• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2. NOVOS TEMPOS DE UM BRASIL MODERNO: INSTITUIÇÕES, CIÊNCIA E

2.1 A REALIZAÇÃO DE PROJETOS INSTITUCIONAIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA NAÇÃO MODERNA

2.1.1 A institucionalização da medicina paulista: formações da Faculdade de Medicina de São Paulo e

Após breve discussão sobre a construção do que seria um pensamento médico brasileiro ou, mais especificamente, paulista, encerrou-se o capítulo anterior com algumas questões importantes à compreensão da relação entre medicina e sociologia no Brasil ao longo da década de 1930. Já neste capítulo que aqui se inicia, o que se propõe é trazer refletir quanto aos registros históricos dos processos de fundação não apenas das principais instituições paulistas de ensino e pesquisa em medicina — a Faculdade de Medicina de São Paulo e a Escola Paulista de Medicina —, mas também da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP). Afinal, será em torno destas instituições que os principais atores intelectuais objeto deste estudo — os médicos — iriam transitar profissionalmente. A leitura dos processos de institucionalização de cada uma daquelas instituições parece indicar mútuos pontos de contato, contato este que se dá por aspectos como o contexto de valorização da produção científica com vistas ao momento ímpar de busca pela modernização do estado e do país, o fortalecimento do ensino superior em São Paulo; a busca comum pela defesa do profissionalismo e, logo, da legitimidade destas profissões desempenhadas por indivíduos convictos de seus papéis na construção da nação e o trânsito de intelectuais entre estas instituições, entre outros.

Assim, apenas como escolha metodológica para o desenvolvimento do trabalho, adotou-se como caminho breve apresentação de cada uma das três instituições apresentadas, começando pelas escolas médicas e, a partir daí, seguindo para a ELSP. Só a posteriori é que se inicia uma leitura relativamente mais profunda quanto à aproximação à ELSP de um grupo de médicos presentes nas duas outras instituições. A despeito do caráter descritivo da apresentação da formação destas instituições, pretende-se situá-las em um processo mais amplo de modernização da

cidade de São Paulo e, então, construir possíveis conjeturas que possam balizar a análise.

Inegavelmente, os anos 30 do século passado foram um divisor de águas no que se refere à produção científica em São Paulo, a qual já contava com algumas instituições e faculdades, mas nada comparável ao que se inauguraria naquele momento. O contexto histórico contribuiria para isso: afinal, não apenas se dispunha dos recursos oriundos do café (que já haviam modernizado a capital paulista desde a virada do século), mas agora, principalmente, havia uma elite industrial. Aquela pequena vila da metade do século XIX — que outrora era apenas um "burgo estudante", graças á Faculdade de Direito do Largo São Francisco, como observa Schwarcz (1987, p. 41) — transformava-se cada vez mais rapidamente, dado o processo de urbanização, a chegada de imigrantes e a industrialização.

Foi nesse contexto de demandas geradas pela explosão demográfica, crescimento urbano e industrialização, além dos confrontos e acordos com o governo federal [haja vista a complicada relação que vai se constituindo entre Getúlio Vargas e parte da elite paulista alijada do poder após a Revolução de 30], que novas instituições de ensino superior e pesquisa científica e tecnológica foram criadas (DANTES, 2004, p. 391),

Ao analisar pontualmente o percurso da institucionalização da medicina paulista e, deste modo, da criação de sua correspondente faculdade e da ELSP, constata-se que os anos 1930, mais especificamente os de 1933 e 1934, foram o coroamento de um movimento médico iniciado desde a segunda metade do século XIX. O objetivo da classe médica era não apenas ampliar as possibilidades de trabalho para atingir a saúde pública, mas também legitimar, ainda mais, o lugar da profissão. Segundo Luz (1982, p. 95), "a corporação médica reunida procurava discutir a situação da saúde da população, mas também a situação de sua categoria profissional, especialmente depois da I Guerra Mundial". Já na virada do século XIX inicia-se em São Paulo a criação de algumas instituições médicas, mais voltadas, no primeiro momento, à medicina clínica e à profilaxia propriamente dita. Tratava-se da materialização de medidas em prol da saúde pública, agora assumida pelo Estado como dever. Para que essa obrigação fosse cumprida era essencial que a medicina se desenvolvesse como ramo científico e superasse a estagnação de outrora.

a ideia era que a medicina experimental, que procurava se instalar no ambiente médico paulista neste primeiro período republicano, não partia apenas da negação pura e simples da medicina empírica anterior [do período colonial, do Império], mas da sua superação (SILVA, 2003b, p. 38).

