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ITALO SVEVO, HOMEM MÚLTIPLO

No documento Zeno Cosini, uma identidade possível? (páginas 37-43)

Bond of Union (1956) Maurits Cornelis Escher

1.3 ITALO SVEVO, HOMEM MÚLTIPLO

É difícil se conhecer um homem ainda que tenhamos vivido junto a ele por longos anos.

Dostoievsky

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.

Fernando Pessoa

Svevo, em sua obra, pintou um homem cindido, fragmentado, múltiplo, um homem que busca seu autoconhecimento, enfim, um representante autêntico de sua época, do qual o próprio Svevo pode ser tomado como exemplo, uma vez que parece trazer consigo algumas características desse “novo” homem, entre elas, a multiplicidade, da qual discorreremos na seqüência.

O escritor triestino sempre viveu entre fronteiras, segundo Fabio Vittorini, de dois ou mais mundos diferentes e, de certa maneira, contrastantes: geopolíticos (Áustria e Itália), sócio-culturais (o comércio e a literatura), filosóficos (o positivismo e a psicanálise) e literários (o “sistema de Zola” e Joyce) (VITTORINI, 2004, p.1539). Svevo lançou um olhar “inédito” sobre eles, através de uma lente deformante e, ao mesmo tempo, corrosiva e sagaz. O dialogismo apresentou-se como uma constante em sua existência. De fato, ele sempre caminhou entre diferentes pólos e isso já fica evidenciado na escolha do nome com o qual ele se apresentará à sociedade. Ettore Schmitz, nome de batismo, o consagrará como comerciante de sucesso, Italo Svevo, nome artístico, o firmará como escritor. Assim, incluímos aos mundos visitados por nosso escritor a tênue fronteira entre a utilização de seu verdadeiro nome e de seu pseudônimo.

Partindo de sua duplicidade geopolítica, encontramos a raiz da mesma, possivelmente, em sua cidade natal, Trieste. Esta faz fronteira com a Áustria e com a Eslovênia, sendo que pertencera ao Império Austro-Húngaro, do qual era o principal porto. Nessa época, Trieste, de acordo com Ramos, possuía um substrato cultural mais austríaco que italiano, visto que o

território ainda era submisso a Viena (RAMOS, 2001, p.25).

Tal cidade constituiu-se em uma espécie de palco onde “conviveram” grandes confluências étnicas, lingüísticas, culturais, em que todas se misturavam, fundindo-se por vezes. Essa “caldeira” de raças e civilizações contribuiu na formação e composição dessa cidade “dialógica” (LUNETTA, 1976, p.18).

De acordo com Elio Apih, a época do nascimento, bem como da morte de Svevo incorrem exatamente com o advento e com a dissociação das instituições liberais de sua Trieste que, inicialmente, vive sob o domínio austríaco, sendo tardiamente anexada ao território italiano. (APIH, 1988, p.11). Dividido entre duas culturas, a alemã e a italiana, intrínsecas à sua formação, ele optou por viver as duas. Isso ficou bem claro na escolha de seu terceiro pseudônimo, Italo Svevo, em que vêm homenageadas suas duas “nações”.

Nascido Ettore Schmitz, optou por utilizar artisticamente um nom de plume. O crítico Paolo Puppa defende que Svevo deveria assumir um pseudônimo, enquanto não fosse “aceito” no seio da Bolsa de Valores (Tergesteo) (PUPPA, 1995, p.34). Sabe-se que o escritor triestino fez uso de três pseudônimos durante sua vida, firmando-se artisticamente com o terceiro.

O uso de um segundo nome, de acordo com Puppa

denuncia uma relação perturbada com a paternidade, tanto que a mudança de sobrenome poderia coincidir com um parricídio pacífico, veja os estudos de Starobinski, eliminando o genitor da própria identidade! E, além do mais, na história das instituições dos registros de nascimento, tal gesto é permitido às mulheres e/ou artistas. Conseqüentemente, escolher um outro nome confere à atividade pela qual se realiza esta escolha um caráter sinistro, transgressivo e contemporaneamente, no caso do escritor, libera-se uma explícita componente feminina12. (PUPPA, 1995, p.34, tradução nossa)

Não pretendemos nos enveredar pelas questões edipianas em torno dos pseudônimos de Svevo. Nossa intenção é apenas demonstrar que o uso destes constitui em mais um

instrumento para, de certa forma, reforçar a premissa de que nosso escritor, assim como seu personagem Zeno, passou a vida equilibrando-se entre dois pólos, entre dois “extremos”, justificando daí sua multiplicidade.

