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CAPÍTULO III: A REPRESENTAÇÃO NO SISTEMA E A RELIGIÃO COMO

3.1 Introdução:

Avançando na exposição sobre o conceito de religião, Hegel chega a um ponto no qual tem de distinguir a religião da arte e da filosofia, já que, uma vez que todas são parte do que chamou espírito absoluto, há de se eleger um critério que as distingua. Na Fenomenologia do Espírito a religião é apresentada em conjunto com a arte, sendo que apresenta uma “religião da arte”, correspondente aos gregos. Já no período de Berlim70, a divisão do espírito absoluto se dá em correspondência com as formas da intuição, da representação e do pensamento, sendo que a passagem da forma inicial, a arte, se dá progressivamente até a filosofia por meio dessa ordem apresentada.

Nos manuscritos que são nosso objeto de exposição, a religião é considerada distinta da arte e da filosofia por estar no elemento formal da representação. A seção da intuição é destinada à arte, ao passo que à filosofia cabe a seção que trata do pensamento. Chega-se, por esta via, à análise da representação como questão que não pode ser afastada na compreensão desse tópico.

Ademais, segundo a exposição da religião na Enciclopédia, em um trecho citado no capítulo anterior, a religião “segundo a forma, é antes de tudo para o saber subjetivo da representação(HEGEL, 1995, §565, p.347). Sobre essa manifestação do espírito marcada pela representação, Hegel diz que ela “dá autonomia aos momentos do conteúdo do espírito absoluto, e faz deles pressuposições, uns para com os outros, e fenômenos que se seguem uns aos outros, e uma conexão do acontecer segundo as determinações finitas da reflexão” (1995, §565, p.347 e 348). A religião, portanto, como atividade representativa, tem um “modus

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A Enciclopédia das Ciências Filosóficas, entretanto, apresenta na seção destinada à religião somente a religião revelada, isso é, a religião cristã. As formas precedentes ainda estão ligadas ao elemento da intuição, razão pela qual Hegel as deixou na seção que trata da Arte. Essa divisão não aparece nas preleções de Berlim, muito embora, como veremos, faz sentido entender a religião cristã como o acabamento da representação e a religião “por excelência”, segundo esse critério.

operandi” marcado por essa maneira de apresentar o conteúdo: como fenômenos que se seguem uns aos outros como um acontecer.

Os manuscritos, por sua vez, conforme vimos anteriormente, expõem a atividade da religião como uma relação do finito com o infinito, de forma que por meio do culto a esfera finita abandona sua finitude e se eleva a Deus. Em termos especulativos, poderíamos dizer que na religião há uma passagem do finito para o infinito, passagem que medeia o infinito. O que é possível extrair das passagens do texto dos manuscritos e pelo caminho que ele segue, é que a religião é um gradual abandono do que é imediato, já que falamos de uma “passagem” e de uma “elevação”. A passagem para o infinito é a compreensão de que o que é essencial na divindade é algo que não se capta com os olhos e os ouvidos. Lentamente, assim, o crente deixa de entender o divino como presença imediata, compreensível pelos sentidos.

Esse é o caminho que se traça com decisiva virada no cristianismo, no qual o deus feito filho é morto. Tal fato é essencial para podermos entender esse abandono da presença, do imediato no espírito. Essa afirmação é feita seguindo os passos de Lebrun, que considera o cristianismo um “desfazer-se” da presença imediata. Como nessa afirmação, por exemplo, na qual lemos que: “o símbolo que melhor convém a Deus é, agora, o recuo em uma temporalidade em que seu rosto se esfuma. A nostalgia dos discípulos merece outra interpretação: ela mostra que, por excelência, Deus se oferece a nós sob o modo de ausência” (2000, p.34). O Deus encarado dessa forma é substituído por uma forma simples, mas não como aparece em elementos sensíveis como o sol, a água, ou mesmo nas estátuas como nos gregos. É um Deus que se apresenta para a subjetividade através da memória.

