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4. A IRONIA COMO ESTRATÉGIA DE LINGUAGEM

4.2. A ironia sob a perspectiva psicanalítica

Diferentemente da teoria filosófica, sob a perspectiva psicanalítica, Brait (2008), ao citar Freud, faz menção ―aos processos de figuração do sonho‖, e mostra que o psicanalista, considerando o sonho uma atividade humana do subconsciente, sustenta que uma coisa pode significar seu contrário. Partindo deste pressuposto, se considerarmos a ironia como inversão apoiada na questão do sonho, ela também seria, hipoteticamente, obra do inconsciente, podendo querer expressar o contrário do que realmente está expresso.

Brait (2008), ao parafrasear Freud, não leva em consideração apenas o locutor e o processo instaurador da ironia, como também o ouvinte e os aspectos que os envolvem, no sentido de produção discursiva e de seu efeito no inconsciente. Assim, afirma que o ironista diz o contrário do que quer sugerir, todavia insere na mensagem um sinal que acaba por prevenir o interlocutor de suas reais intenções, ajudando-o na decodificação da mensagem contrária.

Essa perspectiva vai ao encontro do que Maingueneau (2002) fala sobre o termo subversão da ironia, quando ele afirma que a enunciação irônica apresenta a particularidade de desqualificar a si mesma, de modo que o enunciador pode deixar pistas no enunciado que deflagram a sua verdadeira intencionalidade. Vejamos o trecho em que Freud deixa evidente esta questão.

A única técnica que caracteriza a ironia é a representação pelo contrário. Pode ser que a representação pelo oposto agradeça o favor de que desfruta sem qualquer necessidade de remissão ao inconsciente. Refiro-me à ironia muito próxima ao chiste e contada entre as subespécies do cômico. Sua essência consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender – pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas indicações estilísticas – que se quer dizer o contrário do que se diz. A ironia só pode ser empregada quando a outra pessoa está preparada para escutar o oposto, de modo que não possa deixar de sentir uma inclinação a contradizer. (FREUD, apud BRAIT, Pag. 55)

Dessa forma, podemos depreender que, em Freud, o mecanismo irônico é fruto de um (IN) consciente, haja vista que o próprio autor afirma que, por motivos quaisquer, a todo o momento, o ser humano utiliza do sentido contrário para expressar o que realmente quer dizer. Essa afirmação nos dá a entender que se trata de uma característica inerente a qualquer pessoa, ou seja, todos têm, caracteristicamente, a facilidade de produzir sentenças contrárias ao que se propõem expressar. Mas, ao mesmo tempo em que este mecanismo é gerado a partir de um desejo inconsciente, é também fruto de uma produção discursiva dotada de intencionalidade, pois o locutor, conforme visto no trecho acima, visa que o seu interlocutor capte as pistas deixadas por ele no texto e corresponda ao efeito irônico produzido.

Parafraseando Freud (1969), quando ele se refere ao processo de construção da ironia, considera que é no outro que a ironia tem sentido, pois há uma espécie de triângulo da ironia, em que ela se concretiza quando atinge o eu consciente, aquele que analisa, pensa e reflete, o outro, ao qual quero causar determinado efeito e o eu inconsciente, aquele que possui um aparato de informações referentes ao tema tratado que me permite inferir certas afirmações no plano da consciência.

Desse modo, podemos promover o diálogo com o quadro dos sujeitos proposto por Charaudeau (2008). Ela diz que, em uma ponta do discurso, tem-se um eu- consciente (que analisa, pensa e reflete), o que corresponde ao EU-comunicante (ser social). Este projeta para o discurso um EU-enunciador (ser de fala – [in] consciente) que vai em direção a um TU- destinatário idealizado (o outro ao qual se quer causar determinado efeito – ser de fala também [in] consciente). A problemática está na correspondência ou não entre o TU- destinatário e o TU-interpretante, pois, segundo a concepção freudiana, o efeito irônico acontece somente quando o outro ao qual se pretende atingir apreende o sentido irônico e, então, movimenta-se do plano da inconsciência para a consciência.

