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Intuicionismo Racional: Ralph Cudworth

No documento Thoureau: moralidade em primeira pessoa. (páginas 80-165)

Minha tentativa de descrever a formação da consciência moral de Thoreau obedece a um critério bastante preciso: dar atenção àquelas obras que Thoreau teve contato direto, ou seja, leituras que pressume-se tenha feito. Para isso,

Thoreau´s Reading de Sattelmeyer funciona como um guia precioso, mas, em

alguns momentos, decepcionante. Explico-me. As leituras de Thoreau das obras do scottish common sense estiveram sempre um passo atrás em relação aos títulos que mais claramente expõem as doutrinas morais e epistemológicas dessa escola. De acordo com Sattelmeyer, ele não leu nada de Thomas Reid – o que constitui um obstáculo e tanto para afirmar uma posição mais central para as doutrinas de Reid na sua formação filosófica nos anos em Harvard. E teria sido mais simples reconstruir essa plausível influência e centralidade se, ao invés de ler

Elements, Thoreau tivesse tido contato com obras mais acabadas e sistemáticas

de Stewart como Outlines of Moral Philosophy, de 1793 ou The Philosophy of the

Active and Moral Powers, de 1828. Mesmo com essas dificuldades, creio que

determinadas teses do scottish common sense foram fundamentais para sua educação filosófica, como procurei mostrar.

Quando se trata de avaliar a influência do pensamento moral dos platonistas de Cambridge, esse tipo de dificuldade fica mais aguda. O que pretendo mostrar é a filiação de Thoreau a uma linha de desenvolvimento do pensamento moral de língua inglesa que inicia no Intuicionismo racional dos platonistas de Cambridge, passa, fazendo alguns desvios, por Shaftesbury133, tem

133 O exercício de comparação entre Thoreau e Shaftesbury mostraria uma série de pontos de aproximação conceitual. Construir esse diálogo, mesmo na direção contrária das evidências historiográficas, é uma tarefa que postergo para outro momento.

seu ponto alto no scottish common sense de Reid e Stewart e cristaliza-se no Unitarismo de Channing. Com a implosão do Unitarismo nos anos 1840 esta tradição acaba tomando direções variadas nas mãos de Emerson, Parker, Brownson e Thoreau, mas antes de chegar lá preciso esclarecer quais são os elos que mantêm essa tradição e de que modo Thoreau percebeu suas ligações.

A primeira constatação é a de que na história intelectual de Thoreau, o contato com essa tradição começou pelo final. O Unitarismo era um fator cultural inescapável no qual ele se encontrava imerso desde sempre. É difícil precisar quando e quais sermões de Channing ele leu, mas é muito provável que tenha sido durante os anos em Harvard. O common sense de Thomas Reid, por meio de Stewart, aparecerá na sua trajetória a partir de 1836. E sua única leitura de um autor dos platonistas de Cambridge foi The True Intellectual System of the

Universe (1678), de Ralph Cudworth – um dos eventos memoráveis da primavera

de 1840. E aqui, novamente, temos a mesma dificuldade que aparece no seu contato com Reid. Do ponto de vista sistemático, a obra que expõe o pensamento moral de Cudworth e, por extensão, do platonismo de Cambridge, é A Treatise

concerning Eternal and Immutable Morality, publicada postumamente em 1731 –

que Thoreau não leu.

Quais teriam sido os propósitos da leitura, recomendada por Emerson, de um livro extremamente erudito e dogmaticamente ambicioso (afinal de contas, como o próprio subtítulo do livro anuncia, trata-se de demonstrar a impossibilidade do ateísmo) como The True Intellectual System of the Universe? Sattelmeyer tem uma aposta: Thoreau teria lido Cudworth com o mesmo interesse de Emerson, não como um tratado teológico de apologia cristã, mas como um rico repositório de citações da ética antiga134.

Algumas passagens de seus diários, nas quais Thoreau registra momentos de sua leitura de Cudworth, podem ajudar a decidir se esta é uma boa aposta.

134 Em 1845 Emerson escreve no seu diário:” "I know no book so difficult to read as Cudworth proper. For as it is a magazine of quotations, of extraordinary ethical sentences, the shining summits of ancient philosophy, and as Cudworth himself is a dull writer, the eye of the reader rests habitually on these wonderful revelations and refuses to be withdrawn." Sattelmeyer cita parte desta passagem, excluindo as menções negativas.

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Em 09 de abril de 1840 lemos uma declaração espantosamente entusiasmada sobre as possibilidades da… astrologia!135 :

April 9. I read in Cudworth how "Origen determines that the stars do not make but signify; and that the heavens are a kind of divine volume, in whose characters they that are skilled may read or spell out human events." Nothing can be truer, and yet astrology is possible. Men seem to be just on the point of discerning a truth when the imposition is greatest 136.