Caso a presença imediata fosse totalmente apagada, não faria mais sentido tratarmos de uma faculdade que não está ligada ao imediato. Sem imediatez, o espírito teria já superado a forma da natureza e estaríamos já no terreno do conceito realizado como ideia. A memória, como figura do espírito, ainda é uma das figuras da representação, conforme mostraremos logo a seguir. “E no cristianismo o peso do passado parece, para Hegel, um tanto menos abusivo, desde o momento em que se torna o símbolo de uma ruptura com o imaginário” (LEBRUN, 2000, p.35). Se é assim, permanece um problema a forma de caracterização da relação da religião com o positivo, pois para o cristão a relação com o elemento religioso não é mais com o Deus imediato, mas um deus mediado, deixado para trás no tempo.

A importância da questão da presença divina leva ao fato de que Deus, no cristianismo, se fez homem e se despojou desse corpo material. Dessa forma, a relação da

divindade com a finitude não é a mesma que um criador e o criado. Nessa relação do cristianismo o criador se faz surgir na criação. Em outras palavras, a criação é o reflexo do criador e, nessa relação, temos uma manifestação, na qual se suprime a distância entre o manifestante e o que é manifestado71.

A representação como vimos acima, sendo memória, não consegue dar conta do apagamento dessa distância entre o manifestante e o manifestado. Existe algo de imediato, um resquício de presença nessa relação que nem o cristianismo, envolto já no manto da memória e da linguagem, consegue apagar.

A ideia de manifestação mesma traz consigo essa ideia de “aparecer no outro”, conforme os termos da Enciclopédia, lá mesmo no conceito de espírito. Citamos um trecho do parágrafo 383 para ilustrar esse pensamento:

Sem dúvida, habitualmente se representa o manifestar como uma forma vazia, à qual deveria ainda acrescentar-se um conteúdo de fora; entende-se então por conteúdo algo essente-em-si, algo que em-si-se-mantém, e por forma, ao contrário, o modo exterior da relação do conteúdo a outra coisa. Mas, na lógica especulativa, prova-se que na verdade o conteúdo não é apenas algo essente-em-si, mas algo que entra através de si mesmo, em relação com Outro; assim como, inversamente, na verdade a forma não só não deve ser compreendida como algo não-autônomo, estranho ao conteúdo, mas antes como o que faz do conteúdo o conteúdo, algo essente-em-si, diferente do Outro (HEGEL, 1995, §383, p.25)

Portanto, ainda que o cristianismo, a religião mais “elevada” no sentido especulativo, consiga representar para si essa unidade da forma e do conteúdo na maneira da manifestação, se o nascimento de Cristo for entendido como uma simples passagem para outra esfera perde- se todo o sentido do manifestar como identificação de conteúdo e forma.

Nos termos apresentados nos manuscritos, a elevação do finito ao infinito pode indicar justamente essa capacidade de entender o finito como manifestação do divino, do conteúdo. Assim, promove-se a identificação dos opostos. Para poder explicar como funciona essa elevação é necessário, portanto, entender o mecanismo da representação. O esclarecimento também tem de dar conta das disposições que apontamos na citação da Enciclopédia sobre a religião como representação, ou seja: de que ela apresenta seus conteúdos na forma de sucessão. Finalmente, outra questão pode surgir no interior da discussão, que é o porquê da religião, forma do espírito absoluto, se apresentar sob a forma da representação que é uma figura do espírito teórico finito.

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Diante disso tudo nos resta responder à seguinte pergunta: O que é a representação? Com uma possível resposta pode-se ter uma pista sobre qual o funcionamento verdadeiro da religião no interior do sistema, e quiçá da relação entre a exposição do conceito que exploramos antes com as definições da Enciclopédia.

A análise da representação e da religião, portanto, seguirá as seguintes etapas:

a) A análise da ideia de representação, primeiro em sua exposição enciclopédica e em seguida como surge nos manuscritos. O confronto das exposições seguirá a uma possível interpretação do que seja a representação que Hegel se refere quando fala sobre a religião;

b) Em posse dessa noção, tentaremos estabelecer uma caracterização da religião como atividade representadora, no que realiza e no que deixa de realizar no trajeto de manifestação do espírito para si mesmo.

3.2 A representação no sistema - Caracterização como atividade do espírito teórico