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2.MACUNAÍMA – HERÓI DE NOSSA GENTE (1969)

3. ENTRE A MARGINALIDADE E A MALANDRAGEM – TERCEIRO MILÊNIO Por uma distância cultural, histórica, o movimento cinematográfico de jovens

3.4 Introdução ao documentário Terceiro Milênio

Faltando aproximadamente 20 anos para a virada de milênio, a pequena equipe de documentários vai ao Amazonas (Estado e ambiente) gravar uma também pequena odisséia pelos rios Negro e Solimões. Observa-se a peregrinação de um candidato a governante do maior Estado da federação brasileira, chamado Evandro Carreira. Para o filme, dariam o nome da mudança temporal que provoca ansiedades de transformação ideológica, Terceiro Milênio. Não sem motivo o tema geral da obra é a ecologia, a natureza, a penetração da floresta virgem, inabitada pela civilização, já que nessa virada de século e milênio, setores progressistas se transfiguram em ativismo ambiental e se convertem ao estudo do environment, palavra que pode ser traduzida ao nosso contexto como meio-ambiente, abrangendo questões tanto psíquicas quanto geográficas do território, confirmando a geopolítica como campo e objeto de pesquisa com uma estrada que surge da Antropologia e chega até mesmo a setores mais fechados e tradicionais da cultura acadêmica.

Político em campanha, Evandro Carreira inicia o documentário em seu ―bunker‖, um comitê com uma estrutura de sobrado assumido pelo próprio protagonista, com ecos de um castelo antigo. Nos letreiros iniciais do filme vê-se que a viagem é ―pelos confins do presente‖, ainda que notações da memória local estejam na gravação. Ele terá, ao longo do filme documentário que se inicia, uma saga heróica própria de idílios antigos pelo mundo desconhecido – guiando uma equipe de seguidores, da qual inclusive faz parte o grupo que grava em imagem e som os delírios sóbrios do Senador, então candidato a governador do Amazonas.

A dupla de produtores, diretores, Jorge Bodanzky e Wolf Gauer, lida com a realidade de povoações ribeirinhas, de antigas populações indígenas – àquela época, início da década de 80, caboclas e miscigenadas, e com o processo de modernização e civilização destas localidades. Manaus, capital, é o palco deste documentário. Também o Solimões, Javari, Içá, passando pelos municípios de Coari, Tefé e Tabatinga – cidade natal do personagem. O foco, do início ao fim do filme, é o personagem real159 de Evandro, que àquela época exercia o

cargo político de Senador da República. Ele voltava a sua base eleitoral numa campanha para governador, e sua odisséia pragmática se resume à procura de votos neste território. Ao lado de seu pragmatismo estava a propaganda profética forte deste terceiro milênio que chegaria,

trazendo ao mundo uma espécie de consciência da ―civilização aquática‖, modelada numa ―Atlântida‖ de então, lar de últimos respiros utópicos em fim de uma época – rumo a uma nova era (new age).160 Sobre esse mito, algo já foi discutido levando-se em conta o imaginário de uma época em que se concebiam sobressaltos épicos161 na sociedade. O embasamento que envolve o personagem heroico aqui, neste ponto, é o da realidade, ainda que nela haja focos de uma inesperada ficcionalização.

O filme está fora do padrão de qualquer documentário da época, encampando uma mistura entre o lado direct cinema e a imersão do cinéma vérité francês. A diferença fundamental entre estes dois estilos não está na acepção de termos que os denominam, já que para alguns teóricos e cineastas o que houve foi um ―momento-verdade‖, onde o documentário se afasta da busca da informação, procedimento este que se tornou massificado pela TV, e que ao longo das décadas aqui estudadas de 60 e 70 teve seu desenvolvimento em reportagens e programas de notícias. O importante a salientar é que mesmo havendo discrepâncias entre as denominações, que chegam a ser caracterizadoras de estilos distintos como a conhecida maneira ―fly on the wall‖ do direct cinema, e a ―fly on the soup‖ do cinéma vérité, em um contexto mais amplo de criação os estilos se coadunam.162 Tal como o cinema de ficção, que à época usava cenas brutas, da realidade,163 para ocupar partes da narrativa e quebrar instâncias e continuidades, deixando menos clara a disputa simplista que se põe entre a realidade (verdade), e a ficção (mentira). Levando ao extremo, alguns documentários questionariam esse estatuto de veracidade inerente ao contrato que se faz entre ansiedade do espectador e proposição do filme – e este é um dos tópicos estilísticos das atuações de Jorge Bodanzky.

