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1 –Introdução a Doutrina Social da Igreja

CAPÍTULO II – O MOVIMENTO SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA

II. 1 –Introdução a Doutrina Social da Igreja

Uma leitura atenta de A Grande Transformação nos mostra que, mesmo que por óticas diferentes, nossos dois autores estão preocupados com muitas das mesmas questões: a transição para a modernidade e para o capitalismo, o impacto da tecnologia na vida humana, e a

36https://mises.org/library/tolkien-v-power

37 Liebherr, Louise, Reimagining Tolkien: A Post-colonial Perspective on The Lord of the Rings. University of

34 desintegração das comunidades tradicionais, como exemplos. Isso não surpreende quando notamos que Tolkien e Polanyi foram diretamente influenciados por um conjunto de ideias chamados de Doutrinas Sociais da Igreja (CST na abreviação em inglês), que são o conjunto das doutrinas católicas que regem a visão papal sobre questões sociais.

Essa doutrina tem como fundamentos principalmente duas encíclicas papais: Rerum Novarum, promulgada pelo papa Leão XIII em 15 de maio de 1891, e Quadragesimo Anno (que comemorava os 40 anos da encíclica anterior), promulgada por Pio XI em 15 de maio de 1931, e prosseguem como um campo de debate vivo entre pensadores cristãos, tendo ecos até hoje. Por exemplo, a publicação de Evangelii Gaudum pelo Papa Francisco em 2013 causou o mesmo tipo de incômodo que essas antigas encíclicas papais, fazendo o jornal The Atlantic publicar um editorial intitulado “O Papa gostaria que você soubesse que ele não é marxista” [tradução minha]38.

Já foi dita a influência que a religião católica teve na vida de Tolkien. O exemplo mais direto que temos da relação entre Tolkien e escritores católicos associados ao CST é seu ensaio On Fairy-Stories39 de 1947, onde ao discutir a natureza das histórias fantásticas Tolkien faz diversas referências ao autor G.K. Chesterton, que tem um ensaio próprio escrito sobre o papel das histórias fantásticas na sociedade (The Ethics of Elfland, o quarto capítulo de seu livro Orthodoxy). Ele é famoso como escritor de literatura e também como um estudioso e defensor do catolicismo na Inglaterra, já tendo aí então um paralelo com Tolkien.

Chesterton e seu amigo Hillary Belloc são considerados os fundadores do Distributismo, uma escola de pensamento social que nasceu diretamente da influência de Rerum Novarum. Essa escola tem como ideia principal a superação dos males criados pelo capitalismo e a criação de um mundo mais justo e baseado nos valores morais católicos via a distribuição em massa da propriedade privada para toda a população. Em oposição também contra o socialismo, eles argumentavam que a propriedade privada era um direito natural fundamental que vinha da criação do mundo por Deus e que dessa forma ninguém poderia retirar do ser humano ter os seus próprios bens. São opostos a qualquer controle extenso da propriedade dos meios de produção por poucos, sejam eles o Estado, uma plutocracia ou empresas em um sistema corporativista. Entendiam que a propriedade apesar de ser um direito tinha que ter limites, pois

38https://www.theatlantic.com/international/archive/2013/12/marxists-are-good-people-pope-not-

one/356163/

39 Em português, Sobre Histórias de Fada. Tolkien, J.R.R. On Fairy-Stories. Reino Unido: Oxford University Press,

35 a natureza foi feita por Deus para todos usufruírem e por isso todos tinham o direito de ter propriedade e de usufruir do que ela dá. Logo se ela fosse acumulada e usada de forma a privar as pessoas do mínimo para se viver o Estado deveria intervir para tirar o excesso de propriedade das mãos desses ricos proprietários e, como diz o nome da escola de pensamento, distribuí-los entre os que não a tem.

Há um pequeno debate entre os pensadores sociais católicos conservadores de língua inglesa sobre se Tolkien (e C.S. Lewis, seu amigo de Oxford que Tolkien contribuiu para a conversão do ateísmo ao cristianismo) advogava ideias distributistas. Joseph Pearce, que escreveu vários livros sobre Tolkien, Lewis e Chesterton, inclusive uma biografia de C.S. Lewis40, escreveu alguns textos na internet sobre a relação entre esses três autores, defendendo essa posição41. Fora as já citadas referências a Chesterton no ensaio de Tolkien, ele entende que o Condado é um lugar onde a comunidade lutou sempre contra forças externas e internas, usando a força se necessário, para manter a propriedade bem distribuída. Chesterton advogava da mesma forma, dizendo que o Estado deveria agir via principalmente a força das leis para dividir a propriedade entre o maior número possível de pessoas.

