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Conforme explicitado no capítulo anterior, após a Revolução Burguesa houve uma mudança no pensamento filosófico da época, que, desvinculado das concepções religiosas e metafísicas advindas da Idade Média, passa a ter um viés concretista, buscando explicar os fenômenos sociais e naturais pela razão e pela ciência, ainda que esta fosse bem rudimentar no início da Era Moderna. Assim, no âmbito da deficiência, prevaleceu uma visão

organicista, centrada na busca da identificação das causas ambientais/naturais que ocasionam os diversos tipos de deficiência (CRESPO, 2011).

A biomedicina começou, então, a pesquisar mais acerca da problemática. Entretanto, o século XVIII foi um período caracterizado mais pela assimilação e consolidação do conhecimento já produzido do que por descobertas significativas. Os avanços no conhecimento da fisiologia, bioquímica e patologia foram lentos, mas deram ensejo ao início de alguns estudos no campo da medicina preventiva (ARANHA, 2001).

No tocante à deficiência mental quase nada evoluiu, tanto que ela continuou sendo considerada hereditária e incurável, fazendo com que a maioria dos deficientes mentais fossem abandonados em hospícios, asilos ou cadeias locais. As pessoas com deficiência física não tinham um destino muito diferente, na medida em que quando não eram cuidadas pelos familiares acabavam sendo colocadas em asilos e hospitais de caridade (RUBIN; ROESSLER, 1978).

Dentre os primeiros esforços que se têm conhecimento no sentido de remodelar as características das relações entre a sociedade e as pessoas com deficiência, são conhecidos os trabalhos de Jacob Rodrigues Pereira, um educador francês, que, em meados da década de 1750, buscou métodos de ensinar surdos congênitos a se comunicar. Suas tentativas foram tão bem-sucedidas que estimularam a busca por formas de tratamento para outras espécies de deficiência, especialmente a mental (ARANHA, 2001).

Já em meados de 1840, Johann Jacob Guggenbühl, médico suíço, abriu uma instituição para o cuidado e tratamento residencial de pessoas com deficiência mental, em Abendberg, Suíça. Os resultados do seu trabalho conseguiram chamar atenção para a necessidade de uma plena reforma no sistema então vigente, que tinha unicamente a internação como resposta aos problemas gerados pela deficiência (ARANHA, 2001).

Aos poucos, conseguiu-se demonstrar que as instituições asilares e de custódia, visualizadas por Foucault (1993) e Goffman (1987) como Instituições Totais, se demonstravam verdadeiros ambientes de segregação. A customização da prática de internar os deficientes e deixá-los aos plenos cuidados do abrigo constituiu o que se convencionou chamar Paradigma da Institucionalização, primeiro paradigma formal adotado na caracterização da relação sociedade/deficiência. Este representava a retirada das pessoas com deficiência de suas casas e comunidades de origem para colocá-las em instituições segregadas ou escolas especiais, comumente situadas em localidades distantes de suas famílias. Ora a justificativa da proteção, ora do tratamento influenciaram a perpetuação desse paradigma (ARANHA, 2001).

Goffman (1962, p. 13) define instituição total como “um lugar de residência e de trabalho, onde um grande número de pessoas, excluídos da sociedade mais ampla por um longo período de tempo, levam juntos uma vida enclausurada e formalmente administrada”. O autor apresentava muitas críticas à institucionalização da deficiência, argumentando, em essência, que ela afastava o indivíduo da sociedade, sendo inadequada e ineficiente na realização do que se propunha fazer, que era recuperar os deficientes para a vida em sociedade.

Vários foram os pontos negativos encontrados pelos pesquisadores da temática, como a impossibilidade de se enfrentar e administrar a vida em sociedade quando for permitido sair da instituição; oferecimento de um atendimento precário dentro das instituições; prédios decadentes; burocracia na manutenção de objetos comuns e pessoais; dados desorganizados e inverossímeis sobre os pacientes; quase nenhuma estimulação e treinamento; falta de pessoal especializado; criação de regulamentação dissonante com as reais necessidades dos pacientes; métodos de tratamento genéricos e massificados; aparecimento de distúrbios como baixa autoestima, ausência de motivação para a vida, e distúrbios sexuais, dentre outros (ARANHA, 2001).

Não foi só o setor acadêmico que identificou sérios problemas no paradigma da institucionalização, mas também o próprio Estado, haja vista a questão econômica que perpassa a problemática. Ora, é um custo muito alto manter um segmento populacional inteiro – cada vez mais crescente, por sinal – em asilos e hospitais, na completa improdutividade, sendo quase totalmente mantido pelo próprio Estado. Ademais, a comunidade jurídica desencadeou um processo geral de reflexão e crítica sobre os direitos humanos, especialmente sobre os direitos das minorias, argumentando que a vivência nas instituições totais, as quais os deficientes eram submetidos, retirava o mínimo de dignidade a que o ser humano tem direito33.