Embora muito mais normativa e presente na sociedade através dos trabalhos que se desenvolviam naquelas instituições, em São Paulo ainda se apresentava uma medicina clínica, bem mais inserida nas linhas de frente de combate às doenças (pela reprodução de um conhecimento já adquirido), do que na prática da pesquisa, fato que tornava urgente a criação e a ampliação da instrução educacional em saúde. Os esforços da classe médica para a implantação de uma instituição para o ensino superior e a pesquisa em São Paulo foram por vezes malogrados mesmo que já em plena era republicana. Prova disso é a lacuna de mais de vinte anos entre o primeiro aceno positivo do governo de Américo Brasiliense em 1891 e a implantação de uma escola médica garantida por lei em dezembro de 1912.15 Talvez menos por questões políticas que ideológicas, "relacionaram-se nesse processo um conjunto de condições que envolviam definições sobre o próprio campo médico e sobre a ideia de medicina, que perpassavam o cenário paulista naquele momento" (SILVA, 2003b, p. 27). Dessa feita, ao menos em São Paulo, não houve de fato uma preocupação do Estado em criar instituições de ensino para a medicina ou o apoio de seu desenvolvimento enquanto ciência.

No tocante à situação nacional, na capital do país e na Bahia, embora já existissem instituições nesses moldes, dois aspectos eram relevantes: em primeiro lugar, eram resultantes dos regimes anteriores à República; em segundo, faltava-lhes o alinhamento do discurso. Segundo Schwarcz (1993 p. 190), "enquanto para os médicos cariocas tratava-se de combater doenças [como a febre amarela e o mal de Chagas], para os profissionais baianos era o doente, a população doente que estava em questão". Por tais caminhos, e a despeito das controvérsias internas à evolução médica na segunda metade do século XIX, iniciava-se nova página na história da medicina. Mesmo que na falta de modernos laboratórios ou de uma concreta política educacional para o ensino superior no primeiro momento, uma rica produção científica

15 Embora só em 19 de dezembro de 1912 tenha se dado a assinatura da Lei 1.357 por Rodrigues Alves, segundo Mota (2009b, p. 67) é preciso destacar que, desde 1911, já havia uma escola de medicina criada e gerida por Eduardo Guimarães na capital paulista.

veiculada por revistas e periódicos especializados tomaria conta do cenário médico, através de um contato constante com as correntes e ideologias europeias, a exemplo das discussões ligadas à medicina legal e as teorias de Cesare Lombroso.

Contudo, a fundação das instituições paulistas de ensino e pesquisa na área médica era postergada, como se viu, ao longo da passagem do século XIX para o XX. Segundo Nadai (1978), havia entre parte da elite uma ideia de que, dentre as profissões necessárias para o progresso e a modernização, mais importantes que médicos e advogados eram os engenheiros, os mecânicos e os agrônomos. Daí o entendimento de que seria necessário, primeiramente, garantir a formação destes profissionais, relegando ao segundo plano a formação de médicos.16 Além disso, havia

certa percepção de que as necessidades sociais já estavam sendo atendidas:

No caso da medicina, existia em São Paulo uma série de institutos de profilaxia, de caráter preventivo, que se responsabilizavam em dar atendimento coletivo às classes populares, garantindo, assim, o suprimento de mão de obra, seja para o campo, seja para a cidade, o que significava a plena realização dos objetivos sociais do poder. Sua instalação [da Faculdade de Medicina], portanto, na época não era prioritária, principalmente porque estava planejada para dar atendimento individual (NADAI, 1987, p. 186).