Se atentarmos à filmografia de Bodanzky, que teve sua especialização patente em fotografia, a mise-en-scéne da realidade sempre esteve em sua procura, desde seu filme inacabado com Hermano Penna (Caminhos de Valderez, 1971). Como diretor de fotografia, e, ou, operador de câmera, teve diversas experiências que podem chamar mais a atenção a uma pesquisa cuidadosa acerca do cinema feito em conjunto com a produção da então consolidada

160 Cf. TOFFLER, Alvin. A terceira onda – a morte do industrialismo e o início de uma nova civilização.

São Paulo: Record, 2000.

161 JAMESON, Friederick. A lógica cultural do capitalismo tardio. In: Pós-Modernismo – a lógica cultural do

capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2004. pp 48-52. Jameson discorre sobre o épico norte-americano, e a colaboração desse estilo antigo ao fenômeno do Pop.

162 Como no filme de Peter Wintonick Cinema Veritè – defining the moment, de 1999.

163 Vários casos de planos-seqüência adaptados de uma mise-em-scène documentária podem ser observados a

Escola de Comunicação e Artes, da USP. Em O Profeta da Fome (Maurice Capovilla, 1969), filme produzido com equipamento da ECA, o discurso se desenvolve tal como um documento de uma peregrinação. Hitler do III Mundo (José Agrippino de Paula, 1970) a força totalitária ganha metáforas de ficção científica, numa distensão própria de cinema que capta o acting out, algo que seria, mais tarde, melhor preparado por Bodanzky. Ainda no início de sua carreira como diretor, reveria sua atuação na Amazônia em sua biografia organizada por Carlos Alberto Mattos:

Revendo esse período da minha carreira, acho que me pautava entre dois parâmetros opostos: não queria ser um Jean Manzon,164 símbolo do documentarismo da direita,

com fotografia excelente e quadrada, câmera no tripé e tudo arrumadinho como um cenário da Disney; nem queria ser um guerrilheiro.165

O ativismo, ambiental, cinematográfico, era uma espécie de impulso dos documentários que visavam uma parte do Norte ainda ―desvirginado‖. Tanto Jorge Bodanzky quanto Wolf Gauer dialogavam estritamente com o ambiente de produção paulistano – aquele que aqui se pode ver mais próximo da ―marginalidade‖. A produtora criada pelos dois chamava-se Stopfilm, e ambos atuavam junto à distribuição da Dinafilmes.

Este aspecto independente, chamado de marginal, também como um ethos cultural da época, ou temática que envolvia diversos filmes que iam da reconstituição de Lampião, do malandro urbano, do jeca picaresco e até do guerrilheiro, bandido criminoso, formatavam a modernidade sob olhares que tinham muito da ironia – tal como foi visto em Macunaíma. Veremos agora, numa observação do documentário, como há essa inserção dos autores e artistas em um contexto – da maneira mais evidente possível, que é na construção de um testamento regional, com a auto-reflexão inerente à montagem da não-ficção moderna numa inserção da equipe em seu objeto de observação, e na tomada de posição pela quase- neutralidade antropológica. Isso derivou em ares sutilmente paródicos à militância séria da política nacionalista, mesmo chegando ao local do grotesco, certas vezes.

O filme é, sobretudo, encaminhado de acordo com a ordem real de filmagens. Pode ser dividido em cinco partes, sem divisão de capítulos:

164 Documentarista que, como Major Thomas Reis e Marechal Rondon, ―desbravava‖ a Amazônia com imagens

do olhar exótico e distante. A diferença entre esse olhar da direita para algumas investidas de cineastas de esquerda é a aproximação com o desconhecido desse exotismo, dando alma a algo que antes pareciam quadros de paisagens amorfas.

165 MATTOS, Carlos Alberto. Jorge Bodanzky – o homem com a câmera. São Paulo: Imprensa Oficial do

1- Apresentação do personagem real de Evandro em seu local de vivência – o lado malévolo do político em busca de votos, e ambiência da saga do herói;

2- Reconhecimento dos problemas e conflitos locais;

3- Viagem ao desconhecido na via do rio num grande barco do Senador, a nave da comitiva;

4- A estupefação da religiosidade (ritos, mitos) ribeirinha, no misto entre protestantismo, catolicismo, tradições indígenas e seitas estranhas ao mundo moderno;

5- A volta do “herói real” a seu ambiente de trabalho, Brasília. Essa divisão, que serve como roteiro de uma possível decupagem, não foi feita pela equipe de registro.

3.5 Terceiro Milênio – síntese da evocação dos poderes populares: Amazonas