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De que tratam e geral os seminários de Zollikon? A configuração dos seminários é a de um grupo formado em sua maioria por médicos psiquiatras ou estudantes de psiquiatria e o filósofo Martin Heidegger. No primeiro encontro, que ocorreu na clínica psiquiátrica que muitos do grupo frequentavam, Heidegger inicia propondo que o mais fundamental do ser humano ainda está por ser devidamente conhecido (HEIDEGGER, 2009). Diante da assistência repleta de profissionais que veem pessoas todos os dias e que lidam com problemas relacionados a vivências internas de cunho psíquico destas pessoas, Heidegger sugere que ainda não se está dando a devida atenção ao que seria a estrutura fundamental do existir do ser humano. Ainda que a consulta médica envolva um exercício de breve autobiografia da pessoa e de estabelecimento de vínculo e intimidade com o terapeuta, não está garantido o acesso aos determinantes mais básicos do existir daquela pessoa.

Isto pode soar como um choque para quem pensa que ouvindo e interpretando os conteúdos dos enunciados dos pacientes estaria mais perto do modo de existir mais fundamental daquela pessoa. Heidegger aponta o pensamento objetificante como a origem do esquecimento da verdadeira profundidade do âmbito do existir humano. Afinal de contas, para a ciência psiquiátrica conhecer o estado psíquico de uma pessoa, é necessário transformar isto em algo objetivo, algo mensurável em escalas e critérios. Surge então a questão que atravessa ambos os lados: É preciso conhecer o modo de ser fundamental do homem para aliviar um sofrimento?

Talvez não seja a pretensão do psiquiatra conseguir explicitar devidamente o modo de ser daquela pessoa de acordo com o modo de ser fundamental do ser humano em geral. Tampouco pode-se concluir, agora, que Heidegger pense que não é possível aliviar sofrimentos sem conhecer o modo de ser fundamental do ser humano. Apenas está dado um problema para a plateia dos seminários refletir. Pode-se estar bastante longe de conhecer o modo de ser fundamental do ser humano se desconhecemos o caráter fundante da compreensão do ser e da autocompreensão para o modo de ser do ser humano.

Ao analisar os seminários de Zollikon, podemos empreender uma descrição dos encontros a partir do modo como Heidegger tenta dizer algo aos ouvintes e também uma

descrição dos encontros de acordo com o quê Heidegger tenta dizer aos ouvintes. Estas duas descrições podem estar em algum sentido interdeterminadas. Isto porque a proposta de Heidegger é que justamente já não se pode falar propriamente de objetos da experiência humana a partir do modelo tradicional da entificação do ser na subjetividade cognoscente e da pressuposição da objetividade dos entes no mundo. O próprio objeto da investigação já não dispõe mais do seu isolamento objetivo em relação ao existir humano, e é assim que Heidegger apresenta o método fenomenológico hermenêutico de conhecimento.

O assunto dos seminários de Zollikon é a proposta fenomenológica de Heidegger da unidade do existir humano frente à divisão proposta pela metodologia da ciência psiquiátrica entre corpo e psique. Não está esclarecido ainda se a divisão da ciência se dá a partir desta unidade fenomenológica, muito menos que se pode deduzir as categorias de corpo e psique a partir da unidade essencial do existir humano fenomenológico. Os pontos de confusão e intersecção destes modos de abordagem do ser humano tentarão ser identificados e esclarecidos ao longo dos encontros.

Seria um erro entender que a ciência procede ao exame do existir humano. Ao pesquisar o ser humano, o método de investigação da ciência é o da objetificação, ela vai preparar a mensurabilidade de todos os aspectos referentes ao ser humano e vai experimentar na prática as hipóteses de intervenção que serão úteis. A investigação científica não parte do vislumbrar da unidade do existir humano, pois o campo de observação da ciência não é o homem que existe, mas um esquema determinado por espaço e tempo homogêneos contendo pontos de matéria. O conhecimento da ciência não se assenta sobre o modo de ser no mundo do homem, mas numa pressuposição de separação radical entre sujeito e objeto e da mensurabilidade universal de objetos.

A ciência sempre tem um objetivo de conhecer, mas o que se percebe na recente história da ciência é que o foco em obter conhecimento é maior do que o foco em se aproximar das coisas do mundo segundo o modo que aquelas coisas do mundo são. Definitivamente é muito mais fácil controlar algo que posso medir matematicamente em um ambiente de conhecimento homogêneo e previsível. Mas a ciência se viciou na rapidez e mecanicidade de sua produção de conhecimentos pela regra do controle e previsibilidade. Há muito promove a objetividade dos objetos mediante a cada vez mais segura e inabalável subjetividade conhecedora. Só recentemente, empreendendo-se uma crítica ao método científico, é que se percebe que isto desvia o conhecimento do modo originário de ser das coisas do mundo em relação ao existir humano. Dentre as coisas deixadas por investigar também estariam os aspectos fundamentais do modo de ser do ser humano.

Também a unidade do existir humano não permite ser dividida sumariamente em corpo físico e psique. A análise do fenômeno do existir humano não se dá de modo pré- determinado por medidas ou ordenamentos mensuráveis, mas, sim, pelo método de análise descritivo do modo como o homem se relaciona em geral com o mundo. Para tanto, os conceitos de compreensão do ser e de autocompreensão são indispensáveis e determinam tudo que se possa dizer do modo de ser do ser humano. Não há lugar, em uma análise existencial, para previsibilidade e controle dos achados.

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