unam em um projeto comum, coloca- se em suspensão o pensamento linear e convergente do adulto, de modo que o pensamento divergente, essa capacidade da criança pensar fazendo combinações entre elemento incomuns, tenha espaço para expressão. “Aqui reside a verdadeira liberdade didática, tanto para a criança como para o educador. Uma liberdade que reside nesse espaço entre o previsível e o inespera- do” (RINALDI, 2012, p. 132).

As inspirações malaguzziana provocam a pensar outra imagem de docente para cri- anças pequenas. Um sujeito inventivo, brincalhão e generoso, capaz de disponibilizar o supor- te cultural que lhe é conhecido, para a criança, com sua agência, reinventar e produzir bens culturais, construindo o legado (i)material da cultura infantil. Um adulto sensível capaz de maravilhar-se com as ações da criança, sendo cúmplice de seu estupor, afinal, “as crianças em suas diversas maneiras de manifestar curiosidade pelo mundo revelam leituras de mistérios profundos sobre a existência humana” (GOBBI; PINAZZA, 2014, p. 36).

Essa experiência com o mundo é intermediada pela linguagem, que, por sua vez, permite ao sujeito viver e criar cultura, que é constantemente recriada porque é interpretada pelo sujeito situado social e historicamente. As metáforas, presentes nas narrativas infantis, se fazem presentes na linguagem cotidiana e afetam os modos de pensar e agir de determinada cultura e sociedade. Elas entrecruzam, penetram, atravessam a linguagem da criança. Esse primeiro contato infantil com a linguagem é, segundo Mata (2014), de gratuidade. Assim, para que ocorra a apropriação da língua materna, sugere que se subverta o caráter utilitário, vinculando-a ao gozo, ao prazer, como forma de mudar a percepção e os modos de ver e apre- ender o mundo.

Nesse lugar do “para nada”, narra-se a própria subjetividade, muda-se os destinos, cria-se outros mundos possíveis, a partir de uma “abordagem baseada em ouvir ao invés de falar, em que a dúvida e a fascinação são fatores muito bem vindos, juntamente com a inves- tigação, a descoberta e a invenção” (FINCO; BARBOSA; FARIA, 2015, p.10). Uma didática que convida os(as) profissionais do maravilhamento (VECHI, 2017) a se reinventarem, recri- ando a ação docente, cujo papel ou função que lhe são atribuídas requer uma postura de co-

construtor de conhecimento; criador de um ambiente estético, pois entende que o ambiente também educa; intercambista de entendimentos; apoiador da criança competente; observador atento que age como um documentarista e pesquisador; parceiro da família; ouvinte, provoca- dor e negociador de significados (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016). A “didática da maravilha” como forma de manter-se humano na relação com outro humano, neste caso, a criança pequena.

4.3 O PARADOXO DA EXPERIÊNCIA E DO SENTIDO NA EDUCAÇÃO DE