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2 DIREITO PROCESSUAL CIVIL: UMA CIÊNCIA EM

2.3 INSTRUMENTALIDADE E ESCOPOS DO PROCESSO

Após a afirmação do processo como relação jurídica processual e o desenvolvimento do direito processual civil enquanto ciência autônoma do direito, Cândido Rangel Dinamarco propõe que o instituto da ação saia do centro das discussões da seara processual, dando maior lugar à ideia de jurisdição: a disciplina do poder e do seu exercício é o fator de unidade que reúne em uma teoria os institutos, fenômenos, princípios e normas49.

[...] o que justifica a própria ordem processual como um todo é a sua função de proporcionar ao Estado meios para o cumprimento de seus próprios fins, sendo que é mediante o exercício do poder que estes são perseguidos (a ação, a defesa e o processo constituem o contorno da disciplina da jurisdição).50

Assim, aponta o referido autor que a preponderância metodológica da jurisdição, ao contrário da ação, preconiza a visão publicista do direito processual, como instrumento do Estado, utilizado para o cumprimento dos fins deste.

A este respeito, também, manifesta-se Hermes Zaneti Júnior: A teoria dualista da ação pretende ver uma necessária etapa prévia – ação de direito material – como essência das sentenças de procedência (plano material) escorada e amparada judicialmente em um direito processual de "ação" (assim com aspas para diferenciar da ação de direito material) abstrato e autônomo posto frente ao Estado em razão da auto-tutela [sic] vedada ao particular, portanto, duas ações: dualista, uma ação de direito material, outra, "ação" de direito processual.

A corrente instrumentalista da ação, por sua vez, embora dissidente em vários pontos e aproximando-se, dependendo do autor, de uma corrente mais ao plano unitário do Direito ao plano dualista, tem autoridade suficiente e congruência adequada para justificar a ultrapassagem do problema aparente surgido: faz assento na vinculação do direito processual ao

49 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo:

Malheiros, 2009, p. 91-93.

direito material afirmando "in status assertionis". Trata-se de reconhecer os planos do Direito e permitir que o direito material afirmado seja o objeto do processo; frisa-se, não se traduz em um ponto anterior reconhecido como ação de direito material pré-existente somado à pretensão processual, apenas regula o instrumento para determinar-lhe a potencialidade de, em abstrato, servir ao direito afirmado na inicial. Resta, destarte, aberto o espaço para uma (des)ontologização do conceito de ação, "desvalorizar a importância conceitual da 'ação", passando a tônica para as tutelas jurisdicionais processuais: condenar, declarar, constituir, mandar ou executar.51

A instrumentalidade do processo compreende o processo como um meio, legitimado a partir dos fins a que se destina (raciocínio teleológico). Melhor dizendo: o processo não pode ser observado como um fim em si mesmo; ao contrário, serve de instrumento para a execução das finalidades eleitas e perseguidas pelo Estado.

Neste contexto, a jurisdição – o poder de dizer o direito – deve ser exercida por meio do processo mediante a persecução de três escopos: o escopo social, o escopo político e o escopo jurídico.

O escopo social da jurisdição relaciona-se com a busca da pacificação social, eliminando conflitos mediantes critérios socialmente considerados justos. A jurisdição deve conscientizar e educar os membros da sociedade acerca dos seus direitos e obrigações. Nos dizeres de Dinamarco:

[...] à medida que a população confie em seu Poder Judiciário, cada um de seus membros tende a ser sempre mais zeloso dos próprios direitos e se sente mais responsável pela observância dos direitos alheios.52

O escopo político da jurisdição desdobra-se em três aspectos: primeiro, afirmar a jurisdição como o poder dos juízes em decidir imperativamente e definitivamente; segundo, valorizar a liberdade dos cidadãos, limitando os poderes do Estado em face das liberdades

51 ZANETI JUNIOR, Hermes. A constitucionalização do processo: a virada paradigma

racional e político no processo civil brasileiro do estado democrático constitucional. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, p. 291-292.

52 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo:

públicas; terceiro, assegurar a participação dos cidadãos nos destinos da sociedade política (v.g., por meio da ação popular)53.

