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A intervenção urbana é uma manifestação artística que consiste na interferência ou alteração efêmera de algum artefato artístico em um espaço público (REGATÃO, 2007). As intervenções não exigem a presença de um objeto específico, elas podem acontecer somente com o corpo do artista, como uma performance ou um happening, mas pelo fato de estarem inseridas no ambiente público, subvertem (desviam) a forma como essa ambiente é geralmente utilizado. O foco dessa pesquisa são as intervenções urbanas, que não apenas utilizam a cidade como suporte, mas que também propõem uma nova relação entre a obra e o público, estabelecendo assim uma nova possibilidade de relação entre o próprio espaço urbano e o público.

A arte pública efêmera é concebida como transitória, ela é projetada para ter uma curta duração. A efemeridade da obra é uma fator importante das intervenções urbanas porque, ao contrário dos monumentos que tem um caráter mais permanente, elas não precisam permanecer materialmente no espaço público por muito tempo depois da sua realização. Os rastros que

deixam são os registros fotográficos ou audiovisuais feitos por quem esteve presente, além das memórias daqueles que presenciaram sua realização. A questão da efemeridade e não permanência das obras está atrelada a realidade das cidades modernas, à velocidade imprimida e a vida que se leva nos grandes centros urbanos. Segundo Nelson Brissac Peixoto (2002), por ser pontual e não tem a pretensão de abarcar o todo, cada gesto da intervenção urbana provoca “contínuas rearticulações” que propõem novas reconfigurações, funções e sentidos para os espaços públicos.

A intervenção é uma inscrição num fluxo mais amplo e complexo que é a dinâmica urbana. Implica entender a cidade como algo em movimento. Não na forma de vetor progressivo, orientado, mas em várias direções. Intervir: um gesto sobre o que já está em movimento. Como surfar ou entrar numa frequência. É um paradigma da metrópole contemporânea: uma vasta rede que existe por si, em que sempre se entra em movimento. (PEIXOTO, 2002, p. 12)

Por não precisar ser feita de materiais duráveis, a arte efêmera desfruta de uma maior liberdade de ação; o caráter experimental das intervenções urbanas, que podem ser comparadas a um laboratório informal e espontâneo, independente de instituições, podem envolver participação do público e colaboração entre artistas e coletivos. Através de obras que utilizam do repertório artístico e urbano, os artistas dão visibilidade a um discurso, muitas vezes se utilizando de humor e ironia, mas que são não só acessíveis ao público, como permitem que eles contribuam para essa discursão. Para Regatão (2007), a arte pública efêmera, ou seja, as intervenções urbanas, contribuem para a democratização do espaço público, e a criação de novos espaços de arte, além de colaborarem para o desenvolvimento da arte contemporânea. A apropriação dos espaços públicos por meio da arte com as intervenções urbanas e ações efêmeras criam narrativas, tem o objetivo de ativar o público, e modificar sua relação com o ambiente urbano. Essa nova relação estabelecida gera repertório para que as pessoas possam transformar a forma como utilizam a cidade.

Uma característica presente nas intervenções urbanas é o seu forte aspecto político, não que a arte em espaços tradicionais de arte seja alheia à questões políticas, mas na arte pública acaba tendo um peso maior. De acordo

com Archer (2001), os artistas das vanguardas dos anos 60 e 70 estabeleceram os ‘parâmetros artísticos da atividade artística’, quando fizeram uso da prática artística de vanguarda para expressar os discursos marginalizados e ‘excluídos da experiência cultural’. Ao colocar essa ideia, o autor refere-se a arte tanto em espaços tradicionais da arte (instituições legitimadoras, tais como museus e galerias), quanto nos novos territórios que foram conquistados com as vanguardas, e os demais movimentos que surgiram a partir deles. Mas não deixa de enfatizar esse diálogo político que é estabelecido entre o artista (através da obra) e o observador da obra.

