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O interlúdio satírico nos anos 1990

3 O espaço utópico nos filmes de zumbis contemporâneos

3.2 O interlúdio satírico nos anos 1990

Se os anos 1980 ficariam marcados por dois movimentos distintos, como o retorno dos zumbis às suas raízes caribenhas; e a sua conexão com o camp, a paródia, e o splatistick; o início dos anos 1990 ofereceria uma tentativa de reconectar o zumbi ao terror.

O primeiro sinal disto ocorreu no ano de 1990, com a refilmagem de A Noite dos

Mortos-Vivos. O roteiro foi reescrito por Romero e dirigido pelo seu colaborador e técnico de efeitos especiais Tom Savini, com a intenção de enfim conquistar os direitos de copyright do filme, perdidos por um descuido140 durante o lançamento do filme em 1968. A nova versão manteve a trama bem próxima da original, porém inseriu algumas mudanças significativas em relação à composição dos personagens: Ben deixa de ser um homem confiante em suas ações para adquirir uma personalidade mais insegura e assustada; e Barbara perde a fragilidade emocional e adquire o status de protagonista da trama.

139Tradução minha do seguinte trecho: ―A film like Friday the Thirteenth, for example, is not guilty of expressing an anti- feminist viewpoint, for it has no viewpoint at all. It's not about anything. Friday exists mainly as a showcase for its grisly and astonishing special effects. And that it contains so many varied effects is precisely why splatter fans were drawn to it in such large numbers[...]One must remember, splatter movies by their very nature are eclectic. Often there isn't a new idea or plot device in them, for creativity is usually reserved for the special effects alone.‖

140 Na época do lançamento do filme de Romero, a distribuidora decidiu mudar o título do filme, de Night of Anubis/Night of

the Flesh Eaters para Night of the Living Dead por achar este nome mais vendável, porém, esqueceu-se de incluir a marca de copyright após a alteração do nome. Segundo a legislação da época, a ausência desta marca colocava o filme automaticamente em domínio público. (Heffernan, 2002: 75)

Esta nova versão de Barbara parece avançar ainda mais o legado de Fran e Sarah, na medida em que a personagem é retratada como uma mulher capaz de garantir a sua própria defesa, ao concluir no decorrer do filme que nem o térreo nem o porão da casa são seguros, e a melhor solução seria sair em busca de ajuda. Os outros personagens, no entanto, apresentam grande desconfiança em relação às ideias da personagem, levantando a possibilidade de ela estar enlouquecendo, em uma virada irônica do roteiro em relação ao filme original. Mas na realidade Barbara é retratada como a única personagem sã e coerente dentro do grupo de sobreviventes, uma vez que estes apresentam o mesmo comportamento do filme original, entregando-se a disputas territoriais internas. Ao final do filme, ela decide buscar ajuda, enquanto os outros sobreviventes permanecem na casa, revelando que a personagem de certa maneira superou a versão antiga do filme, descobrindo que manter-se dentro da casa não iria garantir-lhe a salvação. Em sua busca, ela encontra um grupo de rednecks ainda mais agressivo do que seus correspondentes da versão original, remetendo também a uma continuação das ideias desenvolvidas por Romero em Despertar e Dia dos Mortos em relação a crescente desumanização dos sobreviventes e humanização dos zumbis. Ao retornar à casa de campo com os rednecks, Barbara descobre que apenas Cooper sobreviveu à noite, e, de uma forma um pouco cômica, atira no personagem, em resposta ao seu comportamento mesquinho e misógino.

Portanto, podemos observar que o filme de 1990, ao mesmo tempo em que constantemente brinca com o conhecimento prévio do público em relação ao filme original, estende algumas questões da saga de Romero, destacando-se três principais elementos: a revisão da personagem de Barbara, que passa de uma mulher frágil e catatônica para uma personagem feminina assertiva; a continuação de um processo narrativo de vitimização dos zumbis, já desenvolvido nos outros dois filmes da saga de Romero, e explorado nesta nova versão por meio do comportamento extremamente violento dos rednecks; e, por fim, a opção da personagem de fugir da casa de campo ao final do filme, em um provável indício de que a divisão espacial dicotômica clássica dos filmes de Romero começava a se esgotar.

Mas, para além da saga de Romero, este filme também dialogava com o gênero de forma mais ampla, na medida em que seus realizadores diziam-se preocupados em promover uma reterrorização do zumbi após as experiências paródicas, camp e splatstick da década de 1980, como podemos observar pela afirmação de Tom Savini sobre a refilmagem:

Eu tive que ―reterrorizar‖ os zumbis. Depois do comercial de cerveja de Joe Piscopo [um anuncio da cerveja Miller Lite que parodiava o filme em questão] e de Thriller,

de Michael Jackson, os zumbis não davam mais medo [...] Eu tive que relembrar que eles eram mortos andando por ai [e também] reiterar na cabeça da plateia: morte, mortos, essas são pobres pessoas mortas (Russell 2010: 192).

O relançamento de A Noite dos Mortos-Vivos e de alguns outros remakes141 e remixes142 deste filme seriam os únicos contatos que o público teria com a saga de Romero neste período, pois, sem conseguir financiamento para um novo filme, o diretor só voltaria a dirigir uma história de zumbis nos anos 2000. Deste modo, resta-nos apenas a especulação de quais seriam as críticas sociais contidas em um possível filme de zumbis do diretor da década de 1990, que, segundo ele, talvez ―devesse se chamar Twilight of the Dead, ou, melhor ainda,

Brunch of the Dead, porque eu me dei conta de que os anos 1990 se resumem a ignorar os problemas, mesmo‖ 143.