Para Fábio Konder Comparato (2008), foi com base no princípio da solidariedade, que surgiu no fito de corrigir e superar o individualismo da civilização burguesa, que passaram a ser reconhecidos como direitos humanos aqueles denominados direitos sociais,

33 A luta jurídica pelos direitos dos deficientes foi bastante pautada pelo princípio da dignidade da pessoa

humana, que entrou em processo de amadurecimento após a Segunda Grande Guerra. Anteriormente à sistematização das gerações/dimensões de princípios os movimentos em prol da comunidade de deficientes eram basicamente de cunho sociológico, pois o complexo normativo nacional e internacional ainda se encontrava alheio a essa problemática. Foram necessários muitos movimentos sociais e a ocorrência da própria Grande Guerra para que muitas nações passassem a discutir sobre a inerência dos direitos humanos, inclusive das minorias, mais afetadas pelas desigualdades sociais.

“que se realizam pela execução de políticas públicas, destinadas a garantir amparo e proteção social aos mais fracos e mais pobres” (COMPARATO, 2008, p. 65).

Assim, tendo em vista essa série de problemas encontrados no modelo institucional, iniciou-se, na década de 1960, um movimento pela desinstitucionalização, que se apoiou na ideologia da normalização, como uma nova tentativa de integrar a pessoa com deficiência à sociedade. De acordo com Braddock (1977, p. 4) a “normalização é uma ideologia [...] que reflete as necessidades e aspirações sociais de indivíduos extraordinários na sociedade”, presumindo a existência de uma condição tida como “normal”, que seria representada por um percentual maior de pessoas, e uma condição de “desvio”, que seria caracterizada por um percentual menor.

Surgiram então as denominadas organizações ou entidades de transição, que não pretendiam enclausurar totalmente o deficiente nas suas dependências, permitindo-lhe acesso ao mundo exterior e aos bens e serviços que este oferecia. O propósito era conferir uma maior proteção do que a oferecida pela sociedade aberta, com menos controle do que o exercido por uma instituição total típica.

Sob a ideologia da normalização é que se insurge o conceito de integração, no sentido de que as pessoas com deficiência devem ser ensinadas a alcançar o máximo possível os níveis da normalidade. Nesse interim, integrar nada mais é do que adaptar o sujeito, para que ele seja aceito pela sociedade. Assim, buscava-se a integração do deficiente, disponibilizando-lhe os bens e serviços que estavam dispostos à população de um modo geral, esperando que ele conseguisse se adequar a esses bens e serviços, usufruindo normalmente da sua disposição, como faria qualquer outro cidadão. Chamou-se esse modo de relação sociedade/deficiente de Paradigma de Serviços.

A crítica que se fez a essa conotação de integração é que não se pretendia reorganizar a sociedade para favorecer e garantir o acesso do diferente ao que se encontra disponível na comunidade, mas sim garantir serviços e recursos que sejam aptos a modificá-lo para que ele possa alcançar a normalidade estabelecida (ARANHA, 2001).

Não obstante muitos alcançassem os objetivos de vida independente e produtiva preconizados pelo novo paradigma, outros tantos ainda demonstravam extrema dificuldade em alcançar uma aparência e um funcionamento semelhante aos dos indivíduos não deficientes, tendo em vista as próprias características peculiares de cada tipo de deficiência e o grau de comprometimento a que ela está adstrita. Consequentemente, o paradigma de serviços se mostrou insuficiente para a adequada inserção social do deficiente.

O ideal seria a reorganização social no sentido de se garantir o pleno acesso de todos os cidadãos aos diversos bens e serviços, independentemente de quão próximos estejam dessa suposta normalidade alcançável. Por essa razão surgiu o terceiro paradigma, conhecido como Paradigma de Suporte, que pretende identificar o que pode garantir as prerrogativas do direito à convivência não segregada e o acesso aos recursos disponíveis aos deficientes. Compreendeu-se que é necessário buscar suportes, instrumentos que viabilizem o acesso da pessoa com deficiência a todo e qualquer recurso da comunidade. Esses suportes devem ser de diferentes tipos (social, econômico, físico, instrumental) e têm como função favorecer o que se passou a denominar inclusão social, processo de ajuste mútuo, por meio do qual cabe à pessoa com deficiência manifestar-se com relação a seus desejos e necessidades, e à sociedade a implementação dos ajustes e providências necessárias para o acesso e a convivência no espaço comum, sem segregações (ARANHA, 2001).

