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Instauração da vulnerabilidade no corpo que dança

No documento Vulnerabilidade: um jeito de fazer dança (páginas 30-35)

A vulnerabilidade como uma estratégia de composição em dança se instaura, no corpo e em sua feitura, pelas possibilidades de criação, de organização e de escolhas ao dançar. Este campo de possibilidades promove a configuração da dança que acontece na apresentação.

Um fator importante da vulnerabilidade, enquanto estratégia de composição, é que ela está atrelada ao modo de existir do corpo que dança. A existência do corpo na cena é uma ocorrência das suas imagens geradas ao dançar. A vulnerabilidade, portanto, se instaura, já que está atrelada aos questionamentos apontados no corpo.

O corpo, em sua ação de dançar, em sua feitura, se organiza pelo modo como dá a ver a vulnerabilidade, a qual se apresenta a partir da potência de afetação, do posicionamento, da escolha e, principalmente, do risco (premissa para que a dança aconteça). O ganho de realidade acontece não só no corpo, mas também em objetos,

coisas. Lapoujade (2017, p. 11), afirma que é preciso um “ganho de força, extensão, consistência” para que as coisas ganhem realidade.

Como duvidar da realidade da existência quando estamos aqui, presentes, neste mundo, como duvidar disso? É que confundimos duas noções: a existência e a realidade. Sob determinado aspecto, o homem existe de fato, ocupa dado espaço-tempo, está presente em meio às coisas, cruza com os passantes na ponte, colhe impressões, tem o espírito atravessado por pensamentos. Entretanto nada disso é completamente real. Os seres, as coisas existem, mas lhes falta realidade. O que quer dizer “lhes falta” realidade? O que pode faltar a uma existência para ser mais real? (LAPOUJADE, 2017, p. 11).

Retomando o questionamento do autor, encontramos subsídios para defender um fazer em dança que duvida da sua própria configuração e ao tempo que duvida, se faz potência de criação – criação da possibilidade de existir dançando. Uma dança que revela e indaga a necessidade de dançar o outro - dançar uma imagem, um objeto – que pensa na convocação de lembranças, afetos, e memórias que permanecem em seu corpo. Essa tentativa é uma possibilidade de dar a ver... Dar a ver é instaurar e:

A instauração não é um ato solene, cerimonial, institucional, como quer a linguagem comum, mas um processo que eleva o existente a um patamar de realidade e esplendor próprios – “patuidade”, diziam os medievais. Instaurar significa menos criar pela primeira vez do que estabelecer “espiritualmente” uma coisa, garantir-lhe uma “realidade” em seu gênero próprio. (PELBART, 2014, p. 250).

A indagação do autor aponta sobre o ganho de realidade dos modos de existência, portanto, o modo como os corpos existem em relação ao seu entorno. A dança que se faz na tentativa de instaurar imagens, lembranças, afetos no corpo parte do entendimento de que é necessário fazer com que essas imagens, lembranças, afetos se intensifiquem no corpo que dança, pois ao se intensificarem ganham outra materialidade e se tornam reais para os contextos que se expõem. É sobre fazer existir no corpo... “Só existimos fazendo existir. Ou melhor, só nos tornamos reais se tornarmos mais reais aquilo que já existe. ” (LAPOUJADE, 2017, p. 99).

A intensidade em dança está relacionada ao modo como o corpo argumenta e se posiciona, questionando seu próprio modo de existir quando dança. Portanto,

instauram-se questões apontadas no corpo de maneira estratégica. São formulações tendo o risco como mote da feitura da dança.

Porém, há existências, que se tornam “mais” reais, no sentido em que ganham força, extensão consistência: um amor que se intensifica, uma dor que aumenta, um temporal que ameaça cair? Ou então um projeto que se realiza, a construção de um edifício, um roteiro levado às telas, a execução de uma partitura? São diversas maneiras de ganhar realidade, de adquirir maior presença, uma luz mais intensa. (LAPOUJADE, 2017, p. 11).

Neste sentido, há de se pensar na instauração enquanto ganho de realidade do corpo que dança através das imagens geradas em sua feitura. O filósofo Peter Pál Pelbart em seu artigo Por uma arte de instaurar modos de existência que “não

existem” (2014), aponta a necessidade da instauração de modos de existências a

partir de uma espécie de ganho de realidade, cujo entendimento é advindo do filósofo Étienne Souriau5.

