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2. AS RAMPAS DO CIBERESPAÇO

2.1 ENTRE HOMENS E MÁQUINAS

2.1.2 Interfaces do ciberespaço

Desde que os computadores foram inseridos em nossas dinâmicas socioculturais, nos habituamos a um modelo de computador que, embora tenha variações entre fabricantes, possui os periféricos – tela, teclado e mouse – incorporados em seu hardware, e um sistema operacional com interface gráfica – ícones e janelas – como um atrativo não só visual, mas com competência para uma melhor performance cognitiva.

Nesse conjunto de interação cognitiva, tela, teclado e mouse “passaram a simbolizar a própria máquina” (LÉVY, 2001, p. 102). Se, atualmente, é impensável a utilização de um computador sem tela, por volta do final dos anos 1970 este componente não fazia parte dos primeiros computadores, como observa Lévy (ibidem). Já o teclado, desde sempre presente – apesar do seu hipotético desaparecimento no futuro, conforme acredita Vilches (2003, p. 172) –, permanece até mesmo em dispositivos como o iPad que, a princípio, não o contém de forma física, mas continua em sua estrutura, sob forma virtualizada. Esse dispositivo, mesmo após mudanças de interfaces – de sua forma física para a virtualizada –, ou até mesmo com o advento das tecnologias de reconhecimento de voz, ainda permanece indispensável.

O mouse, dispositivo que “permite ao usuário agir sobre o que ocorre na tela de forma intuitiva, sensório-motora” (LÉVY, 2001, p. 36), ao contrário da interação via teclado, também aparece indispensável à maioria dos usuários domésticos, apesar da utilização mais abrangente da tecnologia touch screen, que transforma a tela do computador – ou as de outros artefatos tecnológicos – sensível ao toque humano. O mouse não só permite o controle da “máquina” pelo usuário, como também representa uma extensão das suas mãos, pois é através dele que o usuário “toca” no espaço virtual do sistema operacional ou, conforme Johnson (2001, p. 22), é ele que faz o papel de representante do usuário no espaço de dados. Mesmo com o advento do touch screen, o mouse ainda permanece, mesmo que simbolicamente, pois que agora é a própria mão do usuário.

Essas tecnologias, com as quais a maioria está habituada, são “amigáveis”, posto que estão cada vez mais “imbricadas” ao sistema cognitivo humano (LÉVY, 2001, p. 52). Contudo, verifica-se que pessoas com deficiência não encontram a mesma familiaridade das pessoas sem deficiência ao operar computadores e demais dispositivos tecnológicos, na medida em que estes são fabricados/pensados sob a perspectiva de uma pessoa sem deficiência.

É possível verificar que, para cada um dos “tipos de deficiência”43, há, pelo menos, uma

barreira que pode ser considerada a mais impactante na fruição dos espaços virtuais. Para pessoas cegas, a percepção/apreensão do sistema operacional, da Internet ou de qualquer outro ambiente mais imersivo como os dos videogames, é diferente dos outros usuários, mesmo com deficiência, mas que não são cegos; isto porque a visualidade é predominante na sociedade, e no ciberespaço não é diferente: a imagem permanece protagonista (VILCHES, 2003, p. 251).

No tocante a uma plena utilização do mouse, se faz necessário o despertar de uma acuidade visual para acertar o “alvo”, assim, verificamos que a utilização desse dispositivo por pessoas cegas é dispensável. Também, por questões de visualidade, poderíamos pensar que o uso da tecnologia touch screen seria um problema para os cegos; contudo, é possível verificar a existência de acessibilidade em dispositivos como o iPad. Do mesmo modo, a tela poderia ser considerada um elemento desnecessário para esse grupo, pois os elementos da interface gráfica a que estamos habituados são acessados e entendidos de outras maneiras. O teclado é, nesse sentido, o dispositivo que propicia a interação dos cegos no computador, substituindo as funções do mouse, com o auxílio de caixas de som/fones de ouvido e Tecnologia Assistiva – leitores de tela.

Esse modelo de computador, a que estamos habituados, seguiu seu desenvolvimento a partir do lançamento do Macintosh – pela Apple – e, posteriormente, com o padrão IBM/PC. Foi a partir da invenção e desenvolvimento do mouse e das “janelas” – por volta dos anos 1970 –, com uma interface gráfica semelhante a uma mesa de escritório – o desktop – que os computadores para uso pessoal começaram a se popularizar. A Apple “introduziu na imaginação popular quase todos os elementos da interface atual: menus, ícones, pastas, lixeiras” (JOHNSON, 2001, p. 41) e que ainda continuam sendo o padrão de desenvolvimento das outras interfaces, de distintos sistemas operacionais, como Windows, Linux, iOS, Android, e diversos outros aplicativos de uso comum, como as interfaces gráficas de caixas eletrônicos, por exemplo.

