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CAPÍTULO I LUCIA MIGUEL PEREIRA NAS LETRAS BRASILEIRAS

3. A intelectual católica

Vários fatores nortearam a produção literária de Lucia Miguel Pereira como romancista, ensaísta e crítica literária. Ela atuou em grupos católicos como o da revista

A Ordem juntamente com Antônio de Alcântara Machado, Jorge de Lima, Sérgio

Buarque de Hollanda, entre outros. Daí ter recebido a denominação de “intelectual católica”. Foi muito importante para a autora o apoio deste grupo, principalmente para sua consolidação como escritora no começo de sua carreira. Após os anos 30, a influência católica já se reduziu tanto na esfera doutrinária quanto na sua vida pessoal, pois uniu-se a um homem desquitado, o que era um ultraje segundo os princípios de sua época.

A revista A Ordem, meio de divulgação de idéias de correntes espiritualistas europeias, e o Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro, representaram a intelectualidade a serviço da Igreja, a partir da concepção de reconstrução de um Estado cujas bases se assentassem na valorização social, política e religiosa. Aliás, o título da revista é significativo, no sentido de indicar a busca pelo fortalecimento da família, da pátria e da religião. O Centro Dom Vital foi de fundamental importância para a implantação do projeto católico, pois congregava a intelectualidade preocupada com o futuro político- religioso do Brasil. Tanto a revista como o Centro Dom Vital foram estruturados por Jackson de Figueiredo, mais voltado para as questões políticas, e Alceu Amoroso Lima, cuja orientação tinha um caráter mais cultural.

Formou-se uma estreita colaboração entre Igreja e Estado, que contemplava a formação da Liga Eleitoral Católica, fundada por Dom Leme, cujo objetivo era orientar os religiosos sobre os direitos e deveres do cidadão, e destacava a importância do voto

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para mudanças sociais. Essa relação entre religião e política pode ser exemplificada em um excerto do jornal A Ordem, de 1932: “A família brasileira, as estatísticas attestam-

no (sic), é verdadeiramente catholica (sic) e como a família, e não mais o indivíduo, é

considerada, hoje em dia, pelos sociólogos de todos os credos humanos, como a base, o núcleo da nacionalidade, a nação brasileira é, em sua quase unanimidade,

eminentemente catholica” 58.

A Ordem era um veículo de difusão de idéias ligadas à tradição e dos valores

espirituais dos quais, segundo seus fundadores, a sociedade estava afastada, composta de artigos escritos por homens, abordava problemas sociais e políticos contemporâneos. Somente a partir de 1932, ou seja, após onze anos de sua fundação, a presença feminina começou a aparecer em publicações com temas relativos ao universo feminino. Essa novidade constitui um dado importante, na medida em que revela a consideração do aumento da importância da presença feminina no contexto social.

Lucia Miguel Pereira foi participante do Centro Dom Vital e colaboradora nessa revista e depois passa por um progressivo desprendimento com relação aos conceitos religiosos e moralizantes que cerceavam sua obra literária.

Dentre as várias crônicas escritas por Pereira, destacaremos as “Crônicas femininas”, em que estão delineados e valorizados os papéis tradicionais da mulher na família e na sociedade. Em 1933, a autora afirma:

O ciclo de vida normal e honesta da mulher tem de se processar dentro dos limites a um tempo apertados e imensos da maternidade. Tudo o que a tira daí é uma transgressão das leis naturais. A sua ação social,

se tiver de ser ampliada só o pode ser dentro desse quadro59.

58 A Ordem. Ano XII, n. 32, p. 250, out. 1932.

Nas crônicas da revista, a crescente influência do liberalismo era mal vista, uma vez que se relacionava a valores como o individualismo feminino, considerado uma afirmação de egoísmo. Nessa mesma crônica, Pereira comenta:

(...) formar mocinhas que, mal saídas dos colégios sonham ser datilógrafas para obterem uma maior liberdade financeira e mesmo uma maior liberdade, “tout court”, não é prepará-las para a vida. Ao contrário. A educação que visa a felicidade egoísta da mulher pode acarretar a sua desgraça60.