Em 14 de junho de 1840 temos uma lista de citações retiradas de diferentes passagens de The True Intellectual System of the Universe, começando pelo que Cudworth considera a definição aristotélica de arte como “definição da atividade sem a matéria”137, passando por citações dos Oráculos Caldaicos138, de uma inscrição no Templo egípcio de Sais139, Eurípides140 e Empédocles141.

É difícil ver algum interesse especificamente moral nesta coleção de citações. Antes corroboram ou exemplificam teses que são caras a Cudworth, como o caráter imaterial da inteligência divina e as evidências de monoteísmo nos cultos religiosos gregos, babilônicos e egípcios.

E por último, seguindo de perto a evolução da leitura, em 24 de junho de 1840, temos uma defesa da especulação metafísica, não pela plausibilidade de

135 É espantosa porque contrária ao próprio texto de Cudworth, que poucas linhas depois da citação de Orígenes, deixa claro que considera a astrologia uma atividade infundada.

136 JL, p. 133.

137 Definição que Thoreau retoma em A Week nos seguintes termos: “Aristotle defined art to be Lo’gos tou e’rgou a’neu hy’l es, The principle of the work without the wood; but most men prefer to have some of the wood along with the principle; they demand that the truth be clothed in flesh and blood and the warm colors of life”

138Ho chrê se noein noou anthei (aquilo que tu deves conhecer (inteligir) com a flor do intelecto). 139 Ego eimi pan to gegonon, kai on, kai esomenon kai to emon peplon oudeis pô thnêtos apekalipsen (Eu sou tudo o que foi, o que é e o que será e o meu manto nenhum mortal até hoje desvelou). 140 Mellei to Theion d’esti toiouton phusei (O divino é tal por natureza).Meu agradecimento ao

professor Raphael Zillig pela ajuda na tradução das passagens em grego dos Diários.

141 “The right reason is in part divine, in part human; the second can be expressed, but no language can translate the first”.

suas teses, mas por representar uma atitude de encantamento sincero, ou “musing”, como diz Thoreau:

June 24. When I read Cudworth I find I can tolerate all, atomists, pneumatologists, atheists, and theists, Plato, Aristotle, Leucippus, Democritus, and Pythagoras. It is the attitude of these men, more than any communication, which charms me. It is so rare to find a man musing. But between them and their commentators there is an endless dispute. But if it come to that, that you compare notes, then you are all wrong. As it is, each takes me up into the serene heavens, and paints earth and sky. Any sincere thought is irresistible; it lifts us to the zenith, whither the smallest bubble rises as surely as the largest. Dr. Cudworth does not consider that the belief in a deity is as great a heresy as exists. Epicurus held that the gods were "of human form, yet were so thin and subtile, as that, comparatively with our terrestrial bodies, they might be called incorporeal; they having not so much carnem as quasi-carnem, nor sanguinem as quasi-sanguinem, a certain kind of aerial or ethereal flesh and blood." This, which Cudworth pronounces "romantical”, is plainly as good doctrine as his own. As if any sincere thought were not the best sort of truth! 142.

Essas citações são exemplares para demonstrar uma visão romanticamente estetizada, que é persistente em Thoreau, sobre a filosofia (e poesia, e religião) antiga, seja na tradição greco-romana, hindu, persa ou chinesa; mas não ajudam a revelar algum interesse explícito pela visão moral de Cudworth e do Platonismo de Cambridge.

Richardson Jr., ao tentar explicar quais interesses estavam em jogo na leitura de Cudworth, enfatiza a curiosidade de Thoreau em relação aos fragmentos órficos no comentário de Proclo sobre o Timeu de Platão, em especial os hinos devocionais à Zeus, o que demonstraria uma preocupação antes religiosa do que moral para estabelecer, nas palavras de Richardson Jr. “a wider, older, specifically

Greek basis for his own religious response to the world”143.

142 JL, p.150.

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Apesar do começo pouco auspicioso, a hipótese que me cabe examinar aqui já foi anunciada no meu exame da psicologia moral da self-culture Unitarista: o apelo que Thoreau faz à noção de consciência, em especial em Resistance to

Civil Government, tem um forte teor intuicionista cuja origem não está apenas em

Channing, Dugald Stewart e Reid, mas também em Cudworth.