O escopo jurídico da jurisdição está ligada ao papel da jurisdição em aplicar a vontade concreta do direito, como um fim ideal. O juiz não tem a irrestrita liberdade de julgar conforme as suas convicções pessoais; ao contrário, tem como limite de atuação as leis e a Constituição. Dinamarco adverte que o escopo jurídico é insuficiente e estéril quando individualmente considerado, clamando por complementações no plano político e social:

[...] A perspectiva estritamente jurídica do sistema processual constitui reflexo do segundo momento histórico da sua ciência, consistente na afirmação da autonomia conceitual e metodológica e aprimoramento interno do sistema. O terceiro momento, visivelmente instrumentalista, é assim por força da percepção das responsabilidades que perante a nação e sua estrutura política o processo é chamado a assumir. Isso não significa execrar a visão jurídica de um sistema que em si mesmo é jurídico. É de suma importância e vital relevância na técnica processual a definição do modo como o processo e os seus resultados repercutem no sistema jurídico; além disso, as fórmulas mais conhecidas, através das quais se tentou a definição teleológica do processo, constituem acima de tudo pronunciamentos acerca da função que o processo desempenha perante o direito e na vida dos direitos [...].54

Uma vez compreendidos os diversos escopos da jurisdição, parte- se ao estudo do conteúdo da instrumentalidade do processo, desdobrando-se em seus sentidos negativo e positivo.

O sentido negativo da instrumentalidade consiste na negação do processo como um valor em si mesmo considerado, a fim de evitar exageros ao formalismo no modo de empregar as técnicas processuais. Aliás, a ideia do processo enquanto relação jurídica processual (fase autonomista) conduz a esta falácia, na medida em que aparenta criar sujeitos de direitos e obrigações processuais, como se o direito processual pudesse se tornar igual ou mais importante que o direito material.

53 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo:

Malheiros, 2009, p. 198-207.

Na verdade, na intrínseca relação existente entre direito e processo, não existe relação de contingência, tampouco ordem de importância. É necessário verificar que o processo exerce um papel tão importante quanto o direito material no mundo do direito. Contudo, é inegável que o processo nasceu com a missão precípua de permitir a aplicação do direito material, razão por que não pode ser visto como um fim em si mesmo, embora possua autonomia científica.

Fredie Didier Jr. traz ao lume interessante analogia no que tange a relação estabelecida entre o direito e o processo sob a perspectiva da instrumentalidade:

Ao processo cabe a realização dos projetos do direito material, em uma relação de complementariedade que se assemelha àquela que se estabelece entre o engenheiro e o arquiteto. O direito material sonha; projeta; ao direito processual cabe a concretização tão perfeita quanto possível deste sonho. A instrumentalidade do processo pauta-se na premissa de que o direito material coloca-se como o valor que deve presidir a criação, a interpretação e a aplicação das regras processuais.55

Como enfatiza Cândido Rangel Dinamarco, o sentido negativo da instrumentalidade pressupõe, portanto, nos dizeres do ilustre professor,

atitude de verdadeira humildade do processualista:

Felizmente a doutrina jamais chegou aos exageros temidos. O que se lhe critica é a postura eminentemente técnica que guardou durante muitas décadas, o que por omissão negou então ao processo essa visão exterior que hoje se postula. Mas, com o superamento [sic] dessa postura técnica, característica da fase autonomista da história do direito processual, ela soube abrir o sistema, em primeiro lugar, aos influxos constitucionalistas e à teoria geral; e, com isso, vieram as preocupações de ordem social, a que se somam as de caráter eminentemente político. Tudo isso somado constitui enérgica afirmação instrumentalista que, vista sob o aspecto considerado, apresenta-se pelo lado negativo. Todos esses movimentos, que também tiveram o seu lado positivo no sentido de operacionalizar

55 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. 13. ed. Juspodivm: Salvador,

melhor o sistema, serviram para o combate a pensamentos ligados inconscientemente à sua suposta auto-suficiência [sic].

Não se trata de se desprocessualizar a ordem jurídica. É imenso o valor do processo e nas formas dos procedimentos legais estão depositados séculos de experiência que seria ingênuo querer desprezar. O que precisa é desmistificar as regras, critérios, princípios e o próprio sistema.56

O sentido positivo da instrumentalidade, por sua vez, estaria ligado à preocupação de extrair do processo, como instrumento, o máximo proveito quanto à obtenção dos escopos jurisdicionais (social, político e jurídico). Confunde-se, portanto, com a efetividade do

processo, resumindo-a Dinamarco na ideia de que o processo deve ser

apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica,

atingindo em toda a plenitude todos os seus escopos institucionais.57

Ainda, o referido autor aduz que a efetividade do processo é composta por quatro aspectos fundamentais58, a saber:

a) a admissão em juízo: corresponde à possibilidade de acesso universal à tutela jurisdicional, superando as causas impeditivas, de natureza econômica, cultural, psicossocial e jurídica. Exemplos de políticas relacionadas seria o patrocínio técnico gratuito, a implantação dos Juizados Especiais, a isenção do preparo aos mais pobres, dispor o sistema de instrumentos de tutelas coletivas59 e difusas e estimular a arbitragem e autocomposição;

b) o modo-de-ser do processo: está ligado ao modo de operacionalização do sistema processual. Envolve o contraditório – compreendido como o direito da parte em manter o diálogo com o juiz e a possibilidade de participar intensamente do processo –, o repúdio à litigância de má-fé, a imparcialidade, a tentativa de conciliação, a informalidade, a possibilidade de o magistrado converter o julgamento em diligência em busca da verdade real, a intervenção do Ministério Público quando necessário, a adaptabilidade do procedimento, a

56 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo:

Malheiros, 2009, p. 317.

