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1. CLASSES E TRAJETÓRIAS SOCIAIS: UMA PROPOSTA DE PERCURSO

1.3. Interfaces com a Sociologia da Família

Como vimos, o conceito de habitus visa dar conta das práticas de aprendizado que fundamentam repertórios de consciência prática pré-reflexiva, através da introjeção de certos

13 A partir da análise, as falas passam então por um processo de “re-categorização”, agrupando as narrativas em certos discursos típicos chamados pelo autor de “formas identitárias” (DUBAR, 1998).

esquemas de percepção, apreciação e ação. Seguindo esse raciocínio, a família reclama em Bourdieu (2013; 2011) o estatuto de principal esfera de socialização cotidiana, pela qual a assunção de papéis corresponde à aquisição de disposições adaptadas a determinada estrutura familiar. Com isso, a família, fundada em transações afetivas, termina por ser decisiva no aprendizado de padrões de comportamento que orientam as condutas individuais.

Segundo Bourdieu (2013, p.89), os habitus, como “estruturas características de uma classe determinada de condições de existência”, são produzidos pela experimentação familiar das necessidades econômicas e sociais “externas”. A esfera doméstica é descrita, então, como “relativamente autônoma”, já que propende a se moldar a tais necessidades. Seguindo esse argumento, as características familiares estão associadas às classes teóricas que congregam indivíduos “próximos” em um determinado espaço social, verificando-se uma relação de sobreposição e complementaridade entre as diversas instâncias socializadoras (BOURDIEU, 2011). Assim, embora Bourdieu (2013) aponte a existência de conflitos e “desajustes” das disposições constitutivas do habitus, ganha preponderância em seus argumentos a forma com que certas práticas reproduzem-se nos percursos biográficos. Levando em conta a importância das primeiras experiências para a conformação e conservação dos habitus, a família ganha destaque como uma sociabilidade originária e precoce que condiciona as experiências de socialização posteriores.

Por outra via de argumentação, Bourdieu (2011) afirma que o que entendemos por família, ou mais especificamente por “família normal”, é o produto de disputas que objetivam a produção de categorias percebidas e assumidas como válidas. Por meio destas disputas, que seguem a lógica agonística da teoria dos campos, a noção de família configura-se como um princípio que não somente descreve, mas também prescreve a realidade social (BOURDIEU, 2011). Nesse sentido, para que a família ganhe realização prática e faça parte do cotidiano de grupos de indivíduos, é necessário que ocorra o que Bourdieu (2011) chama de “trabalho de instituição”. Por mecanismos rituais e técnicos, tal empreitada visa inculcar nos indivíduos que compõem a esfera familiar o senso de pertencimento a um grupo coeso e com necessidades coletivas, garantindo as condições de integração que asseguram a reprodução material e simbólica do grupo. O trabalho de instituição fortalece os vínculos afetivos e materiais que ajustam a inserção do indivíduo em um corpo social que o transcende, resguardando a integração familiar das disputas que são inerentes ao funcionamento dos campos (BOURDIEU, 2011).

Com base nesses elementos, Lahire (2004b) afirma que na perspectiva bourdieusiana é com base em um habitus familiar, em sua maior parte homogêneo e coerente, que as formas de ação e pensamento são incorporadas pelos indivíduos. O aprendizado dado a cabo na família conferiria ao agente um conjunto de disposições gerais e permanentes, passíveis de serem transferidas para outros contextos. Contudo, no entendimento de Lahire (2004b), em sociedades altamente diferenciadas os indivíduos são submetidos a esquemas plurais de socialização, observando-se a perda paulatina do monopólio familiar no ensino de valores e comportamentos. A despeito da importância conferida por Bourdieu à coerência do habitus, a diversidade dos contextos percorridos em uma trajetória revelam que “os esquemas de socialização são de fato muito mais heterogêneos e cada vez mais precoces”, fator que repercute na heterogeneidade dos patrimônios de disposições individuais (LAHIRE, 2004b, p. 318). Assim, se em Bourdieu a família emerge como uma socialização primordial que predetermina as experiências posteriores, conformando um habitus a ser gradualmente conservado e desenvolvido desde a infância (salvo em situações excepcionais de ruptura), em Lahire a trajetória individual ganha maior relevo, através da qual a família emerge como uma forma de socialização dentre tantas outras possíveis.