Minha hipótese é que a adoção por Thoreau de uma posição moral próxima ao intuicionismo está diretamente ligada ao ambiente cultural do Unitarismo, bem como a suas leituras dos sermões de Channing. Em Harvard ele teve contato com os fundamentos da psicologia moral Unitarista por meio do common sense de Stewart e Reid, que, em boa medida, é uma reapresentação de teses do intuicionismo racional de Cudworth e dos demais platonistas de Cambridge, como Richard Price e Benjamin Whichcote. Para Cudworth, quando digo que uma ação é moralmente boa ou correta, estou descrevendo propriedades objetivas da própria ação e não uma reação sentimental que me ocorre ao presenciá-la como agradável. “Moralmente bom” ou “moralmente correto” são ideias simples, indefiníveis, que são percebidas intuitivamente pelo moral sense.

Além de reafirmar uma orientação básica sobre o caráter intuitivo dos juízos morais, a leitura de Cudworth cumpriu a função de explicar como o intuicionismo toma seu ímpeto inicial em uma discussão de teologia moral sobre as inconveniências do voluntarismo protestante. Esta hipótese ajuda a compreender de que modo três diferentes momentos da formação intelectual compõem um todo orgânico, além de explicitar a conexão entre os platonistas de Cambridge e o moralismo Unitarista, já que ambas tradições são reações à ortodoxia protestante, especificamente às doutrinas de Calvino. No cenário britânico do século XVII, o neoplatonismo de Cudworth e Whichcote é uma voz de oposição às doutrinas calvinistas que ganharam força na Revolução Puritana, após a morte de Charles I. No cenário americano do século XIX, o Unitarismo de Channing enfrenta as mesmas doutrinas, transplantadas para um colônia espiritualmente guiada pelo puritanismo144.

144 Para a compreensão da importância do puritanismo, foi especialmente importante durante a redação deste livro, a leitura de dois ensaios do The Cambridge Companion to Puritanism. Para o cenário inglês da época de Whichcote e Cudworth, The Puritan Revolution de John Morrill. Para o

Considerando tal convergência, é fundamental explicar como o tema clássico do voluntarismo protestante aparece em The True Intellectual System of

the Universe e de que modo o pensamento moral de Thoreau, ou melhor dizendo,

sua imaginação moral, o mapeia. 3.1- Antivoluntarismo e moralidade

O mito da Queda esteve sempre presente na imaginação thoreauviana. E não é por outra razão que introduzimos a discussão sobre a influência unitarista repercutindo as metamorfoses da iniquidade humana no seu texto mais cru que é

A Week on the Concord and Merrimack Rivers, onde nos é apresentada a imagem

de uma luminosa manhã anterior a Queda:

In the morning the river and adjacent country were covered with a dense fog, through which the smoke of our fire curled up like a still subtiler mist; but before we had rowed many rods, the sun arose and the fog rapidly dispersed, leaving a slight steam only to curl along the surface of the water. It was a quiet Sunday morning, with more of the auroral rosy and white than of the yellow light in it, as if it dated from earlier than the fall of man, and still preserved a heathenish integrity.

É sensato dar razão a Richardson Jr. quando nos diz que um dos objetivos de Thoreau ao ler Cudworth era encontrar modelos de experiência religiosa mais próximos aos ideais gregos. Esta ideia harmoniza-se à perfeição com uma “still

preserved heathenish integrity”, como se o ideário grego (mas também, com o

passar do tempo, hindu, chinês, persa) estivesse cristalizado em um destes momentos “dated from earlier than the fall of man”. É igualmente sensato pensar que muito das discussões sobre a natureza humana na filosofia moral moderna são repercussões do mito da Queda. E a leitura de Cudworth ofereceu oportunidade para pensar na reação dos Platonistas de Cambridge ao voluntarismo de Lutero e Calvino como uma dentre as repercussões que tiveram importância para a concepção de moralidade.

começo da colonização americana, The Puritan experiment in New England, 1630-1660 de Francis J. Bremer.

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O antivoluntarismo começa pela tese de que as ideias morais na mente divina são condicionantes inclusive para as próprias ações divinas:

The first great modern proponent of rational intuitionism was the Cambridge Platonist Ralph Cudworth, whose Treatise Concerning Eternal and Immutable Morality was published posthumously in 1731. In that classic work, Cudworth took issue with Hobbes, claiming that morality has an objective existence, dependent upon no command or will. Not even God could create or change moral principles, according to Cudworth; instead, He recognized their validity and was guided by them. To put it another way, God’s will was subordinate to His intellect 145.

E esta é uma das heranças do Platonismo de Cambridge para os moralistas do Unitarismo, pois a consequência desta tese, que foi expressa com todas as letras por Whichcote, é a submissão da teologia à ética. As leis morais não necessitam da sanção da vontade divina. Schneewind resume o ponto:

Because Whichcote is strongly opposed to voluntarism, he insists that there is something to be know at the base of morality. ‘Moral laws are laws of themselves’, [...] he tell us, ’without sanction by will; and the necessity of them arises from the things themselves’. God made us to know both him and his creation, and so made the mind with sound faculties [...]. If we use them properly we are in accord with ourselves; to refuse to seek truth and to refuse to think for oneself are equally to be at odds with oneself. The important truths are readily accessible to us, moreover, and are neither recondite nor difficult 146.