Seu primeiro pseudônimo data da adolescência, época em que o futuro escritor almejava tornar-se ator. Tal desejo secreto fora confessado ao irmão predileto, Elio. Assim, nas primeiras manifestações dramatúrgicas, ele optou por usar o nom de plume Erode, personagem autoritário no imaginário antigo (PUPPA, 1995, pp.34-5). O segundo, Ettore Samagli, foi usado para assinar seu primeiro artigo, durante o aprendizado juvenil, como colaborador do jornal L’Indipendente. Cabe lembrar que esse pseudônimo foi usado, posteriormente, para nomear o protagonista do conto Una burla riuscita.

O terceiro e mais conhecido pseudônimo, que lhe consagraria como escritor, foi Italo Svevo. A escolha do mesmo ocorreu como uma maneira de o escritor homenagear sua dupla formação cultural. Assim, Italo representaria seu lado italiano e Svevo, o alemão. O pseudônimo também foi escolhido como uma medida preventiva em função de questões políticas, uma vez que os fascistas de Benito Mussolini haviam tomado o poder. Svevo, contudo, atribuiu tal escolha em função do papel de sua Trieste naquela época, vejamos:

Para compreender a razão de um pseudônimo que parece querer irmanar a raça italiana e a germânica, é preciso ter presente a função que, há quase dois séculos, Trieste vem exercendo na Porta Oriental da Itália: função de cadinho assimilador de elementos heterogêneos que o comércio e a dominação atraíram para a velha cidade latina. O avô de Italo foi funcionário imperial em Treviso, onde se casou com uma italiana. Seu pai, que viveu em Trieste, considerou-se, portanto, italiano e casou-se com uma italiana, com quem teve quatro filhas e quatro filhos. Ao seu pseudônimo, “Italo Svevo”, foi induzido não pelos seus longínquos ancestrais alemães, mas pela estadia prolongada na Alemanha, quando adolescente13. (LUNETTA, 1976, pp.33-4, tradução nossa)

Constituindo-se em um cenário múltiplo e cosmopolita, Trieste, que só em 1918 foi anexada à Itália, abrigou em si o signo da diversidade, da multiplicidade, importante por determinar a personalidade de nosso escritor, o qual, como já acenado, vivenciou a duplicidade dos mundos sócio-culturais, oscilando entre as atividades comercias e a literatura.

A propósito do trabalho como comerciante, Paolo Puppa ressalta que Svevo empenhou-se, exaustivamente, na construção de uma identidade como rico comerciante em uma progressiva integração junto à Bolsa de Valores (PUPPA, 1995, p. 33).

Para Micaela Pretolani Claar, o “dialogismo” (comerciante e escritor) formaria em Svevo o que ela chama de dupla “alma”, em que coexistem dois personagens diferentes: o industrial triestino, formado em um colégio alemão, voltado às atividades comerciais e que trabalhou por muitos anos no banco e depois na fábrica do sogro; e o escritor italiano, apaixonado e fiel à sua vocação literária, que escreve romances mesmo sem ninguém ler, confiando à caneta a tarefa de analisar a sua vida (CLAAR, 1986, p.101). Para Claar, é essa dupla “alma” que garante a originalidade de Svevo.

A intensidade com que ele sempre se entregou às experiências, vivendo incessantemente no tênue “limite” de toda empreitada realizada, o tornou um respeitado e eficiente homem de negócios e, posteriormente, um dos maiores escritores do século XX. Atualmente, Svevo é considerado, segundo dados estatísticos publicados no suplemento literário Tuttolibri, do jornal La Stampa, de Turim, o mais importante escritor italiano do século XX. Em um plebiscito, realizado entre os leitores do jornal italiano, o romance A

consciência de Zeno, de Italo Svevo, foi escolhido com 3059 votos como o livro mais

importante do século passado (CASTRO, 1985, p.8).

