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4 PRESSUPOSTOS DA ORGANIZAÇÃO CURRICULAR

4.3 O IDEÁRIO DA INTEGRAÇÃO

4.3.2 Interdisciplinaridade e contextualização

Com Lenoir (2004) tivemos oportunidade de verificar que, numa visão pragmática, a utilização da interdisciplinaridade pode significar a possibilidade de resolução abrangente de uma situação-problema; já numa perspectiva epistemológica, o trabalho interdisciplinar pode suscitar o surgimento de novas áreas de conhecimento; por fim, numa dimensão subjetiva, ela se volta mais à interação dos sujeitos que à produção de conhecimentos.

Ora, como o documento do MEC indica a resolução de problemas afetos às situações experienciais dos futuros professores como estratégia para promover a articulação entre os diferentes saberes, parece evidente que a noção de interdisciplinaridade assume uma dimensão instrumentalista. Nessa direção, a função dos conteúdos curriculares não será produzir uma reflexão sobre os conhecimentos válidos, mas tão somente resolver um determinado problema, qual seja: o de assegurar uma coerente transposição didática dos conteúdos a serem ensinados na educação básica. A utilização reducionista da noção de interdisciplinaridade leva à aplicação distorcida desse princípio nos espaços escolares.

De fato, temos presenciado, de forma bastante acentuada e em ritmo crescente em escolas de educação básica e, mais contemporaneamente, também no ensino superior, tentativas de realização de um trabalho mais articulado entre diferentes campos de saber. Porém, conforme salientamos, essas tentativas nem sempre buscam ampliar ou aprofundar os conhecimentos das áreas específicas, ou, ainda, produzir uma reflexão mais aprofundada sobre os conhecimentos valorizados. Outrossim, prestam-se a promover a realização de atividades comuns no âmbito da prática profissional.

Na maioria das vezes as experiências com atividades integradas ficam circunscritas ao nível da multidisciplinaridade, dado que várias disciplinas convivem e contribuem para a realização de um projeto sem se confrontarem em seus pressupostos básicos. Outra tendência recorrente em projetos considerados “interdisciplinares” é confundir interdisciplinaridade com pluridisciplinaridade ou transdisciplinaridade.

Na esteira de Lenoir (2004) entendemos que essas denominações revelam diferentes estratégias de articulação entre conhecimento e currículo. Enquanto a pluridisciplinaridade refere-se à justaposição de duas ou mais disciplinas próximas, cujo interesse é melhorar as relações entre elas, relação esta que é de troca de informações e acumulação de conhecimentos, a transdisciplinaridade constitui um dos tipos de integração que mais se

distancia do modelo tradicional, fundado em disciplinas. Ela representa a possibilidade de transcendência ou superação dos limites das disciplinas visto requerer conhecimentos, destrezas, procedimentos não localizados facilmente no âmbito de uma determinada disciplina.

Consoante ensejam as DCNs, construir um currículo com concepção integrada na preparação universitária do professor pressupõe que os conhecimentos trabalhados nos cursos de licenciatura estejam voltados à necessidade de uso no ambiente profissional. No Parecer CNE/CP 009/2001 afirma-se que o repertório de conhecimentos prévios dos educadores em formação deverá ser considerado no planejamento e desenvolvimento das ações pedagógicas. Na mesma direção, a avaliação sobre o processo de aprendizagem dos futuros professores deve contemplar, não só os conhecimentos adquiridos “mas a capacidade de acioná-los e de buscar outros para realizar o que é proposto” de modo a que se possa “diagnosticar o uso funcional e contextualizado dos conhecimentos” (BRASIL, 2001, p.34).

Ao se evocar o princípio da relação isomórfica entre a formação oferecida e a prática esperada, colocam-se em evidência os conteúdos da atuação prática como objetos da aprendizagem do professor. Ou seja, os conteúdos valorizados durante o percurso educativo desse profissional serão equivalentes àqueles a serem ensinados. A visão invertida de situações de formação e exercício profissional reclama que a aprendizagem de conteúdos dos cursos superiores da preparação do educador seja presidida pelos mesmos princípios filosóficos e pedagógicos que a lei manda praticar na educação básica. A contextualização adquire, pois, este significado. Será considerado contextualizado o conhecimento que possua relação direta com a sala de aula dos alunos da educação infantil e séries iniciais, universo de atuação do profissional formado.