Jay Richards e Jonathan Witt escreveram um livro onde exploram a questão e chegaram a uma resposta negativa, pois entendem que é melhor tomar Tolkien em seus próprios termos do que tentar encaixá-lo à força nas visões de outro autor, apesar de concederem que há similaridades entre as visões de G.K. Chesterton e de J.R.R. Tolkien42. Seu grande problema

com a visão dos distributistas é que de acordo com eles ela tenta gerar menos Estado mais acaba gerando mais Estado (o que é sempre ruim na visão desses autores). Vão argumentar que as encíclicas que tratam da questão do CST sempre lidaram com as coisas em termos gerais, e nunca com propostas específicas de Chesterton, e com certeza não com o ar interventor que este tem.

O distributismo se pretende como a escola de pensamento social oficial do CST, mas ele não é aceito como tal por todos os proponentes dessas doutrinas. Há na verdade uma miríade

40 Por exemplo: Pierce, Joseph, Literary Converts: Spiritual Inspiration in an Age of Unbelief. Ignatius Press,

2006. Pierce, Joseph, Frodo's Journey: Discover the Hidden Meaning of The Lord of the Rings. Tan Books, 2015. Pierce, Joseph, Wisdom and Innocence: A Life of G.K. Chesterton. Ignatiu Press, reprint edition, 2015.

41http://www.theimaginativeconservative.org/2015/07/chesterton-tolkien-and-lewis-in-elfland.html,

http://www.theimaginativeconservative.org/2015/10/chesterton-casts-a-spell-on-j-r-r-tolkien.html e

http://www.theimaginativeconservative.org/2014/11/distributism-shire-political-kinship-tolkien-belloc.html

42 Richards, Jay e Witt, Jonathan, The Hobbit Party: The Vision of Freedom That Tolkien Got, and the West

Forgot . Ignatius Press, 2014. O tema parece estar em voga entre escritores conservadores cristãos

recentemente. Por exemplo, Williams, Donald T., Mere Humanity: G.K. Chesterton, C.S. Lewis, and J. R. R.

36 de autores que leram as encíclicas papais originais sobre o tema e deram sua própria interpretação sobre o movimento. Para citar outros dois, os franceses Emmanuel Mounier, pai do personalismo francês (outra escola que prometia uma terceira via entre o liberalismo e o comunismo/socialismo/marxismo, uma afirmação recorrente nos estudos sobre CST), e Jaques Mauritain, grande estudioso de Tomás de Aquino e diretamente atuante na confecção e divulgação a Declaração Universal dos Direitos Humanos feitos pela ONU em 1948.

O debate é controverso, entre quais são as interpretações práticas das encíclicas papais, qual é o papel da intervenção do Estado na economia, sobre os limites e extensão do direito de propriedade privada, entre muitos outros. Há até uma grande corrente de católicos que simplesmente se nega a aceitar que a Igreja tenha qualquer voz sobre a questão econômica, principalmente pela crítica presente ao sagrado livre-mercado irrestrito (representados pela expressão “Mater si, Magistra no”43 , em referência satírica a encíclica Mater et Magistra de

1960. Somado a essa controvérsia, há o fato do CST ser considerado por muitos “o segredo mais bem-guardado” da Igreja44, tendo em vista que muitos católicos sequer sabem da existência desse campo de estudos ao mesmo tempo que sabem muito bem dos ensinamentos morais católicos45, quem dirá então os ateus, agnósticos e seguidores de outras religiões.

Por todos esses fatores, entende-se que a melhor forma de debater o CST para entendermos sua influência é apresentar suas origens, olhando as duas encíclicas papais que originaram todo esse debate (as já citadas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno), entendendo quais são seus pontos principais, seu contexto histórico e a partir daí podermos entender como esse corpo de ideias influencia Tolkien, Polanyi e ajuda a ligar os dois autores. Existe extenso material na internet criado pelo Vaticano e por organizações católicas a nível nacional e regional que também nos servirão como fonte valiosa.

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