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Delineados que estão, de forma sucinta, alguns aspectos históricos e teóricos relevantes na compreensão do conceito de interactividade, torna-se pertinente a questão colocada por Dieter Daniels no seu trabalho Strategies of Interactivity: “Interactividade é uma ideologia ou uma tecnologia?”119.

Em 1936, o dramaturgo socialista Bertold Brecht contestava a forma manipuladora de informação através da rádio, propondo um sistema passível de suscitar a intervenção ac- tiva do público e troca de informação. “A rádio é unilateral quando devia ser bilateral. É simplesmente um aparato para a distribuição (…). Então aqui está uma sugestão positiva: alterar este aparato assente na distribuição para comunicação. A rádio seria o aparato de comunicação mais puro possível na vida pública, uma vasta rede de ligações. Isto é o mesmo que dizer, que seria se soubesse receber tão bem quanto submeter, como deixar o ouvinte falar tanto quanto ouvir, como trazê-lo a uma relação em vez de o isolar”120.

Ao assumir uma comunicação bidireccional, a rádio perderia então a força manipuladora de informação, sairia do âmbito de um distribuidor cúmplice de governos totalitários da época (1936) e aproximar-se-ia de uma democratização.

Decorridos vários anos, Dieter Daniels veio colocar uma questão bastante pertinente relacionada com a vulgarização do conceito de interactividade. Até que ponto este ter- mo ter-se-á tornado numa ideologia, na visão de uma democratização pela participação pública, ou será antes uma tecnologia, remetendo-nos a uma outra questão colocada por Turing – “podem as máquinas pensar?” – e subsequente desenvolvimento tecnológico na conquista da Inteligência Artificial.

Mais do que uma tecnologia característica dos novos media, a interactividade relaciona-se com questões sociais, mercantis e políticas. O desenvolvimento tecnológico fomentou a ilusão de uma crescente interactividade nos mais variados produtos, que ultrapassou lar- gamente os limites de uma evolução de sistemas digitais verificada, tornando-se numa

119 “Is interactivity an ideology or a technology?” Dieter Daniels (2000).

120 “Radio is one-sided when it should be two. It is purely an apparatus for distribution, for mere sharing

out. So here is a positive suggestion: change this apparatus over from distribution to communication. The radio would be the finest possible communication apparatus in public life, a vast network of pipes. That is to say, it would be if it knew how to receive as well as submit, how to let the listener speak as well as hear, how to bring him into a relationship instead of isolating him.” Bertold Brecht in Martin Lister et al. (2003), p-71.

forte ideologia de uma nova forma de democracia. Esta ideia de democratização que parte do pressuposto de uma participação colectiva, ou de que todos podem participar igualmente, torna-se mais acentuada pela própria arte contemporânea. O facto é que a afirmação de Brecht, que nos anos 30 parecia um profundo disparate, torna-se nos nossos dias uma realidade, sendo cada vez mais difícil afirmar “se estamos a comunicar com má- quinas em vez de pessoas, ou com pessoas através de máquinas, ou a falar com pessoas sobre máquinas, ou com máquinas sobre pessoas”121.

Tendo em conta a exposição feita até aqui sobre o conceito de interactividade, saliento que este pressupõe o desenvolvimento de uma actividade recíproca interdependente entre duas ou mais partes, não sendo, portanto, imprescindível a presença de qualquer dispositi- vo tecnológico. Acresce ainda o facto de a análise histórica nos mostrar que este conceito assenta em formas de arte participativa e, de um modo ainda mais evidente, em formas de comunicação assentes na interacção. Sublinhe-se que o diálogo é a forma mais elementar de interactividade. Coloca-se então de parte a ideia de interactividade como uma tecnolo- gia, ainda que possam estar frequentemente associadas.

Já a ideia de se ter tornado numa ideologia não me parece de todo inusitada. Talvez não pelos motivos alegados por Dieter Daniels, que considera os limites entre ideologia e tecnologia difusos sendo a tecnologia “uma parte central da ideologia nos anos 90”122,

mas consequência do tipo de sociedade em que estamos inseridos: uma sociedade alta- mente consumista e com sede de maximizar a ilusão de autonomia dos consumidores para maximizar o consumo simulando que o seu objecto é único e a sua experiência singular. “Ser interactivo significa que não somos mais os consumidores passivos de uma série de produtos idênticos produzidos em massa, sejam intelectuais ou materiais”123.

Verifica-se um carácter claramente comercial baseado na ideia de que tudo o que é inte- ractivo, ou passível de ser transformado pelo utilizador, é melhor e impõe-se com mais facilidade ao consumidor. Criou-se, assim, uma espécie de ideal mítico impulsionador de vendas. Neste sentido, não é de surpreender que a primeira “experiência de televisão inte- ractiva”, surgida em Ohio (EUA), em 1977, tenha usado como slogan “a era do telespec-

121 “It is becoming increasingly difficult to tell whether we are communicating with machines instead of

people, or with people by means of machines, or talking to people about machines, or to machines about people.” Dieter Daniels (2000).