A questão da contextualização/descontextualização dos saberes é debatida por estudiosos do campo do currículo que defendem haver descontinuidade entre o contexto de produção dos saberes e o seu desenvolvimento na escola, conforme tivemos oportunidade de verificar acima. O termo está fortemente articulado à noção de “campo recontextualizador”, que vimos tratando ao longo deste estudo. Porém, aqui, a descontextualização refere-se aos processos pelos quais passam os conteúdos antes de chegarem à sala de aula. Os conhecimentos escolares são retirados de seus contextos de referência e recontextualizados numa perspectiva pedagógica, a fim de que possam tornar-se ensináveis.

Segundo Moreira e Candau (2006, p.91), “certo grau de descontextualização se faz necessário no ensino, já que os saberes e as práticas produzidos nos âmbitos de referência do

currículo não podem ser ensinados tal como funcionam em seu contexto de origem”. Como podemos facilmente observar, o conceito de descontextualização utilizado neste caso não se relaciona, necessariamente, com o uso desses conhecimentos mas com o seu processo de produção, onde estão presentes os debates, as discordâncias e os questionamentos que marcam os conhecimentos nos seus contextos originais.

Conforme anunciamos em passagens anteriores, a perspectiva de contextualização dos conteúdos nas DCNs pressupõe a substituição de saberes especializados por conhecimentos circunscritos ao universo de atuação do professor. As situações didáticas criadas em torno do uso dos conhecimentos que aprenderam e da mobilização de outros saberes implica em compreender que as atividades curriculares devem promover

a articulação das diferentes práticas numa perspectiva interdisciplinar, com ênfase nos procedimentos de observação e reflexão para compreender e atuar em situações contextualizadas, tais como o registro de observações realizadas e a resolução de situações-problema características do cotidiano profissional. Esse contato com a prática profissional, não depende apenas da observação direta: a prática contextualizada pode “vir” até a escola de formação por meio das tecnologias de informação – como computador e vídeo -, de narrativas orais e escritas de professores, de produções dos alunos, de situações simuladas e estudo de casos (BRASIL, 2001, p.57).

Desenvolvida inicialmente nos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio, naquele espaço a noção de contextualização remete à idéia de uma “educação para a vida” (LOPES, 2002). Nessa etapa da escolaridade, o uso contextualizado dos conhecimentos tem por objetivo minimizar o caráter acadêmico dos saberes. O foco está na “inter-relação de saberes capazes de formar determinada competência” e na articulação dos “diferentes conceitos com o contexto dos alunos” (Idem, 2006, p.44).

Na formação de professores, os contextos sobre os quais a atividade educativa deve incidir são os do seu trabalho como docente. A defesa de atividades situadas, onde o futuro professor desempenhe função ativa em torno de simulações da prática, restringe o contexto ao espaço da resolução de situações-problema. Os âmbitos de conhecimento sobre os quais os conteúdos serão definidos potencializam a articulação com saberes experienciais não permitindo que o professor possa ir além daqueles já inscritos no repertório dos alunos da educação básica.

Ancorada nos pressupostos da reforma da educação básica, as DCNs impõem tanto a necessidade de contextualização dos conteúdos (Ensino Médio) como também de tratamento

de Temas Transversais (Ensino Fundamental). Dentre os temas selecionados para estudo estão: “questões sociais atuais que permeiam a prática educativa, como ética, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural, sexualidade, trabalho, consumo e outras” (BRASIL, 2001, p. 46).

Embora as tradições acadêmicas sejam minimizadas pela imposição de saberes da prática, nenhum destes aspectos diminui a força das disciplinas que continuam hegemônicas. Ocorre, porém, que a contextualização não potencializa saberes para além do que se inscrevem ao repertório cultural da escola de educação básica. Sendo assim, restringe os processos formativos aos contextos da sala de aula.