Em sua arte, podemos apreender a confluência de várias correntes filosóficas e literárias. Leitor atento e interessado, Svevo sempre se entregou à leitura dos grandes nomes da literatura, ciência e filosofia, entre eles Schopenhauer, Darwin, Nietzsche, Freud, Tchecóv, Marx, Dostoevsky, além dos grandes romancistas franceses, como Zola. De acordo com Micaela Pretolani Claar, para entender e “emoldurar” o nascimento e o crescimento de sua obra literária, é necessário aproximá-lo aos grandes escritores europeus que influenciaram as

novas formas da narrativa do século XX: Proust, Joyce, Musil e Kafka (CLAAR, 1986, pp.102-3).

Svevo serviu-se da ideologia dos grandes pensadores para perscrutar e interrogar o caráter do homem de seu tempo. Cada escritor ou filósofo teve participação especial na constituição de sua Literatura. Assim, conforme Claar, podemos dizer que

Schopenhauer acentuará a sua congênita concessão pessimista da vida, sugerindo-lhe os meios para teorizar e exaltar a “inaptidão”; Darwin oferecerá a sua atenção e a sua necessidade de clareza, a teoria científica da evolução da espécie; Marx, por sua vez, lhe colocará a disposição as novas definições da sociedade, do trabalho e da luta de classe e Freud, finalmente, lhe dará os instrumentos para uma investigação científica no mundo do inconsciente14. (CLAAR, 1986, P.104, tradução nossa)

Mesmo bebendo dessas fontes, Svevo conseguiu imprimir à sua obra um caráter de autonomia em relação a elas. Isso porque mesclou essas teorias à sua visão pessoal, reelaborando-as e reinventando-as com seu talento de literato.

Svevo absorveu do legado desses estudiosos o que mais lhe interessava. De Schopenhauer, herdou não só o pessimismo, mas também a consciência de que a ambigüidade comportamental do homem não permite determiná-lo cientificamente.

A leitura de Marx, cuja temática de integração social ultrapassou o nível político, ganhando valor existencial e universal, foi essencial na visão do escritor triestino sobre a crise vivida pela burguesia, a qual se identificava com a crise do homem moderno.

Já através da teoria de Darwin, de acordo com Matteo Palumbo, Svevo extraiu uma característica determinante para sua obra, a representação das relações interpessoais como competitividade e luta. A propósito, seu primeiro conto, escrito em 1889, chama-se Una lotta. Como conseqüência dessa luta, teríamos a divisão de seus personagens em fracos e fortes, sãos e moribundos, ineptos e capazes, vitoriosos e derrotados (PALUMBO, 2007, pp.140-1).

A visão de Nietzsche sobre a gaia ciência e o niilismo fornecem a base para a representação de Zeno, em A consciência de Zeno, uma vez que permitiu ao protagonista

aprender a ouvir a música da negação da vontade, sem a lembrança da ascese (PALUMBO, 2007, p.149).

O ciclo dos principais filósofos que influenciaram nosso escritor termina com Sigmund Freud, de importância fundamental na tessitura de Zeno. Svevo, segundo Micaela Pretolani Claar, acreditava ter encontrado na teoria freudiana argumentos suficientes para explicar cientificamente o mundo interior do homem (CLAAR, 1986, p.111).

A psicanálise para ele, de acordo com Palumbo, transforma-se em um novo

fundamento de ceticismo, uma parte misteriosa do mundo, sem a qual não se sabe mais pensar15 (PALUMBO, 2007, p.150, tradução nossa). Freud

não lhe serve tanto porque prometa um tratamento à própria doença, uma cura individual impossível em uma “vida [...] contaminada até as raízes”, mas porque permite iluminar os escuros da subjetividade, e refletir sobre as razões, às vezes, misteriosas e inexplicáveis da qual dependem cada ação16. (PALUMBO, 2007, p.150, tradução nossa)

A teoria freudiana, certamente, foi importante por guiar Svevo pelos caminhos do inconsciente, como mais um meio de alcançar o conhecimento e entendimento do mais profundo “eu”, intrínseco ao homem; bem delineado em seu terceiro romance na figura do burguês Zeno Cosini, que representa o homem de sua época, homem que poderia ser o próprio Svevo. A esse propósito, parte da crítica chegou a levantar algumas hipóteses questionando se Zeno poderia ser o próprio Svevo. Será mesmo? Vejamos alguns pontos em comum entre ambos, na seqüência.

No documento Zeno Cosini, uma identidade possível? (páginas 37-43)