Dessa forma, a diferença primordial entre os termos integração e inclusão reside no fato de que enquanto o primeiro procura adaptar o sujeito para a vida em sociedade, o segundo, além de investir no processo de desenvolvimento do indivíduo, reconhecendo que é importante trabalhar em prol de uma melhoria pessoal, busca também a criação de condições que garantam o pleno acesso e a participação do deficiente na vida comunitária, através da provisão de recursos físicos, médico-biológicos, psicológicos, políticos e socioeconômicos.

Do ponto de vista jurídico, não existe essa diferenciação entre integração e inclusão. As duas acepções se propõem ao mesmo fim, que é conceder direitos àquele que se encontra excluído da apreciação legal, buscando não apenas a positivação desses direitos, mas a máxima efetivação. Na visão de Gomes (2008), a aferição de inclusão ou exclusão é obtida através do grau de eficácia dos direitos fundamentais. Para que a pessoa possa ser considerada incluída, é preciso que haja uma fruição em medida razoável da maioria dos direitos constitucionalmente positivados. Ou seja, é necessário ter acesso a alguns direitos primordiais, como por exemplo, direito à moradia, à saúde, ao trabalho, à educação, etc.

Várias são as estratégias de inclusão, que partem de todos os segmentos sociais. Nos anos 1960, foi constatado que só 2% das pessoas com deficiência recebiam algum tipo de atendimento, fosse de instituições governamentais ou particulares. Atenta a essa estatística, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs o programa de Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC). Nesse tipo de projeto, as pessoas com deficiência são protagonistas, pois são elas próprias quem oferecem auxílio e inspiração a outros deficientes. O objetivo era estimular a capacidade da comunidade, da família e das próprias pessoas com deficiência a assumirem seu próprio processo de reabilitação, incentivando também a sua participação nas

atividades comunitárias e o desenvolvimento de programas de geração de recursos, emprego e renda para essas pessoas (CORDEIRO, 2007).

A RBC ainda atua apenas em projetos de pequena escala, tendo em vista que sua implementação não é tão simples, já que exige um conhecimento aprofundado da realidade local, com um trabalho acurado de conscientização e mobilização da comunidade. O projeto não teve o condão de desbancar ou enfraquecer o modelo tradicional de reabilitação, conveniado por instituições oficiais ou não governamentais, que ainda continua hegemônico – embora seja bastante criticado, especialmente pelos que viveram a experiência das casas de reabilitação (CORDEIRO, 2007).

[...] paradoxalmente, quem nunca passou pelos centros de reabilitação reclama e exige a oportunidade de fazê-lo, acreditando ser essa sua única alternativa para se capacitar e conquistar a inclusão social tão almejada. Os que por lá passaram, especialmente, os “jurássicos” do movimento das pessoas com deficiência em defesa de seus direitos, renegam a eficácia dessa experiência e propõem uma nova relação das pessoas deficientes com os serviços reabilitacionais de que julgam precisar (CORDEIRO, 2007, p. 10).

Nos Estados Unidos, essas críticas ao tradicional modelo de reabilitação ensejaram a criação dos Centros de Vida Independente (CVIs), já no final da década de 1970, que recebiam subvenções governamentais e ofereciam diversos serviços, como desenvolvimento de tecnologia assistiva individualizada, transporte, assistência em projetos de acessibilidade etc. O inconveniente do projeto era sua inacessibilidade aos deficientes que não possuíam recursos para auferir seus serviços, que apenas cabiam no bolso da classe média estadunidense (CORDEIRO, 2007).

No Brasil, o primeiro Centro de Vida Independente criado foi o do Rio de Janeiro, fundado em 1988, por líderes do movimento das pessoas com deficiência, que motivou a criação de outros CVIs pelo país afora. Os CVIs brasileiros são congregados pelo Conselho Nacional dos Centros de Vida Independente (CVI-Brasil). No país, os CVIs funcionam, pelo menos em sua maioria, muito mais com a configuração das entidades de caráter reivindicativo, da década de 1980, do que como centros prestadores de serviços. Ao que parece, os serviços tipicamente ofertados pelos centros não são acessíveis ao consumo da maior parte dos deficientes brasileiros, que auferem uma renda mínima, que mal pode arcar com os serviços básicos. Noutras palavras, os CVIs nacionais são uma remodelagem das tradicionais entidades de reabilitação. Se propõem a conscientizar a sociedade sobre os direitos das pessoas com deficiência, no fito de aprovar leis de interesse da comunidade, e concretizar as políticas públicas cabíveis (CORDEIRO, 2007).