Em todas, a visualidade impera, e o uso costuma ser intuitivo na maioria das operações básicas; esta foi a forma com que a Apple – protagonista nesse processo, como indica Lévy (2001, p. 48) – percebeu “como era possível interagir com um computador de forma intuitiva e sensório-motora, sem o intermédio de códigos abstratos”. Para Johnson (2001, p. 23), as interfaces já alteraram o modo como usamos computadores e continuarão a alterar nos anos que seguem. Lévy lembra que:

Estudando o caso Apple [...] veremos que o computador pessoal foi sendo construído progressivamente, interface por interface, [...], cada elemento suplementar dando um sentido novo aos que o precediam, permitindo conexões com outras redes cada vez mais extensas, introduzindo pouco a pouco agenciamentos inéditos de significação e uso, seguindo o próprio processo de construção de um hipertexto. (LÉVY, 2001, p. 45)

Em sentido simples, conforme Johnson, as interfaces gráficas referem-se aos softwares que dão forma à interação entre usuário e computador: “A interface atua como uma espécie de tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra” (2001, p. 17). É por meio das interfaces gráficas que a linguagem textual dos sistemas digitais – o código-fonte – se faz compreensível ao homem (VILCHES, 2003, p. 23). No design de interface, a janela do computador “exibe uma semelhança superficial com uma janela do mundo real, mas é a diferença que assegura o sucesso da metáfora44” (JOHNSON, 2001, p. 48). Para Vilches (2003, p. 240), “a partir do instante em que um usuário serve-se de uma interface [...], estabelece-se uma relação com o ambiente cultural”.

É por meio das interfaces – e por sua analogia ao espaço não virtual – que o ciberespaço se faz inteligível. Por trás dos ícones coloridos, entre “lixeiras”, “pastas” e “janelas” interativas das interfaces dos sistemas operacionais, estão sequências de zeros e uns, comandos e códigos das linguagens de programação. O que temos são códigos “traduzidos” em metáforas, com as quais passamos a ter familiaridade. Conforme Johnson, compreendemos intuitivamente que as metáforas visuais “têm uma função cognitiva importante e cada vez mais indispensável” (2001, p. 110). A interface gráfica alterou a relação entre computador e usuário, uma vez que este passou a “dominar” a máquina, ou seja, “em vez de dizer ao computador que a fizesse por nós” o usuário sentia que estava “fazendo alguma coisa diretamente com [seus] dedos” (ibidem, p. 22), ou, em outras palavras, “o usuário faz coisas acontecerem de uma maneira imediata, quase tátil: em vez de dizer ao computador para excluir um arquivo, ele o arrasta para a lixeira” (ibidem, p. 130).

Johnson (2001, p. 20) destaca a importância do design de interfaces na sociedade contemporânea, pois esta é “cada vez mais moldada por eventos que se produzem no ciberespaço”. A interface é, para Johnson, “uma obra de cultura tanto quanto de tecnologia” (ibidem, p. 40), pois, ele diz, a nossa era digital pertence à interface gráfica (ibidem, p. 156). A mudança cultural que as interfaces introduziram foi permitir o deslocamento massivo do uso de computadores enquanto mera ferramenta – tal como uma antiga máquina de datilografar ou

44 Citando Aristóteles, Johnson (2001, p. 48) define uma metáfora como “o ato de ‘dar a uma coisa um

nome que pertence a outra coisa’ [;] o elemento-chave nessa fórmula é a diferença que existe entre ‘a coisa’ e ‘outra coisa’”.

calculadora –, para um ambiente de relação, primeiro entre homem e máquina e, depois, entre homem-máquina-homem através da conectividade em rede. Para Vilches (2003, p. 242), a interface também é um meio cultural e de comunicação, e é isso que permite essa relação dialógica entre homem e máquina.