No livro Les Différents Modes d’existence, Étienne Souriau deu forma, no final dos anos 1930 e numa linguagem por vezes empolada, a uma metafísica que visava dar acolhida justamente a esses seres dos quais não se pode dizer com precisão se existem ou não segundo os parâmetros e gabaritos de que dispomos.Pois, em princípio, nenhum ser tem substância em si, e, para subsistir, ele deve ser instaurado. Assim, antes mesmo de tentar um inventário dos seres segundo seus diferentes modos de existência, Souriau postula uma certa arte de existir, de instaurar a existência. Para que um ser, coisa, pessoa, obra, conquiste existência, não apenas exista, é preciso que ele seja instaurado. (PELBART, 2014, p. 250).

A questão é que o corpo, em sua ação de dançar e em seu ganho de realidade está associado às questões apresentadas por ele e, principalmente, na decisão de apresentar a vulnerabilidade como uma estratégia de feitura.

A instauração das imagens, afetos e lembranças no corpo ao dançar acontece na relação que estabelece com os questionamentos que vão se apresentando no corpo na própria ação de dançar, já que a instauração acontece quando as questões ganham realidade, ou seja, elas se apresentam como um posicionamento do modo como à dança acontece no corpo. Há a pretensão de respostas prévias, mas também de duvidar do que vai se instaurando.

Ora, a instauração não se origina de uma fonte única – a vontade, a consciência, o espírito, o corpo, o inconsciente etc. – e hoje diríamos que há

5 “Étienne Souriau (1892-1979) embora esteja sendo redescoberto hoje, sob outros aspectos, a

lembrança de seu nome pertenceu principalmente associada à filosofia da arte. Todo o pensamento de Souriau é uma filosofia da arte, e não quer ser outra coisa.” (LAPOUJADE, 2017, p. 12).

múltiplos “dispositivos” de instauração. Assim, cada filosofia, mas também cada religião, ciência, arte, instaura seus seres e, com isso, inaugura um mundo singular, nunca o mesmo: pluralismo ontológico e existencial – multiverso! (PELBART, 2014, p. 250).

Neste sentido, seria possível formular a ideia de que o corpo que dança instaura questões, justamente por meio de estratégias apontadas, no corpo, como um posicionamento, ou seja, é a partir do corpo que estas problematizações ganham realidade? Se dão a ver por meio do corpo em sua ação de dançar, expondo a vulnerabilidade como princípio de feitura. Trata-se de uma estratégia de composição em dança que proporciona um processo de afetação muito específico do corpo.

A estratégia compositiva do corpo a partir da vulnerabilidade como princípio de feitura, não sugere inferioridade de algumas danças em relação a outras, nem limita a pensar na dança em sua precariedade no fazer, mas, sobretudo, de perceber a vulnerabilidade como uma necessidade de feitura, como um princípio compositivo em dança que dispara fricções no corpo ao dançar.

Cria-se uma porosidade no próprio corpo ao dançar, atento às forças que o atravessam, questionando a própria dança que faz. Trata-se, também, de um fazer que lida com o risco em sua feitura. O lugar do risco é imanente neste tipo de fazer, pois desestabiliza o conhecido em dança e instaura no corpo redes de afetos que pensam o copo enquanto potência transformadora e, portanto, questionador através de suas imagens.

As configurações que apostam na incerteza, que estão abertas às possibilidades, têm como acordo a probabilidade de sua emergência; suas soluções não podem ser previstas antecipadamente, pois dependem das circunstâncias do contexto. E o contexto não se resume a um local passivo, pois se constitui a partir das relações efetuadas em um determinando momento. (BITTENCOURT; SIEDLER, 2012).

Porque a configuração que se apresenta no corpo e assume o risco como condição, de sua feitura, lida com a incerteza como possibilidade. A vulnerabilidade permite o convite. E este, não é impresso. É na dança enquanto ela acontece.

Pausa despretensiosa

Imagens de suor, de odor, de dor, de esgotamento, de fragilidade: tudo se faz potência. Eis então, a imagem da carne. Carne que é corpo, que se despedaça em carne viva ao dançar. Se expõe... Ireno Junior e Adriana Bittencourt

No documento Vulnerabilidade: um jeito de fazer dança (páginas 30-35)