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Intelectuais, Cargos e Cultura Política

2. A MISSÃO CIVILIZATÓRIA DO ESTADO

2.5. Intelectuais, Cargos e Cultura Política

Vimos que o cenário político brasileiro pós 1930 foi palco da atuação de muitos intelectuais que, vinculados ou não à administração pública, buscavam resolver a “questão nacional”, compreender a formação da sociedade civil e do Estado, do povo e da população, da cultura e da identidade, da ordem e do progresso. Muitos destes, “independentemente de sua classe, de sua formação ‘bacharelesca’ ou especializada” (OLIVEIRA, 1982, p. 507) adentraram na máquina pública e engajaram-se nos novos organismos estatais instituídos nessa mesma época.

Intelectuais de distintas correntes de pensamento, como modernistas, integralistas, católicos, positivistas e socialistas partilhavam dessa combinação peculiar entre cultura e política nos anos 1930, o que levaria alguns a ocupar cargos-chaves na máquina pública. Este item de nosso trabalho, portanto, traduz-se (1) na reflexão a respeito da participação de alguns representantes dessa intelligentsia no interior do Estado brasileiro, especialmente nas primeiras décadas pós 1930, (2) na exposição dos principais cargos por eles ocupados e (3) no processo de reconfiguração do contexto político-cultural da nação.

[...] não nos causa surpresa o fato de a intelectualidade atuar vinculada ao Estado. Acaso não foi isto que ocorreu com o empresariado, principalmente durante o Estado Novo, quando participou dos conselhos técnicos? Não foi o operariado gradativamente atrelado ao controle do Ministério do Trabalho? Por que esperar que uma categoria social, sem posição clara na estrutura da sociedade, tivesse um comportamento distinto do movimento geral centrípeto em relação ao Estado? (OLIVEIRA, 1982, p. 507).

Para a autora, a questão seria, sobretudo, entender a lógica do Estado na absorção desses indivíduos, já que o debate deles vinculava-se à própria sociedade e a seu papel, em distintos períodos históricos brasileiros.

A política cultural dos primeiros anos do regime de Getúlio Vargas, anterior ao Estado Novo, buscou a inserção de intelectuais de diversas correntes em novas instituições estatais. Durante o período, “as proporções consideráveis que chegou a cooptação dos intelectuais facultou-lhes o acesso aos postos e carreiras burocráticos em praticamente todas as áreas do serviço público” (MICELI, 1979, p. 131). Contudo, o regime Vargas assume uma postura de domínio da cultura como um “negócio oficial” no que se refere às relações entre intelectuais e o Estado, “implicando um orçamento próprio, a criação de uma ‘intelligentsia’ e a intervenção em todos os setores de produção, difusão e conservação do trabalho intelectual e artístico” (MICELI, 1979, p. 131).

Grande parte dos intelectuais que se engajaram no serviço público estava principalmente vinculada à elite burocrática e não necessariamente a dirigentes partidários ou facções políticas. Sendo assim, a presença desses intelectuais contribuiu para tornar a elite burocrática uma força social e política com autonomia relativa, para tratar de assuntos econômicos regionais, e em relação aos dirigentes políticos estaduais.

Com a expansão colossal da máquina burocrática, determinado pela abertura de ministérios, pela criação de organismos diretamente vinculados à Presidência da República e pela concepção de várias outras instituições públicas, o Estado permitia cada vez mais a inserção desses intelectuais no comando de suas organizações. Nesse sentido, em 1930, o arquiteto Lúcio Costa passou a dirigir a Escola Nacional de Belas Artes. No ano seguinte, seria a vez de Manuel Bandeira assumir a presidência do Salão Nacional de Belas Artes. Na mesma época, o escritor José Américo de Almeida foi encarregado de compor a comissão de elaboração do anteprojeto da futura Constituição e, como membro nato do Ministério de Estado, participou ainda dos trabalhos constituintes entre 1933 e 1934. Carlos Drummond de Andrade também ingressou na máquina pública: foi oficial-de-gabinete de Gustavo Capanema na Secretaria do Interior e Justiça de Minas Gerais (1930-1932), depois atuou como seu