As interfaces gráficas potencializaram o uso dos computadores tornando o ciberespaço um espaço visual. As interfaces são criadas e significadas a partir dos elementos culturais que circunscrevem a sociedade; as interfaces fazem parte das dinâmicas socioculturais tanto nos ambientes físico, quanto do ciberespaço. Sem as interfaces gráficas ainda estaríamos quase inertes diante de uma tela verde, entre linhas de comando e códigos “indecifráveis”; o ciberespaço continuaria, talvez, restrito aos nerds, cientistas e militares, como foi em suas origens, com a Arpanet, até o final dos anos 1970. Como registrou Wertheim,

É bom lembrar que, até muito recentemente, a “ágora” digital foi de fato um lugar extremamente exclusivo. Até 1993 (quando surgiu o primeiro software “navegador” para a World Wide Web), poucas pessoas fora das universidades e institutos de pesquisa tinha acesso à Net. [...] (WERTHEIM, 2001, p. 214)

Nesse contexto, podemos perceber que a emergência de uma rede civil/comercial – a Internet –, desprendida dos domínios acadêmicos e militares, ampliou a acessibilidade ao ciberespaço, ao incluir também a sociedade civil, de maneira geral, outrora excluída do círculo da Arpanet. O design de interface teve um papel importante na evolução da Arpanet à Internet. Do mesmo modo, também, conforme Vilches (2003, p. 197), “o próprio computador incorporou as instruções e os programas tornaram-se mais fáceis de instalar [,] bastava familiarizar-se com o meio, o que se aprendia com a prática cotidiana [,] não era necessário conhecimento informal, mas intuitivo”.

A adoção generalizada da interface gráfica “expandiu enormemente a capacidade de usar os computadores entre pessoas antes alienadas pela sintaxe misteriosa das interfaces mais arcaicas de ‘linhas de comando’” (JOHNSON, 2001, p. 18), que representavam um sistema “contra intuitivo”; interfaces como o MS-DOS demandavam do usuário um domínio consideravelmente avançado de informática para serem operadas, pois, conforme lembram Burnett e Marshall (2003, p. 27), “os ícones escolhidos para fazer um diretório ou mover um arquivo de um local para outro exigiam vários passos para completar através de comandos do MS-DOS, mas com o Windows, os comandos são agrupados em série sob o ícone” 45.

45 Tradução livre do trecho: The icons chosen to make a directory or to move a file from one location to

another may have required several steps to complete through MS-DOS commands; but with Windows the commands are grouped in series under the icon.

A era da linha de comando e das combinações de teclas para fazer o computador executar tarefas supostamente chegara ao fim, a partir da popularização dos sistemas operacionais com interfaces gráficas. Elas praticamente eliminaram o modo texto dos computadores antigos, que representariam dificuldades aos usuários domésticos; libertando-se da linha de comando, mudou, também, a experiência do usuário, quando este, justamente por meio do mouse, como suas próprias mãos, começa a “manipular” o ambiente virtual “e de repente [...] se sente em casa com a máquina [...]” (JOHNSON, 2001, p. 103). Contudo, pessoas cegas comumente recorrem às linhas de comando, a combinações de teclas e sistemas baseados em texto para realizar atividades no computador. Então o que representam as interfaces gráficas dos computadores e demais tecnologias a esse grupo de usuário?

O tema interfaces se faz relevante quando consideramos, tal como Lévy, não restrito apenas às suas formas virtuais – ou seja, softwares –, mas também a dispositivos, inclusive físicos, que permitem a comunicação entre homens e tecnologia. Em nada as palavras de um livro – ou melhor, da interface livro – valeriam aos cegos, posto que estariam impossibilitados de ler. Mas se o cego utilizar um dispositivo que faça um scanner do texto – uma Tecnologia Assistiva –, as palavras desse livro, ou seja, a sua interface gráfica, lhes serão acessíveis. As interfaces gráficas precisam permitir que os cegos consigam “enxerga-las”.

A noção de interface pode estender-se ainda para além do domínio dos artefatos. Esta é, por sinal, sua vocação, já que interface é uma superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidade diferentes: de um código para outro, do analógico para o digital, do mecânico para o humano... Tudo aquilo que é tradução, transformação, passagem, é da ordem da interface. (LÉVY, 2001, p. 181)

As interfaces de tudo aquilo a que nos referimos como ciberespaço é a tradução, codificação/decodificação de infinitas linhas de códigos. Conforme lembra Johnson (2001, p. 110), “todas as linguagens importantes que governavam a relação entre o computador e o usuário eram baseadas em texto: Basic, Cobol, Unix, Dos”; o ciberespaço é, deste modo, um mundo criado pela linguagem (WERTHEIM, 2001, p. 220) ou protocolos, “que asseguram que todas as máquinas possam falar umas com as outras”. Assim, são necessários ao ciberespaço normas e procedimentos para assegurar a “integração das partes ao todo” (MATTELART, 2006, p. 24). Segundo Wertheim,

[...]Cada linguagem e cada protocolo eletrônico que tornam o ciberespaço possível são cuidadosamente programados por comitês internacionais especializados. [...] Uma vez estabelecidos, esses protocolos só funcionam efetivamente porque toda a comunidade da rede concorda em adotar esses códigos comuns. Sem essa responsabilidade mútua, a coerência do ciberespaço logo desmoronaria, porque os vários segmentos da rede já não seriam capazes de se comunicar entre si. Na verdade, poderiam não ser capazes de comunicar de maneira alguma. [...] (WERTHEIM, 2001, p. 222)