Fig. 07: Representação do processo da construção da ironia em Freud

Brait (2008) ajuda-nos a compreender melhor o esquema ao dizer que:

Ao chamar a atenção para o caráter alusivo da ironia, e para as formas como o ―eu‖ e o ―outro‖ participam ativamente desse ―jogo de representações‖, a concepção freudiana de ironia procura evidenciar, como ressalta Assoun, que ―o percurso em direção à verdade‖, é feito pela contramão, mas que o locutor conta com a sintonia do seu interlocutor. Ou seja: ―É de fato no espírito do destinatário que a verdade irônica faz eclodir seu efeito, mas de maneira a estabelecer uma sequência de três elementos: o eu consciente, o outro e o eu inconsciente‖ (1980ª,p.165). (BRAIT, 2008, p. 58).

Em consonância com o excerto, Charaudeau (2011) diz que a ironia é colocada em cena em uma relação triangular. Segundo ele, o locutor, também chamado aqui por Eu- comunicante, sujeito que possui uma identidade social, se dirige a um interlocutor com sua própria identidade social, através da imagem de um destinatário ou Tu-destinatário com uma identidade discursiva idealiza pelo locutor, visando um determinado alvo. Ou seja, o locutor vai em busca de um destinatário idealizado para o discurso a fim de que o mesmo corresponda às suas expectativas, para que, assim, ambos possam ir em direção ao alvo da ironia.

Em esquema nós temos:

Fig. 08: Representação do triângulo irônico.

É como podemos constatar, no exemplo a seguir, extraído da crônica ―O dia D Dilma‖ (2016). A mesma encontra-se na íntegra nos anexos deste trabalho.

Eu sou inocente, pura, não tenho dinheiro na Suíça, e toda minha paixão lancinante pelo povo brasileiro foi confundida com desonestidade e incompetência. As massas ainda vão sentir a minha falta, debaixo de um governo neoliberal que só pensa em contabilidade. (Jornal O Globo online – 30 de agosto de 2016)

No exemplo, o enunciador simula um possível discurso de defesa, da ex-presidente Dilma Rousseff, em relação às acusações recebidas de ter cometido crime de responsabilidade fiscal. Nesse contexto, ele utiliza expressões nominais que deflagram um teor de ironia. Termos como inocente, pura e paixão lancinante são utilizados intencionalmente para produzirem efeito de sentido contrário. Ou seja, essas expressões, no contexto da crônica, não colocam Dilma em uma posição de vítima, mas sim de culpada diante das acusações sofridas.

Em suma, nós temos um Eu-comunicante, Arnaldo Jabor, sujeito que possui uma identidade social, que se transveste da imagem de um enunciador, Arnaldo Jabor discursivo, de ―papel‖. Este se dirige a um interlocutor, um Tu-destinatário idealizado, os possíveis leitores da crônica, convidando-os, através dos recursos argumentativos dos quais dispõe, a irem em direção ao alvo da ironia, neste caso, Dilma Rousseff.

Retomando a perspectiva freudiana acerca da ironia, referente aos sinais que estão presentes na mensagem irônica e que alertam o interlocutor, Freud recorre à enunciação e observa a relação entre o sujeito e sua linguagem, o sujeito e o outro (direção em que ocorre a produção da ironia). Em síntese, ao tratar da ironia sob o viés da psicanálise, seu olhar centra- se na interação entre os sujeitos e nos aspectos que dizem respeito tanto à dimensão

consciente existente na produção do discurso, quanto à sua dimensão inconsciente ou pré- consciente.

Portanto, ainda que sua análise seja voltada para o campo da psicanálise, ele não despreza o fato de que o mecanismo irônico deva ser também observado pelo exame da mensagem, ou melhor, da linguagem. Os sinais que alertam o interlocutor para a captação do efeito irônico produzido na mensagem ocorrem a partir da manifestação desses na linguagem, seja na modalidade oral ou escrita. O cerne de sua discussão é se o efeito irônico é produzido de maneira consciente ou inconsciente e a forma como está sendo concebido pelo interlocutor da mensagem.

Concordando também que a ironia é um recurso expressivo da linguagem e que deva ser observada no e pelo discurso, partamos para as concepções mais atuais sobre ela a partir das perspectivas da ciência da linguagem com as quais este trabalho mantém maior diálogo, haja vista que são as recorrências linguísticas identificadas nos textos analisados que deflagrarão um possível ethos irônico do enunciador.