Essa rejeição ao individualismo e uma visão mais abrangente, universalizante, não só com relação à mulher, constituem um ponto de vista importante em sua crítica literária posterior com relação à produção romanesca, o qual será objeto de discordância com o movimento regionalista da década de 30.

O objetivo era preparar adequadamente a mulher, fato visto como muito importante para a realização do projeto católico no Brasil. Em outra crônica percebemos esse direcionamento nas palavras de Lucia Miguel Pereira: “A maior liberdade de movimentos, de leituras, de conversas, não é em si um mal. A menina de hoje, cedo instruída das coisas da vida (...) pode (...) se manter tão digna, tão pura como a antiga”61.

Mesmo em seu trabalho biográfico sobre Machado e Assis, notam-se resquícios de sua formação católica. Na fatura da obra, empenhou-se em escrever uma biografia que fugisse dos padrões convencionais, atendo-se a aspectos psicologizantes sobre a vida do escritor brasileiro a fim de realizar uma “biografia do seu espírito”. Como exemplo de sua visão crítica, em uma passagem em que é questionada a religiosidade do autor, afirma:

60 Ibid., p. 454.

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Que entenderia por espiritualista o mestre? Não era seguramente a capacidade de crer em Deus (...). Talvez tenha vindo sobretudo desse feitio de espírito a sua força de romancista, a arte de decompor em

seus elementos a pessoa humana62.

Sua participação na Revista do Brasil, de 1938 a 1943, já registra uma maior independência com relação aos preconceitos morais impostos pela Igreja, porém ainda não apresenta a maturidade intelectual encontrada em Prosa de ficção, em 1950. Durante o período da Revista do Brasil, ela sofre influências de intelectuais progressistas de sua época. Márcia C. Wanderley, em sua tese Lúcia Miguel Pereira – Crítica literária e pensamento católico no Brasil, discorre sobre o assunto e cita um

artigo, “Dois romances de João Gaspar Simões”, em que evidencia essa mudança da crítica no tocante à religiosidade, ao assinalar que Pereira “[tece] elogios a um subjetivismo crítico do qual se confessa partidária, concluindo que idéias e doutrinas podem se transformar em meros artifícios de manipulação e destruição da vida”63.

Os artigos publicados no Suplemento literário do Correio da Manhã, entre 1944 e 1945, já demonstram uma grande distância em relação aos fundamentos catolicistas, pois passa a ter uma postura mais liberal em defesa dos direitos humanos, contra os regimes totalitários europeus e contra a ditadura de Getúlio Vargas. Neles, percebe-se uma “evolução política em direção a um democracismo social”64. No texto

supracitado, Wanderley salienta o desapego de Pereira aos preceitos católicos em seus textos ao afirmar que “não mais estarão em pauta os princípios da autoridade da ordem e da hierarquia (como havíamos surpreendido naqueles artigos publicados n‟ A Ordem),

62 PEREIRA, Lucia Miguel. Machado de Assis - Estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte: Itatiaia; São

Paulo: EDUSP, 1988. p. 85.

63 WANDERLEY, Márcia Cavendish. Lúcia Miguel Pereira- Crítica literária e pensamento católico no

Brasil. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987. p.

128.

mas o elogio da „liberdade‟, „igualdade‟ e „fraternidade‟, direitos sagrados do homem, corporificados pela Revolução Francesa”65.

Em 1950, com a publicação do trabalho de historiografia da literatura, Prosa de

ficção, Lucia Miguel Pereira não apresenta suas restrições religiosas e morais que lhe

impediam um pleno desenvolvimento de suas habilidades literárias. Embasada em recursos teóricos consistentes e mais familiarizada com a literatura, tinha plena condição de analisar a obra literária tanto do ponto de vista externo, isto é, seu meio, quanto da estrutura interna da obra artística.

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