Com o advento das interfaces gráficas, uma outra separação parece ter se acentuado: a separação entre programadores e usuários, apesar da maior disponibilidade de softwares de programação com interface gráfica no estilo “WYSIWYG46”; atualmente, muitos dos softwares

que possibilitam a programação de páginas para Web por meio desse recurso ampliaram a capacidade criadora na Internet para além dos programadores, mas, em dado momento, há limitações nesse tipo de programação. Os programadores não podem se desprender das linhas de comandos completamente, pois é na programação que está o maior poder Criador do ciberespaço. Importante mencionar que até 1975 os computadores não tinham uma linguagem de programação em comum. Nessa época, conforme Lévy (2001, p. 44), quando se compravam computadores, só podia ser pelo prazer de programar, pois “não serviam para quase nada, todo o prazer estava em construí-los”.

O uso social dos espaços virtuais é “uma mediação material feita segundo regras fechadas”, na qual bastaria um erro na transcrição de um código ou um problema de incompatibilidade “para que o comando não gere qualquer efeito” (VILCHES, 2003, p. 201). O erro em sistemas digitais recebe o nome de bug: um simples erro na semântica, uma pequena falha “gramatical”, que pode tornar qualquer sistema vulnerável. E quando nos referimos a uma ciber-sociedade, qualquer vulnerabilidade em sua estrutura lógica ou Web semântica47 pode representar uma ameaça a governos, organismos financeiros, militares e demais instituições.

Para Castells (2003, p. 226), “à medida que a Internet se torna a infraestrutura onipresente de nossas vidas, a questão de quem possui e controla o acesso a ela dá lugar a uma batalha essencial pela liberdade”. A luta pela liberdade no ciberespaço tem relação direta com o poder de manipulação dos códigos. Para o autor (2003, p. 151), “o caminho que as sociedades tomarão certamente não depende do próprio código, mas da capacidade que têm as sociedades e suas instituições de impor o código, resistir a ele e modifica-lo”. Nesse ponto, há um embate entre a ideologia libertária – códigos livres de softwares e de hardwares – e a prática cada vez mais controladora dos Governos e grandes corporações. Desta forma, qualquer possibilidade do Governo ou demais instituições em exigir o cumprimento da acessibilidade no ciberespaço poderia contrariar essa noção de liberdade? Para Mattelart,

A incorporação do tema das tecnologias da informação e da comunicação na agenda política torna-se então, ao menos para os setores reformistas, uma ocasião para iniciar um debate de fundo sobre a técnica, a sociedade e as liberdades individuais e, indiretamente, catalisa a reflexão sobre a incompatibilidade do modelo de desenvolvimento inscrito nas lógicas extremadas do liberalismo com os cenários de

46 Acrônimo da expressão “What You See Is What You Get”, cuja tradução remete a algo como “O que

você vê é o que você obtém”.

47 Expressão criada por Berners-Lee para se referir à organização do conteúdo da Web. (BERNERS-

construção de uma sociedade do conhecimento para todos e por todos. (MATTELART, 2006, p. 163)

Se pudéssemos mapear e compilar o código-fonte do ciberespaço, este seria composto por múltiplas linguagens, escritas das mais variadas formas e estilos, com suas incongruências internas e incompatibilidades externas, tecidas por distintos autores, com seus erros de semântica, vícios de linguagens, falhas estruturais e, quase sempre, na mais completa revelia. Normas e procedimentos para o ciberespaço existem desde o surgimento da primeira linguagem de programação – afinal, não seria uma linguagem se não se valesse de uma norma. A escrita do ciberespaço é livre: mesmo sob normas, pode-se arbitrar. O verbete acessibilidade deve fazer parte de todas essas linguagens que compõem esse espaço e ser “norma padrão”, para assegurar a liberdade de todos os usuários, sem distinção.

Por trás de todo ícone cintilante na tela de um computador estão linhas de códigos; para cada foto, texto, som, vídeo, animação, site, que figuram no ciberespaço, estão bits de informação, códigos binários, sequências matemáticas, linhas de textos... codificadas por uma linguagem que só os sistemas digitais conseguem decodificar e traduzir em uma linguagem visual que entendemos. Mas, conforme Burnett e Marshall (2003, p. 21), “cada vez menos pessoas estão cientes de como códigos de computador e computadores operam; camadas por camadas de gráficos nos distanciam da natureza da própria tecnologia” 48.

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