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2 A TRAJETÓRIA DE CONSTRUÇÃO DA PESQUISA: RELAÇÕES COM

2.3 Interlocução e pesquisa: atores envolvidos no processo

A pesquisa foi construída em momentos de convívio e interação no cotidiano dos interlocutores. Mantive conversas formais e informais, nas calçadas, nas casas e nos comércios do bairro; tomei café nas suas casas e em algumas

45 Transição capilar se refere ao período de adaptação à textura natural do cabelo conforme ele

cresce sem alisamento.

46 É uma empresa multinacional americana, prestadora de serviços eletrônicos na área do transporte

privado urbano, através de um aplicativo de transporte que permite a busca por motoristas baseada na localização oferecendo um serviço semelhante ao tradicional táxi.

delas eu conquistei o status de “de casa” e, por conta disso, uma liberdade maior de interação e de perguntas; participei de festas de famílias e privadas, aniversários infantis, almoços de confraternização e churrascos; travei longas e incontáveis conversas em mesas de bar; frequentei comércios formais e informais (do churrasquinho de rua a bares, restaurantes e casa de show); fui a festas fora do bairro e até cheguei a viajar com interlocutores com as quais eu construí uma maior proximidade.

Criminosos, não-envolvidos, familiares, usuários, moradores e frequentadores do bairro foram os grupos nas quais eu tive acesso e pude, a partir das relações desenvolvidas, construir essa rede de interlocução (MARQUES, 2014). Chamo atenção ao fato de eu ter encontrado ótimas condições para as conversas que desenvolvi, mesmo abordando temas e lidando com pessoas que, muitas vezes, estão em conflito com a lei. Não me importei em buscar o que estava acontecendo de fato naquele momento, já que meu objetivo inicial era fazer uma reconstrução que me levasse a compreender e problematizar a transição na qual o mercado fragmentado da droga no local estava passando, contudo, a rede construída me dava acesso a planos que estavam em vias de acontecer. Eu apenas me guardava no papel de ouvinte e pesquisadora, não me envolvendo além disso.

Por isso, procurei evitar a relação de investigação com meus interlocutores, buscando sempre construir uma relação de confiança e curiosidade em torno deles, das suas vidas e suas histórias. O meu papel enquanto pesquisadora não é culpabilizar ou fazer qualquer juízo de valor em relação ao que escutei e presenciei. Isso não significa dizer que eu aprovo as ações, ao contrário, reprovo muitas delas, mas só expressei essa reprovação para aqueles com as quais eu construí esse nível de intimidade e, ainda assim, na medida em que a minha postura não causasse nenhum mal-estar.

A pesquisa interagiu com mais de 30 pessoas47 ao longo de dois anos (de

maio de 2016 a maio de 2018). Alguns interlocutores foram presos e outros

47 Algumas dessas pessoas e suas histórias de vida eu cito diretamente no texto, outras utilizo como um aparato hermenêutico para as minhas reflexões. Boa parte dos dados, contudo, não chegaram a ser trabalhados nesse texto em virtude do volume, pretendo analisá-los em outro momento.

executados ao longo desse processo (cinco pessoas no total e destas eu recordo cada história de vida e lembro, com emoção, das últimas conversas. Com algumas delas, inclusive, eu estive momentos antes do acontecimento que culminou com suas mortes). As execuções, por exemplo, me marcaram de tal forma que tive a necessidade de abordar isso ao escrever a dissertação, como pode ser visto no capítulo IV. Tive uma imensa dificuldade em finalizar a obtenção dos dados e me afastar do campo pesquisado, mesmo eu já tendo um grande volume de informações. Quando ensaiei essa retirada, aconteceu uma chacina no bairro, o que me levou a ficar mais alguns meses buscando compreender as consequências na dinâmica da disputa.

A seguir eu apresento alguns dos interlocutores que compuseram essa rede e me ajudaram na construção dessa pesquisa:

Antônio é um interlocutor chave para mim, talvez seja o meu Doc (Whyte, 2005). É com ele que eu adentro as comunidades e é através dele que eu conheço boa parte dos dados empíricos que está sendo apresentado nesse texto. Antônio é morador do bairro há 33 anos (e seu pai morador há mais de 60 anos), está inserido no comércio da droga no varejo, vendendo maconha, contudo, não é ligado a nenhuma facção criminal e a nenhuma comunidade, sendo caracterizado aqui como um microtraficante. Juliane tem 25 anos e é moradora do bairro. Tem uma origem social mais humilde e reside em uma de suas comunidades. Sua família cresceu no local. Atualmente é dona, juntamente com seu marido, de um estabelecimento comercial legal no bairro. Seu marido, João, também interlocutor dessa pesquisa, está cumprindo pena de privação de liberdade em um dos presídios administrados pelo governo do Estado do Ceará. Esses três, juntos, formam os interlocutores principais dessa pesquisa.

Cláudio é natural de um município do interior do Estado e, pelo que conta, veio morar no bairro quando umas “paradas” que ele fazia não deram certo. É bastante envolvido com a engrenagem do tráfico de drogas, sendo responsável pelo recebimento de grandes volumes de maconha prensada e cocaína para venda no varejo e no atacado. Realiza também assaltos do tipo sequestro relâmpago. Atualmente cumpre pena em uma das casas de privação de liberdade do Governo do Estado. Pedro também é alguém cuja atuação no bairro data do momento anterior ao processo de faccionalização, trabalhando na venda da droga no varejo,

principalmente maconha e cocaína. Minha proximidade com ele foi muito pouco, quando eu de fato ganhei sua confiança, ele foi executado no episódio que ficou conhecido como chacina do Benfica. Cleiton era um rapaz muito simpático e gentil, menor de idade, com cerca de 16 anos, ele era liderança do tráfico em uma das comunidades juntamente com o seu irmão, Diogo. Meu contato era com Cleiton. Antes de sua execução, tivemos várias oportunidades de conversas nas quais ele me contou como entrou nessa “vida” e narrava as negociações de pequeno e médio porte que ele estava envolvido. Por fim, Miranda, o playboy do tráfico, de origem social abastada, ele tem envolvimento há pelo menos 10 anos, sendo ligado aos “patrões” presos do bairro. Com a faccionalização do crime ele passou a ser ligado a um desses grupos e continuou a agir, tanto no tráfico de varejo, como em “paradas” determinadas pelo grupo. Nas nossas últimas conversas, soube que ele havia virado matador para a facção. Os demais citados ao longo da pesquisa, Pablo, Michel, Mário, Souza e Adriano eu tive pouco ou nenhum contato. Contudo, suas histórias sempre apareceram como um dado de campo.

O trabalho que está sendo apresentado aqui foi realizado principalmente através de conversações. Não fiz uso de gravador ou roteiro de entrevista em nenhuma conversa. Evitei o uso desses dois elementos por questões específicas ao campo: existem coisas que não podem ser gravadas, pois comprometem. Fiz uma pesquisa que exige determinada prudência.

3 ASPECTOS HISTÓRICOS, CARACTERÍSTICAS GERAIS E REFERÊNCIAS

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