De acordo com essa lição, é fácil compreender outra herança de Whichcote e Cudworth para o Unitarismo de Channing. As ideias morais da mente divina são cognoscíveis e postas em prática pelos nossos esforços de progresso moral. O autoconhecimento, por meio dos desdobramentos da self-culture, não é nada menos que o próprio conhecimento da mente divina – o que foi considerado pela

145 HOWE, 1988, p.46-7. 146 SCHNEEWIND, p.197

ortodoxia protestante, em diferentes épocas, como pelagianismo e demonstração desmedida e repreensível de soberba intelectual147 perante os mistérios da fé:

The central mystery is that a just and loving God made us with a nature that would inevitably lead us to sin and so to deserve eternal punishment. Some are saved by divine grace; but Luther accepts the Augustinian doctrine that grace is prevenient. It comes before we can do anything to deserve it; and since without it we cannot love rightly or be saved, the responsibility for our sins seems to revert back to God.When Luther deals with the problem he has no qualms in declaring that we simply cannot understand it all. God hardened Pharaoh’s heart, so that he refused even to seek salvation. Why? ‘This question’, Luther replies, ‘touches on the secrets of His majesty...it is not for us to inquire into these mysteries, but to adore them...The same reply should be given to those who ask: Why did God let Adam fall, and why did He created us all tainted with the same sin, when He might have kept Adam safe, and might have created us of other material?’[...] 148.

Para Lutero e Calvino o único meio de salvação é a graça irresistível. Os comandos de Deus devem ser obedecidos, mesmo que não possamos compreendê-los. E esta é nossa melhor garantia, pois mesmo que a salvação estivesse ao alcance de nossas obras, nunca teríamos certeza sobre quais obras agradariam a vontade divina.

A simpatia de Thoreau pela self-culture Unitarista e pela linguagem moral do scottish common sense já seria suficiente para mantê-lo em guarda contra uma teologia que afasta a consciência do centro da discussão moral. Entretanto, creio que o intuicionismo, com sua subordinação da teologia à ética, permitiu a Thoreau dar um passo além e considerar a possibilidade do elogio da consciência independente de considerações teológicas. Em 29 de janeiro de 1841, seu Diário registra esse passo audacioso:

There is something proudly thrilling in the thought that this obedience to conscience and trust in God, which is solemnly preached in extremities and

147 Do Unitarismo e anteriormente dos Platonistas de Cambridge. 148 SCHNEEWIND, p.30.

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arduous circumstances, is only to retreat to one’s self, and rely on our

own strength. In trivial circumstances I find myself sufficient to myself, and

in the most momentous I have no ally but myself, and must silently put by their harm by my own strength, as I did the former. [...] God is not our ally

when we shrink, and neuter when we are bold. If by trusting in God you lose any particle of your vigor, trust Him no longer. When you trust, do

not lay aside your armor, but put it on and buckle it tighter. If by reliance on the gods I have disbanded one of my forces, then was it poor policy. I had better have retained the most inexperienced tyro who had straggled into the camp, and let go the heavenly aliance 149.

A passagem é escrita usando metáforas militares que o ensaio The Service consagrou. A armadura que não deve ser deixada de lado é uma representação da consciência moral, e se devidamente ajustada ao caráter, é imprescindível para lutar a boa luta. No mesmo período em que Thoreau fazia estas observações, Emerson publicava Self-Reliance, e é importante notar a presença das expressões “rely on our own strength / trusting in God“ no texto de Thoreau. Como veremos na análise de Self-Reliance, é praticamente impossível afastar uma interpretação teológica para a razão da confiança em si mesmo na lição emersoniana. E aqui vemos, claramente, uma opção que Emerson não foi capaz de formular: se a confiança em Deus diminuir a fortaleza do meu caráter, é imperioso abandoná-la. Não apenas a confiança em Deus, mas também a obrigação de obedecer a qualquer ordenamento jurídico ou acatar as decisões da maioria, devem poder ser abandonadas em nome da afirmação autônoma da consciência – ponto de partida de Resistance to Civil Government:

Can there not be a government in which majorities do not virtually decide right and wrong, but conscience? — in which majorities decide only those questions to which the rule of expediency is applicable? Must the citizen ever for a moment, or in the least degree, resign his conscience to the legislator? Why has every man a conscience, then? I think that we should be men first, and subjects afterward. It is not desirable to cultivate a respect for the law, so much as for the right. The only obligation which I have a right

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