Cauquelin (2005) coloca que a arte de vanguarda é permeada de mensagem política e social, que ao se posicionar de forma aberta diante da sociedade burguesa e ‘recusar os valores do capital’, na tentativa de integrar a arte à sociedade e à vida cotidiana. Bürger (2012) corrobora dizendo que graças aos movimentos históricos de vanguarda, a forma de engajamento político no campo da arte foi fundamentalmente transformada. Tanto Cauquelin, quanto Bürger, apontam esse posicionamento politico da arte desde o movimento Dadá, que teve início em 1916 em Zurique (Suíça), onde um grupo de artistas contrários à Primeira Guerra Mundial, iniciou as discussões e realizações artísticas que evidenciavam a forma como eles rejeitavam a guerra e tudo que a havia provocado. Sobre o artista assumir um posicionamento diante do mundo através da sua vida e obra, Bourriaud (2001) afirma:

Criar uma obra de arte significa posicionar-se querendo ou não, em relação à divisão do trabalho e à padronização dos comportamentos. Pois o modo de produção que o artista escolhe, ou cria, gera relações com o mundo que o envolve no universo econômico (...). (BOURRIAUD, 2011, p.163)

As obras de intervenção nos espaços urbanos dificilmente tem sentido dissociado com o lugar onde se encontram, o lugar faz parte da construção narrativa da obra, assim como os outros elementos que a compõem. Essa nova abordagem da arte não somente abarca vários procedimentos e possibilidades de expressão artística, como também coloca o público como parte integrante da obra. A obra tem uma capacidade de permear a dinâmica da cidade e provocar diálogo entre o artista, a cidade e o público.

As intervenções tecem críticas ao local em que ocorrem, com o objetivo de ativar o público para a forma automática com que se relaciona com a cidade. As intervenções interferem temporariamente na aparência da cidade, provocando mudanças no cotidiano da população, o que os leva a questionar e modificar a forma como os espaços são usados. Com as intervenções urbanas é possível ver a cidade de uma forma esteticamente ampla, as narrativas poéticas contemporâneas encontram um lugar possível de realização e que faz parte da narrativa não só visual como contextual. Segundo Nelson Brissac Peixoto (2002), ‘as relações com o lugar tronam-se um componente indissociável da obra de arte’. O autor segue afirmando que a experiência estética proporcionada pela intervenção substitui a contemplação deslocada do contexto, segundo ele ‘a obra como objeto se dilui diante da utilização do lugar como forma de experiência estética’. A redefinição do espaço urbano é provocada pela intervenção artística na medida em que ela favorece a criação de novas tramas no espaço urbano (PEIXOTO, 2002).

Figura 7 - ‘The Floating Piers’(2014-16) dos artistas Christo and Jeanne-Claude

Figura 8 - ‘The Floating Piers’(2014-16) dos artistas Christo and Jeanne-Claude

Fonte: Wolfgang Volz

Os artistas Christo and Jeanne-Claude idealizaram um pier flutuante que atravessasse o lago Iseo, na Itália. A estrutura feita de 100.000 metros quadrados de tecido sob um sistema flutuante de cubos modulares de polietileno, permitia que o público caminhasse sob as águas atravessando. As obras de Christo, que trabalha em parceria com Jeanne-Claude há mais de 35 anos, são em grande parte, intervenções urbanas realizadas em várias cidades do mundo, as obras intervem em espaços públicos e modificam a relação das pessoas ao utilizá-los, os artistas costumam resistematizar o espaço urbano através de suas obras.

A visibilidade ou legibilidade da cidade é alterada pelas intervenções urbanas, que fazem com que surjam questionamentos sobre a própria cidade. Nas palavras Nelson Peixoto (2003): “Trata-se de transformar a cidade num campo de experimentação sobre a noção de observação. Levar o público a forjar um novo olhar sobre a cidade.” Essa cidade é artefato, é matéria, composta por características palpáveis e facilmente verificáveis; mas a cidade também é arena onde as interações da vida acontecem; e ao mesmo tempo a cidade também é um pouco protagonista das interações, porque representa conceitos e promessas, com a capacidade de influenciar as interações que acontecem nela.

Como ações concretas no espaço físico, as intervenções problematizam os contextos nos quais são realizadas. Através da criação de desenhos, performances, interferências, imagens ou instalações, e com a participação do público, as intervenções lançam outras perspectivas e alternativas capazes de modificar os fluxos urbanos e remodelar as práticas condicionadas. As intervenções se inscrevem no espaço público e respondem às demandas do entorno com gestos que contestam e modificam os usos da cidade, além de estimular as relações sociais que só acontecem no meio urbano.

3 Usos da cidade e Intervenções urbanas