secretário particular durante a interventoria do estado em 1933, e chefe de gabinete de 1934 a 1945, durante sua gestão no Ministério da Educação e Saúde. Nomeado em julho de 1934, Capanema permaneceria no cargo até o fim do Estado Novo, em outubro de 1945. A administração de Capanema caracterizou-se como uma verdadeira constelação de notáveis: Heitor Villa-Lobos, Rodrigo Melo Franco, Mário de Andrade, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, além de outros poetas, músicos, teatrólogos, jornalistas e escritores que desempenharam funções em parceria com o Ministério da Educação e Saúde. Ainda em 1930, Francisco Campos foi indicado para dirigir o recém criado Ministério da Educação e Saúde. Em seguida foi nomeado consultor-geral da República, em novembro de 1933 e depois Secretário de Educação do Distrito Federal, em 1935. Poucos dias antes do golpe de 1937, Campos assumiu o cargo de Ministro da Justiça. O escritor modernista Mario de Andrade assumia, em 1935, a direção do Departamento de Cultura e Municipalidade de São Paulo. Indicou, ainda, conjuntamente com Manuel Bandeira, o nome do advogado, escritor e jornalista Rodrigo Melo Franco de Andrade, para a chefia do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, instituído logo após o golpe do Estado Novo. Oliveira Vianna foi, consecutivamente, membro do Conselho Consultivo do Estado, consultor jurídico do Ministério do Trabalho, membro da Comissão Especial de Revisão da Constituição, tendo constituído a Comissão Revisora das Leis do Ministério da Justiça e Negócios Interiores e, a partir de 1940, foi ministro do Tribunal de Contas da República. Em 1934, a partir do projeto universitário do regime Vargas, foi criada a Universidade de São Paulo, por Armando Salles de Oliveira, e no ano seguinte, a Universidade do Distrito Federal, por Pedro Ernesto.

No entanto, a ideologia revolucionária nos primeiros anos do governo Vargas, confluía com as propostas antiliberais que tomavam corpo no mesmo período. Nesse contexto, sob o Estado Novo, não tardou para que intelectuais ligados ao regime elevassem os discursos de Vargas à condição de “palavras de ordem e (...) linhas de conduta” (OLIVEIRA, 1982, p. 31). Eram os intelectuais defensores de posturas autoritárias e antiliberais que foram incorporados e permaneceram no corpo administrativo do Estado. Surgiam, a partir de então, os principais dirigentes e doutrinadores da nova ordem. Suas contribuições deram-se por engajamento em ações políticas e/ou por meio de publicação de notas, textos ou obras completas.

O projeto político estadonovista buscava, assim, a construção de uma doutrina político-ideológica e sua aceitação ou legitimação perante a opinião pública. No entanto, a instituição de uma nova ordem não se faria por meio do consenso de todos os atores sociais. Por isso o Estado embrenhava-se na sociedade civil assumindo o papel de direção e sua organização. Verificava-se, portanto, uma transfiguração de responsabilidades e atuações,

pois o Estado assumia funções que, em tese, deveriam ser executadas por diferentes grupos sociais.

Nessa perspectiva, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) ganha importância decisiva na difusão da imagem do Estado Novo. Criada em dezembro de 1939, a instituição previa a constituição de uma rigorosa política de vigilância em relação às manifestações da cultura popular para então: coordenar, orientar e centralizar a publicidade e propaganda externa e interna dos meios de comunicação; preparar manifestações cívicas, festas patrióticas; conduzir a radiodifusão oficial do governo; cumprir a censura às diversões públicas (WAHRLICH, 1983). Além disso, cabia ao DIP a elaboração de uma propaganda sistemática do governo que buscava confirmar a necessidade de divulgação da imagem governamental:

A entidade incluía as seguintes divisões: divulgação, radiodifusão, cinema, teatro, turismo e imprensa, cujo objetivo seria o de centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional, interna ou externa (VELLOSO, 1982, p. 72).

A imprensa, também vinculada ao DIP, voltava-se ao exercício da censura e propaganda do Estado Novo, e veiculava o discurso ideológico do regime em jornais e revistas. Azevedo Amaral, em depoimento à Revista do Serviço Público entende que apenas o poder público:

[...] dispõe de recursos de informação e de conhecimento das questões atinentes aos interesses nacionais para poder apreciar se a divulgação de uma notícia é ou não conveniente (AMARAL apud VELLOSO, 1982, p. 73).