122 “Technology is indeed a central part of ideology in the ’90s.” Dieter Daniels (2000).

123 “Being interactive means that we are no longer the passive consumers of identical ranges of mass-produced

tador passivo terminou”124. Os exemplos de produtos e serviços com componentes ditas

interactivas têm vindo a multiplicar-se diariamente. “(…) Cadeias de referência como a

CNN e a BBC incorporaram o conceito como identificação de marca para os seus meios

digitais: o periódico digital da CNN chama-se CNN Interactive e a BBC Online passou a chamar-se BBCI (BBC Interactive)”125,126.

Por outro lado, a multiplicidade de escolhas e opções que nos foi facultada pelo despoletar destes novos produtos e serviços, acrescida de um conjunto de novos meios, trouxe con- sigo a sensação de uma democratização social anteriormente inviável pela existência de meios de comunicação de massas apenas unilaterais. Se esta ideia de democratização e a apetência à criação de objectos adaptáveis às nossas necessidades visassem apenas o mais adequado ao utilizador, poderia desde já concluir que a interactividade seria uma ideo- logia ligada à ergonomia, enquanto promotora de bem estar humano. Mas por trás desta visão “idílica” encontra-se uma máquina complexa de produção de bens comerciais, uma “fábrica de necessidades”, que vê no conceito de interactividade um valor acrescentado dos seus produtos e que tende apenas à manipulação e indução do consumidor. Este factor torna-se mais evidente quando inserido no contexto dos meios digitais. Jogar, interagir,

prazer são acções essenciais na actual sociedade de consumo pós-moderna. A sua relação

com o real e com a representação, o simbólico, torna-se fundamental, passível de gerar um relacionamento activo em muito fomentado pela vontade de experimentação e, muitas vezes, pela sensação de poder e controlo do utilizador sobre o agente digital.

O facto é que somos convencidos de que qualquer objecto interactivo apresenta melhor qualidade ou maior potencial. Se falamos num produto interactivo pensamos que pode- mos controlá-lo, não visualizamos as limitações que o pré-programado pode conter, temos a noção de domínio sobre o objecto (e nem sequer a interactividade deverá ser entendida como manipulação ou controlo sobre). A ideia de falarmos e dialogarmos com a máqui- na alicia o utilizador. Por isso, Paul Mayer defende que uma aplicação, para alcançar o interesse do utilizador, tem de satisfazer um número de novos critérios, nomeadamente,

124 “The age of passive viewing is over.” Alexandro Rost (2004), p-3.

125 “Cadenas de refrencia mundial como la CNN y la BBC incorporaron el concepto como identificación de

marca para sus medios digitales: el periódico digital de la CNN se denomina CNN Interactive y la BBC Online pasó a llamarse la BBCI (BBC Interactive).” Alexandro Rost (2004), p-1.

126 A BBCI foi criada com o intuito de agrupar a BBC Online, a televisão interactiva, BBC Interactive, e o

teletexto, BBC Text. O conceito de uma cadeia interactiva acessível através de qualquer plataforma (in- ternet, televisão, telemóveis, etc.) esteve na base da criação da marca BBCI. Alexandro Rost (2004).

“antecipada interactividade, e aparente transparência de uso”127.

Interactividade vende melhor. Não é uma tecnologia, ainda que possa estar frequente- mente associada, já não é o acto banal de dialogar, mas provavelmente uma das mais poderosas ideologias de marketing do século XXI. Numa crítica feita por Juan Prada ao conceito de interactividade promovido pelos meios electrónicos, o autor apelida este

boom de meios interactivos como um novo fetiche, fruto de uma cultura consumista que

vê assim substituída “a fetichização da imagem que a publicidade e a inteligência do con- sumo trouxeram consigo”128 pelo fetichismo da interactividade.

No actual contexto tecnológico e comercial, o uso generalizado do conceito “interactivo” torna extremamente difícil isolar as propriedades interactivas, na relação com os media e nas aplicações informáticas, do uso difuso e pouco preciso desse conceito. Nos capítulos seguintes procurarei centrar-me no valor conceptual de interactividade, deixando para segundo plano a sua função ideológica.

127 “(…) anticipated interactivity, and apparent transpasrency of use.” Paul Mayer, “Epilogue, Computer

Media Studies: An Emerging Field”, in Paul A. Mayer (2003), p-326.

128 “La fetichización de la imagen que la publicidad y la inteligencia del consumo supusieron.” Juan Martin

Capítulo 2