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A irrelevância dos interesses dos animais não-humanos: a tese de

3 CRÍTICAS AOS PRESSUPOSTOS DO PRINCÍPIO DA IGUAL

3.8 A irrelevância dos interesses dos animais não-humanos: a tese de

Enquanto Frey nega que animais possuam linguagem, não havendo, então, interesses a serem levados moralmente em consideração, como propõe o princípio da igual consideração de interesses de Singer fundamentado na senciência, o filósofo Lawrence. C. Becker, por sua vez, reconhece a existência de interesses comparáveis nos animais, embora não reconheça que os seres humanos lhes devam considerações morais com base nessas semelhanças de

301 PLUHAR, Evelyn B. Beyond Prejudice: the moral significance of human and nonhuman

interesses, defendendo que os interesses humanos devem sempre prevalecer sobre os dos animais, e negando, portanto, uma igualdade no modo como os interesses dos animais devem se tratados pelos seres humanos.

Em seu artigo The Priority of Human Interests,302 de 1983, Becker compreende que a consideração moral oferecida a um indivíduo se deve, essencialmente, ao fato dele ser membro de uma comunidade moral. Assim, segundo Becker, não apenas os animais, mas também os seres humanos que se encontram afastados, isto é, distantes do círculo moral íntimo do agente têm os seus interesses levados em menor (ou nenhuma) consideração moral. Desse modo, ao direcionar sua investigação para a questão dos animais, o autor afirma que o se propósito “é apresentar um argumento em defesa da prioridade moral, para humanos, de interesses humanos sobre os mesmos interesses em animais”.303 Reconstruo, a seguir, os argumentos de Becker voltados à fundamentação da prioridade dos interesses humanos sobre os dos animais, criticando, com isso, a proposta da igual consideração dos interesses dos animais.

Para Becker, essa exclusão do âmbito de consideração moral se deve ao fato de que na constituição do caráter de todo agente moral existem determinados traços que conduzem diretamente à preferência pelos interesses dos que são mais próximos em detrimentos dos que são mais distantes. Becker denomina essa regra de “distância social,”304 e aplica-a tanto nas relações entre seres humanos quanto nas relações com os animais, a fim de com isso fundamentar uma prioridade nas considerações morais pelos interesses humanos.

Há certos traços de caráter que a pessoa deve ter – traços constitutivos da excelência moral ou virtude. Alguns desses traços dispõem preferências por ‘distância social’ – isto é, dar prioridade aos interesses daqueles próximos de

302 Optei pelo uso desse artigo por ele constituir o debate na parte três “Equal Consideration for

Animals” do livro Animal Rights and Human Obligation, editado por Tom Regan e Peter Singer, juntamente com os artigos “All Animals Are Equal” de Peter Singer, e “Darwin, Species, and Morality”, de James Rachels. Esses três artigos, juntos, compõem o debate sobre a igual consideração dos interesses dos animais nessa parte do livro. Além disto, Becker apresenta em sua argumentação importantes objeções de caráter contratualista para negar a igual consideração moral pelos interesses dos animais e que serão analisadas aqui.

303 BECKER, Lawrence C. The Priority of Human Interests. In: REGAN Tom; SINGER Peter

(Ed.), Animal Rights and Human Obligations. 2ed, New Jersey: Prentice Hall, 1989. p. 87, grifo e tradução nossa.

nós nos relacionamentos sociais sobre os interesses daqueles que estão mais distantes.305

Defendendo essa tese no que se refere às próprias relações humanas, no que diz respeito aos animais, portanto, o autor é conduzido a concluir que:

Animais são tipicamente ‘mais distantes’ de nós do que seres humanos. Assim, para sustentar que pessoas devem ter os traços constitutivos da virtude é sustentar, como uma consequência, que pessoas devem (tipicamente) dar prioridade aos interesses de membros da sua própria espécie.306

O critério para defender a prioridade de consideração dos interesses humanos sobre os interesses animais (e até sobre de outros seres humanos) é o grau de proximidade. Quanto mais o paciente moral estiver próximo do agente moral, mais direito ele tem em ter seus interesses levados em consideração. Nesse sentido, diferente de Singer, Becker fundamenta, portanto, que a parcialidade é um critério válido na tomada de decisões morais, pois, “alguns traços de caráter que são constitutivos da excelência moral estão vinculados a preferência da distância social”.307 Os traços de caráter mencionados como moralmente importantes para as decisões éticas tanto em relação aos seres humanos quanto aos animais, são dois: (i) reciprocidade, e (ii) identificação empática.

(i) Por reciprocidade, Becker entende a capacidade de “retornar um bem na proporção do bem recebido”.308

Tal disposição de reciprocidade é geralmente considerada um elemento da virtude moral.