57 Ibidem, p. 319. 58 Ibidem, p. 323-359.

59 Interessante analogia Dinamarco faz ao tratar da legitimação individual como um tratamento atômico, enquanto a dimensão supraindividual estaria ligada à molecularização do direito e do processo (in DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 329).

especialização de procedimentos e a possibilidade de concessão de liminares:

O discurso envolvendo o modo-de-ser do processo, em relação ao propósito de operacionalidade do sistema, acabaria por estender-se a toda a teoria do processo como instituto jurídico, não fora a conscientizada intenção de buscar somente as grandes colunas e tendências fundamentais.60

c) a justiça nas decisões: conquanto não seja equiparado ao legislador, o instante da tomada de decisão pelo magistrado é um momento valorativo e, assim, é imprescindível que haja a adequada valoração dos fatos trazidos à baila para julgamento de acordo com o sentimento de justiça emanados pela sociedade em que faz parte. Havendo mais de uma forma de interpretar determinada situação, o juiz tem o dever de optar pelo caminho que represente e satisfaça ao sentimento social de justiça.

d) a efetividade das decisões: o processo deve possuir a capacidade real de produzir as situações de justiça desejadas pelos escopos social, político e jurídico, permitindo a tutela específica dos direitos e a sua concreção no mundo dos fatos. A título exemplificativo, cite-se o cumprimento das obrigações de dar, fazer e não fazer, por meio da aplicação de astreintes, a concessão de medidas cautelares, a possibilidade de execução provisória e o sequestro de bens.

Impende ressaltar que para Hermes Zaneti Júnior se estabelece uma relação circular entre o processo e o direito material:

[...] Pode-se dizer, neste sentido, que entre processo e direito material ocorre uma relação circular, o processo serve ao direito material, mas para que lhe sirva é necessário que seja servido por ele.

Nesta senda o processo constrói uma verdade interna razoável e argumentativa, um "direito material novo". Tal a expressão da aqui proposta teoria circular dos planos, que alberga a racionalidade material e processual do direito. Trata-se, portanto, de enfrentar a relação entre os

60 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo:

planos do Direito, interdependentes e complementares.61

O referido autor ainda conclui ao defender a teoria circular dos

planos:

[...] Continuarão existindo dois planos distintos, direito processual e direito material, porém a aceitação desta divisão não implica torná-los estanques, antes imbricá-los pelo "nexo de finalidade", que une o instrumento ao objeto sobre o qual labora.

Da mesma maneira que a música produzida pelo instrumento de quem lê a partitura se torna viva, o direito objetivo, interpretado no processo, reproduz no ordenamento jurídico um novo direito. Tal é a teoria circular dos planos.62

Assim, a visão instrumental não busca a liberdade sem limites ao julgador, sob o pretexto de que o processo seja um mal necessário. Não, longe disso: o que distingue a visão instrumental e a torna uma das etapas do conceito evolutivo de processo é a possibilidade de transformar o processo em um instrumento de perseguição dos escopos da jurisdição e, desse modo, reduzir o aparente abismo entre o processo e a visão teleológica causados pelo excessivo formalismo e a técnica pela técnica.

Vale lembrar que a evolução do direito processual civil não pode ser estudada sob uma visão estanque, como se não fizesse parte de um todo em constante evolução. Como se verá, os horrores produzidos pela segunda guerra mundial produziram um repensar de mundo, agora focado na salvaguarda dos direitos humanos, influenciando o constitucionalismo e reestruturando a grande maioria dos sistemas jurídicos em torno dos direitos fundamentais. Paralelamente, surge e interfere diretamente nos destinos do direito processual civil um processo histórico e gradual de constitucionalização do direito.

Por isso, no capítulo a seguir, busca-se estudar as importantes transformações trazidas pelo neoconstitucionalismo, dentre elas a prevalência dos princípios em detrimento das regras, a descrição das técnicas de hermenêutica constitucional e a projeção da salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais por todo o sistema jurídico, instituindo no direito processual civil uma nova fase intitulada neoprocessualismo.

61 ZANETI JUNIOR, Hermes. A constitucionalização do processo: a virada paradigma

racional e político no processo civil brasileiro do estado democrático constitucional. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, p. 283-284.

3 NEOCONSTITUCIONALISMO, DIREITOS E GARANTIAS