Este diagnóstico de Romero parece revelar um certo cinismo do diretor em relação à atitude anárquica dos splatstick e das paródias de zumbis , que de fato, aparentemente não estavam interesados em desenvolver grandes críticas sociais em seus filmes. Curiosamente esta mesma crítica aparecia também em um perturbador filme de zumbis italiano que iria unir o horror a um humor peculiar para produzir uma crítica à suposta apatia dos anos 1990:

Dellamorte Dellamore (Michele Soavi, 1994).

Este filme é uma adaptação de um famoso Fumetti,- história em quadrinhos italiana- da década de 1980 de Tiziano Sclavi, chamada Dylan Dog, e conta a história de Francesco Dellamorte, o guardião de um cemitério na pequena cidade italiana de Buffalora. Dellamorte precisa lidar quase todas as noites com um estranho fenômeno que ocorre na cidade: passados sete dias de seu enterro, todos os mortos daquele cemitério retornam a vida, e precisam ser religiosamente assassinados pelo guardião com a ajuda de seu assistente com problemas mentais Gnaghi. Mas Dellamorte acaba se envolvendo amorosamente com uma viúva, e ela é atacada no cemitério pelo seu marido ciumento após ele retornar dos mortos. O guardião então mata sua amante acreditando que ela havia ressuscitado, mas quando ela retorna pela

141 Este período ainda veria o lançamento de Night Of The Living Dead: 30th Anniversary Edition DVD (1999) lançado por John Russo que alterou a trilha sonora e incorporou mais cenas e personagens; e Children of the Living Dead (2001) lançado também em vídeo como uma espécie de sequencia de A Noite tendo Russo como produtor executivo e Tom Savini como ator. 142 Em 1991 James Riffel retirou o áudio original de A Noite dos Mortos-Vivos e fez uma redublagem paródica do filme, que foi lançada com o título de Night of the Day of the Dawn of the Son of the Bride of the Return of the Revenge of the Terror of

the Attack of the Evil, Mutant, Alien, Flesh Eating, Hellbound, Zombified Living Dead Part 2 in Shocking 2-D. Também foi lançado em DVD um remix do primeiro filme de Romero chamado Night of The Living Dead: Survivors Cut, ou Benefit for

the Living Dead (Dean Lachiusa, 2005), com intuito de garantir fundos para os patrocinadores do filme que nunca ganharam nada com o incidente do copyright. Por fim, em 2009 foi lançado Night of the Living Dead: Reanimated, uma versão do filme orquestrada por Mike Schneider, que conservou o áudio original do filme e convidou múltiplos colaboradores a usarem diferentes técnicas de animações para recriarem as cenas. O filme conta com mais de cem colaboradores e diferentes técnicas de animações.

143Entrevista concedida originalmente ao site barnesandnoble.com em 8 de agosto de 2000. Disponível em: http://dogra.tv/2005/07/13/interview-with-george-romero/

segunda vez, ele passa a acreditar que da primeira vez que a matou, ela ainda estava viva. Após este episódio Dellamorte entra em um espiral de depressão e loucura e passa a se envolver com mulheres fisicamente iguais à sua falecida amante e a assassinar habitantes da pequena cidade. O filme termina com uma tentativa infrutífera de Dellamorte de sair da cidade, desistindo de sua empreitada após perceber que não há nada além de Buffalora. Apesar das altas doses de humor negro, e uma certa atmosfera onírica, o filme compartilha do niilismo e da crítica social, típicos dos filmes de Romero, ao abordar temas e ansiedades relativos à sexualidade. No entanto, é curioso observar a leitura que o teórico Jamie Russell realizar deste filme, na qual, baseando-se nas palavras do diretor, associa o comportamento do personagem principal a uma crítica a apatia e desencantamento da ―Geração Vazia‖:

Soavi alega ter desejado fazer ‗uma fábula sobre a Geração Vazia de hoje‘ [...] Preso a sua visão de mundo obscura e à rejeição completa do mundo ao seu redor, o vagabundo do cemitério de Everett é significantemente mais zumbificado do que qualquer um dos cadáveres que retornam da morte. Símbolo apropriado da apatia e do desligamento da Geração Vazia, Francesco é completamente incapaz de ter energia suficiente para abraçar a vida (Russell, 2010: 203).

Neste sentido, vemos que, se por um lado cineastas como Dan O´Bannon Sam Raimi e Peter Jackson estavam incorporando a estética punk em seus filmes de zumbis, outros diretores como Romero, com seu inexistente Bruch of The Dead, e Soavi com seu pontual

Dellamorte Dellamore estavam preocupados em utilizar os zumbis para realizar uma critica, a este mesmo movimento. Dentro deste cenário de disputa em relação aos rumos do gênero, uma espécie de síntese seria alcançada nos anos 1990, com um movimento de produção de filmes independentes por fãs que, se por um lado foram influenciados pela postura revolucionária do ―faça você mesmo‖ de alguns cineastas do splatstick, também veneravam os filmes de Romero, de forma que deram continuidade ao movimento de ―reterrorizar‖ o gênero.