Mas, na década de 1910, após um "longo processo de acomodação entre a corporação médica e as forças políticas locais" (MARINHO; MOTA, 2012, p. 17, em 1912 a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo seria criada, sendo mais tarde denominada Faculdade de Medicina de São Paulo. Para a classe médica, era uma vitória; para Rodrigues Alves, presidente do estado, "um instrumento de conciliação política".

[...] é possível levantar-se, como hipótese, o fato de [a Faculdade de Medicina] ter sido utilizada como instrumento de barganha por Rodrigues Alves [presidente do estado paulista], visando

16 No entanto, a despeito disso, obviamente a valorização da saúde — logo, da medicina — fazia parte da retórica da modernização, embora isso pudesse não ser consenso entre a elite dirigente. De todo modo, pode-se dizer que "a proclamação da República propiciara a oportunidade de intervenção em áreas consideradas vitais para a retórica da modernização, entre as quais a Saúde e a Educação figuravam como plataformas preferenciais dos grupos que buscavam afirmação e visibilidade perante o cenário nacional" (MARINHO; MOTA, 2012, p. 20).

promover a pacificação interna da classe dominante, buscar o apoio da classe média e neutralizar simultaneamente o movimento das classes populares; a harmonia deveria ser ostentada (NADAI, 1987, p. 188).

Independentemente das possíveis motivações de cunho político, o fato é que se inaugurava novo momento para a medicina em São Paulo, protagonizado, dentre outras figuras, por Arnaldo Vieira de Carvalho,17 organizador e primeiro diretor

da Faculdade. Sua presença como articulador neste processo foi fundamental, tanto do ponto de vista acadêmico como do político, conseguindo trazer o fomento da mais importante instituição filantrópica mundial no início do século XX, a Fundação Rockefeller, para a recém-criada faculdade. Em seus primeiros anos de funcionamento, as aulas estavam espalhadas entre o prédio da Politécnica e a Escola de Comércio Álvares Penteado — o mesmo lugar onde, duas décadas mais tarde, também nasceria a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.

Terminadas as obras de construção do seu prédio, a Faculdade de Medicina instala-se em suas novas e próprias dependências (inauguradas em 1931) onde funciona até hoje, mais precisamente na avenida que leva o nome do fundador da Faculdade, na região central da capital paulista.

Mas se a fundação da Faculdade de Medicina foi um fato significativo para a classe médica, também o foi a fundação da Escola Paulista de Medicina (EPM). Fundada em 1933, no mesmo ano que a ELSP, a EPM "foi criada por um grupo de médicos interessados em ampliar e descentralizar o ensino da medicina em São Paulo [...] momento em que se davam diferentes processos de reordenamento cultural, econômico e político..." (SILVA, 2003a, p. 18). Também houve a pressão de estudantes que excederam o número de vagas para aquele ano na Faculdade de Medicina de São Paulo, os quais se organizaram e tiveram o apoio daquele primeiro grupo de médicos. Ainda segundo Silva (2003a, p. 36), mais do que resultado apenas de simples alocação de alunos ou de um grupo, o projeto da EPM

17 Eminente médico paulista, viveu entre 1867 e 1920. Era formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, como tanto outros contemporâneos seus, uma vez que, ao final do século XIX, não havia cursos médicos em São Paulo. Dirigiu o Instituto Vacinogênico, fundou e presidiu a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo e esteve à frente da Sociedade Eugênica de São Paulo.

correspondia à articulação de diversos objetivos, que abrangiam formas de entender a organização dos sistemas de saúde em São Paulo e uma maneira própria de apresentar e conceber o ensino médico como uma atividade ao mesmo tempo assistencial e científica.

Afinal, tratava-se de um grupo de médicos já atentos às mudanças pertinentes à saúde pública e suas formas de organização, mudanças estas já encaminhadas em São Paulo desde o início daquele século. Contudo, a fundação da EPM não significou um rompimento com a Faculdade de Medicina de São Paulo. Ao contrário, estabeleceu com esta uma relação simbiótica, não apenas porque da Faculdade de Medicina teriam partido os grupos que comporiam o corpo docente a EPM, mas por se tratar da instituição oficial do estado paulista naquele momento.