Em sua argumentação, é nítido que Lahire remonta ao argumento weberiano de enfraquecimento da associação doméstica. Para Weber (2012), este processo histórico seria resultado da diferenciação intrafamiliar das capacidades e necessidades individuais, somada ao crescimento dos meios alternativos para obtenção de renda. Limitada a uma esfera de consumo comum, a família deteria cada vez menos poder de incutir nos indivíduos formas de ação e pensamento, processo intimamente relacionado à perda de sua função produtiva. Problematizando esta inflexão histórica, Weber (2012, p.258) defende que o indivíduo cada vez mais adquire “toda sua formação para a vida […] fora da casa e por meios que não lhe são proporcionados pela casa mas por 'empreendimentos' de todas as espécies: escola, livraria, teatro, sala de concertos, clubes, reuniões, etc.”.

Todavia, se é verdade que os indivíduos transitam por ambientes que extrapolam as fronteiras familiares, também é verdade que Bourdieu nos brindou com uma desconstrução bastante exitosa do suposto esvaziamento da atuação familiar na modernidade. Enquanto que em Weber os “empreendimentos” tomariam para si a “formação para a vida” dos indivíduos, em Bourdieu passam a ser tratados como instâncias ajustadas ao lugar ocupado pelo indivíduo no espaço social. Como expressão fundamental de tais lugares, a família conforma horizontes

distintos de circulação e apropriação de recursos, condicionando os resultados dos empreendimentos “modernos”. Dessa forma, os resultados da “formação para a vida” destes empreendimentos, assim como a definição de quais empreendimentos são acessíveis aos indivíduos, dependem das experiências familiares de subsistência e aprendizado. Nesse caso, basta imaginarmos o percurso do indivíduo pela linha família-escola-trabalho, uma trajetória que somente é lógica porque aprendida como válida e passível de persecução. A despeito de uma suposta igualdade de oportunidades advinda da participação nas instituições modernas, Bourdieu atentou para o condicionamento do “sucesso” pessoal ao montante de capitais disponíveis às famílias, da mesma forma que demarcou a relevância da transmissão intergeracional de habitus para a produção de indivíduos entendidos como “aptos” à competição. O habitus familiar, que de certa forma corresponde a um habitus de classe, passa a ser percebido como uma linguagem específica que transmuta o acesso desigual a bens e serviços em diferenças simbólicas (BOURDIEU, 2013). Este movimento torna-se possível na medida em que o conceito de classe adquire uma conotação mais ampla, abarcando em sua definição os diferentes padrões de planejamento e regulação das interações cotidianas. Em decorrência, a família revela-se como uma esfera de sociabilidade pela qual as trajetórias de classe ganham concretude.

Assim, o percurso do indivíduo por diferentes “lugares” de um espaço social assume como principal ponto de referência a esfera familiar. Por um lado, com base na sustentação diferencial para o acúmulo de capitais, a família estabelece os limites das trajetórias. Por outro, a própria trajetória assume seus contornos a partir das estratégias de acesso aos capitais, nas quais a supressão de certas necessidades associa-se à projeção de trajetos para os componentes de uma família. Na análise empírica, entretanto, o contraponto apresentado por Lahire se revelará bastante profícuo, fazendo com que a continuidade das experiências de socialização não seja percebida como dada a priori, mas sim objeto de problematização. Mais do que como uma sociabilidade originária que demarca um script para as trajetórias, a esfera familiar será tratada como uma rede de suporte que condiciona investimentos materiais e afetivos aos seus membros.

Partindo desse arcabouço mais geral, o trabalho termina por desfrutar de um diálogo mais amplo com o pensamento sociológico, da mesma forma que é capaz de compreender alguns marcos que caracterizam uma teoria da socialização. Todavia, para os propósitos desta dissertação, mostra-se imprescindível uma leitura específica no campo da sociologia da

família, principalmente no que diz respeito à forma com que as experiências coletivas de acesso a recursos, associadas à estratificação por classes, se interpenetram com as experiências de socialização familiar, situadas fundamentalmente na esfera doméstica e em suas ramificações.