(ii) Por identificação empática, o autor compreende a “habilidade e a propensão de ver situações por outro ponto de vista, para entender e de fato para compartilhar empaticamente experiências dos outros”.309 305 Ibid. 306 Ibid. 307 Ibid., p. 90. 308

Ibid. A reciprocidade, tal como Becker a define, é um elemento essencial das teorias contratualistas.

309 Ibid. Para o autor, ambas as características que constituem o caráter moral dos agentes estão

No entendimento de Becker, a disposição existente nos agentes morais para a reciprocidade e a identificação empática é resultado direto da distribuição disposta pela distância social.310 Isso significa que aqueles que estão muito mais próximos do agente recebem, inevitavelmente, uma consideração muito maior pelos seus interesses em comparação com aqueles que estão numa disposição social mais distante. Existe uma maior identificação recíproca de interesses pelos que estão em proximidade. Em relação aos que são mais distantes, a identificação de seus interesses, de suas dores ou prazeres, segundo Becker, só pode ocorrer muito mais por uma empatia construída pela imaginação, o que por sua vez não tem a mesma vivacidade do que a existente pela aproximação real.

Nós nos identificamos mais completamente com aqueles mais próximos de nós. Isto é, os interesses deles são ‘reais’ para nós de uma maneira que os interesses de pessoas mais distantes não são. Identificação empática com o sofrimento (e o prazer) de pessoas que a simples existência nós sabemos apenas indiretamente (através da descrição de outros) não pode ajudar, mas tem uma qualidade imaginativa, diluída, e duvidosa. Em contraste, os interesses dos que estão próximos de nós – os interesses diretamente comunicados a nós – tem uma vivacidade, imediaticidade, e indubitabilidade que a empatia construída imaginativamente nunca pode igualar- se.311

A identificação empática forte produz uma conduta que faz com que ofereçamos uma forte preferência pelos interesses destes que nos são mais próximos, do que com àqueles cuja empatia é mais fraca por estarem justamente mais distantes. Para Becker, essa preferência na consideração dos interesses é condicionada e regulada justamente pela característica da distância social.312

ética das virtudes e contratualismo. Em todas estas teorias, Becker compreende que a reciprocidade e a empatia com os outros são pré-requisitos (Cf. BECKER, Lawrence C. The Priority of Human Interests. In: REGAN Tom; SINGER Peter (Ed.), Animal Rights and Human Obligations. 2ed, New Jersey: Prentice Hall, 1989. p. 90).

310 Cf. Idem. 311 Idem., p. 92. 312 Cf. Idem.

Seguindo essa tese, no que se refere, então, aos membros de outras espécies, Becker, consequentemente, os considera como seres que se encontram socialmente mais distantes de nós em comparação aos membros de nossa própria espécie. Desse modo, sustentado pela tese de que os interesses dos mais próximos do agente têm prioridade sobre os interesses dos mais distantes, Becker defende, então, que é moralmente correto oferecer uma “sistemática preferência pelos interesses dos seres humanos sobre os interesses dos animais”.313

Com isso, Becker defende que existem deveres morais apenas aqueles com os quais se estabelece efetivamente uma relação, por estarem justamente em proximidade. Esta interação aumenta ou diminui conforme a distância social e quanto mais próxima ela é, mais fortes são os deveres.314 O autor compreende que a relação é uma interação na qual se pode dizer que existe uma dependência entre as partes:

[...] os seres agem em favor de, com, para, ou

contra todos os outros [...]. A relação causal (de

interdependência) que temos com certos microorganismos simbióticos não é uma relação neste sentido [...]. De modo similar, nossa dependência de oxigênio não pode ser analisada em termos de uma dependência social, nem como a relação causal entre nós e vegetais. Mas,

podemos ter relacionamentos, no sentido referido,

com muitos tipos de animais e, praticamente, com todos os seres humanos. Nesses relacionamentos, nosso reconhecimento da verdade a respeito da dependência é um dos fatores que determina a distância social. E, quanto maior a dependência, menor a distância social.315

Com essa noção de relação e dependência, Becker é levado a concluir que os animais são muito menos dependentes de nós, em nossas relações com eles, do que são os seres humanos, principalmente as crianças, que dependem de adultos para sobreviver, ter boa saúde e bem- estar. “A distância social de humanos adultos para infantes é, deste modo, tipicamente menor que a distância em comparação aos animais”.316 313 Idem. 314 Cf. Ibid., p. 93. 315 Ibid. 316 Ibid.

Baseando-se nessas considerações sustenta-se, então, que as preferências pelos interesses humanos e a prioridade em serem levados em consideração, se fundamenta justamente nesta característica da distância social existente entre seres humanos, mas muito mais presente e visível no que se refere às relações com outras espécies. Essa distância social entre as espécies aumenta ainda mais se levarmos em conta outras considerações, tais como as limitações e propensões sócio psicológicas para identificação empática, além, também, do potencial para o relacionamento recíproco que não existe por parte dos animais, mas apenas em humanos.

3.9 Análise das críticas contratualistas de Becker: a proximidade