O caráter ambíguo da interdisciplinaridade na reforma da formação docente está, ainda, expresso nesta passagem:

Sendo o professor um profissional que está permanentemente mobilizando conhecimentos das diferentes disciplinas e colocando-os a serviço de sua tarefa profissional, a matriz curricular do curso de formação não deve ser a era justaposição ou convivência de estudos disciplinares e interdisciplinares. Ela deve permitir o exercício permanente de aprofundar conhecimentos disciplinares e ao mesmo tempo indagar a esses conhecimentos sua relevância e pertinência para compreender, planejar, executar, avaliar situações de ensino e aprendizagem. Essa indagação só pode ser feita de uma perspectiva interdisciplinar (BRASIL, 2001, p.54)

O pressuposto que orienta o excerto acima é de articulação entre disciplinaridade e interdisciplinaridade. No entanto, os conteúdos selecionados para a preparação do professor serão contextualizados na ótica laboral.

Com base em Moreira e Macedo (2001, p. 127), argumentamos que as reformas educacionais promovidas nos últimos anos buscam “novos padrões de auto-regulação, comparáveis aos que se encontram na organização pós-fordista do trabalho”. Isso equivale a dizer que, não obstante o discurso de organização integrada dos currículos ter se originado do movimento dos educadores progressistas, preocupados com uma educação democrática, tal discurso, contemporaneamente, teria sido recontextualizado na perspectiva da eficiência social.

Ademais, o que se tem observado é a associação da matriz deweyana à crítica ao currículo tradicional desconsiderando-se a possibilidade de outros princípios integradores, diferentes daqueles situados no conhecimento experiencial. Arriscamos dizer que o tipo de conhecimento defendido nas reformas curriculares da formação docente, partindo da idéia de contextualização como a utilização prática dos saberes, ao mesmo tempo em que mascara e

oculta as desigualdades sociais e as diferenças de classe, também secundariza “as reflexões de cunho político, filosófico e sociológico que, a nosso ver, não podem deixar de informar a atividade docente” (MOREIRA; MACEDO, 2001, p. 120).

No Parecer CNE/CP 009/2001 se afirma ser

imprescindível que o professor em preparação para trabalhar na educação básica demonstre que desenvolveu ou tenha oportunidade de desenvolver, de modo sólido e pleno, as competências previstas para os egressos da educação básica, tais como estabelecidas na LDBEN e nas diretrizes/parâmetros/referenciais curriculares nacionais da educação básica. Isto é condição mínima indispensável para qualificá-lo como capaz de lecionar na educação infantil, no ensino fundamental ou no ensino médio (BRASIL, 2001, p.37).

Sem dúvida, o que se aponta no documento como condição mínima para qualificar o professor a lecionar nos níveis de ensino da educação básica é relevante e indiscutivelmente necessário. Porém, não suficiente para uma atuação docente que tenha por finalidade promover um movimento contra-hegemônico em relação à lógica imposta pelo atual sistema econômico.

Pelos argumentos expostos, é possível admitir que, tal qual os demais pressupostos norteadores da organização curricular, também a perspectiva de integração curricular se apresenta de maneira multifacetada nas DCNs. De um lado, essas Diretrizes apontam a noção de competências como elemento de integração curricular. De outro, assinalam a continuidade disciplinar numa perspectiva interdisciplinar. Por fim, acenam a possibilidade de tratamento articulado dos conteúdos pela unificação de estratégias metodológicas dando mostras de que seriam os conteúdos experienciais a assegurar a integração pela visão contextual que oferecem. Ainda que com níveis distintos, encontram-se amalgamados pressupostos de organização do conhecimento escolar provenientes de matrizes que associam diversamente princípios lógicos, psicológicos e sociais de integração.

O caráter multifacetado destas proposições gera pontos de escape na recontextualização das DCNs. Identificar e ressignificar estes pontos em favor de um profissionalidade emancipatória nos parece o caminho mais apropriado para a organização curricular no campo da prática pedagógica.

4.4 CONSTRUINDO UMA VISÃO DAS DIRETRIZES NACIONAIS A PARTIR DAS