Coube a Azevedo Amaral a crítica à necessidade e ao interesse de muitos intelectuais na participação do projeto ideológico do Estado Novo. Defendia, ainda, que a participação na imprensa fosse restrita apenas à “elite intelectual”, preocupada em colaborar com as novas premissas estatais:

O Estado autoritário tem de distinguir expressões de pensamento feitas no plano ideológico e no terreno da crítica superior, das manifestações turbulentas e apaixonadas de sentimentos capazes de exercer influência sobre a emotividade popular [...]. Precisa defender-se contra as manifestações de pensamento que se dirigem às massas incapazes de discriminar e de analisar o que lhe apresentam em uma linguagem acessível à sua sensibilidade (AMARAL apud VELLOSO, 1982, p.77).

Logo, a imprensa escrita seria de extrema relevância para a participação de inúmeros intelectuais, fossem pertencentes ou não ao corpo administrativo do Estado. Mônica Pimenta Velloso (1982), atenta para o fato de que as Revistas Cultura Política e Ciência Política tiveram grande importância na jornada de organização e legitimação da natureza do novo regime:

A Cultura Política, como revista oficial do DIP, é a que melhor reflete o caráter complexo da incorporação dos intelectuais, dada a diversidade do seu quadro de colaboradores. No entanto, as coordenadas do discurso são fornecidas por intelectuais de renome que, de modo geral, ou se encontram diretamente vinculados ao aparelho de Estado, pelos cargos que ocupam, ou têm participação efetiva na montagem do projeto ideológico (VELLOSO, 1982, p.78).

Outros intelectuais atuantes na imprensa escrita da época que ainda publicaram obras importantes no contexto da nova ordem nacional que poderiam ser citados seriam, dentre outros, Francisco Campos, Azevedo Amaral, Lourival Fontes, diretor do DIP e Almir de Andrade, diretor da Cultura e Política entre 1941 e 1945.

Jarbas de Medeiros (1978), em Ideologia autoritária no Brasil, define Francisco Campos como o típico ideólogo do Estado, que exerceu o papel de reformador em três sistemas públicos nacionais: de ensino, das instituições jurídicas e das instituições políticas. A posição ocupada por Campos na política brasileira é evidenciada pelos cargos e funções político-administrativas a ele concedidas, tanto em âmbito estadual quanto federal (MEDEIROS, 1978, p. 22). Em 1940, ano em que era Ministro da Justiça, Campos publicou o Estado Nacional, uma reunião de trabalhos acerca do ideário estadonovista, sendo alguns anteriores a 1937 (OLIVEIRA, 1982, p. 31).

Já Azevedo Amaral, não desempenhava atividades diretamente vinculadas ao corpo estatal, exercendo, sobretudo, atividades jornalísticas. Por não ocupar funções no quadro organizacional do Estado, Amaral sentia-se à vontade para induzir críticas a determinados dispositivos da Constituição de 1937 e possuía um caráter menos dogmático em relação a Francisco Campos. Defendia, nesse sentido, maiores ênfases a um possível projeto industrialista a ser implementado no Estado.

Embora afirme que Azevedo Amaral e Francisco Campos constituíram os “pilares da ideologia do Estado Nacional” (OLIVEIRA, 1982), Lúcia Lippi Oliveira também atribui grande relevância aos trabalhos de Almir de Andrade. Este, além de fundar e dirigir a revista Cultura Política, foi professor da Universidade do Brasil e diretor da Agência Nacional de

1943 a 1945. Para Oliveira, Andrade atrelava as tradições culturais do país com as ações políticas do governo e, assim, buscava legitimar o regime.

De acordo com Guerreiro Ramos (1982), o período em voga, palco de muitas atuações intelectuais, apresentou atores representantes de um pragmatismo crítico:

[...] indivíduos como Francisco Campos, o ideólogo da legalidade do Estado Novo; Gustavo Capanema, que, como ministro da Educação, não só presidiu a reforma institucional do sistema de ensino, como também exerceu o papel de mediador entre o Estado Novo e os escritores mais resistentes à cooptação direta pela configuração de poder; Lindolfo Collor e Agamenon Magalhães, que, decisivamente, influíram na elaboração de nova legislação trabalhista e da organização sindical (RAMOS, 1982, p. 537).

Nota-se que o conjunto de intelectuais que atuaram no início do século XX participou de um processo único, no qual cultura e política operavam conjuntamente. Sua relevância assenta-se no fato de que o Estado brasileiro foi o ingrediente principal de uma receita inacabada. Muitas transformações deram-se ao longo dos anos, possibilitadas pelas influências diretas dessa extensa lista de intelectuais. Resta-nos agora entender a real situação do Estado Brasileiro após suas longas etapas político-transfigurativas.

3. ELEMENTOS DE UMA SOCIOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO

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