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1. OS ESTUDOS DA PERFORMANCE E O RITUAL

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Vimos que o desenvolvimento dos Estudos da Performance surgiu primeiramente nos Estados Unidos, com o Professor Richard Schechner. Um dos aspectos mais relevantes e surpreendentes deste novo campo de estudo foi a relação estabelecida entre a performance e as ciências sociais, com destaque nítido para a antropologia. Na verdade, os estudiosos da performance, neste âmbito académico, distanciaram-se dos Estudos Teatrais ou dos Estudos da Dança (campo que na verdade nunca viu profundo teórico desenvolvimento, quando comparado com outras áreas artísticas), o que seria uma aproximação legítima. Este, considero ser um dos aspectos mais questionáveis sobre todo o trabalho americano. O peso e influência das ciências sociais para a concepção, análise e teoria performativas, não terá ocupado um espaço pertencente menos a si e mais ao campo artístico? Terá o trabalho americano, manipulado de tal forma os estudos da performance, que hoje seja estranho não associá-los intrinsecamente às ciências sociais/antropologia? Seja qual for a nossa posição neste debate, a verdade é que depois de Schechner a visão e entendimento que temos de performance contemporânea não é mais a mesma. E se Schechner concedeu de facto

relevância aos estudos antropológicos para a teorização da performance artística contemporânea, não devemos esquecer o que a caracteriza a nível estético e formal. Um dos aspectos corresponde precisamente a um abandono da tradição teatral (quer para o teatro, quer para a dança), concedendo a predominância à cultura nativa, popular ou menos convencional da performance. Por exemplo, no âmbito do teatro e da dança houve um esforço por recuperar práticas e teorias que pareciam perdidas ou menosprezadas no estudo performativo. No teatro, porque a chave de todo o pensamento dominante era a literatura teatral. Na dança, a estética virtuosa da dança teatral. O ponto de viragem no contexto académico ocorre quando se abriu o leque de uma forma assumidamente transformadora para uma nova leitura da performance. Na verdade, parece-me que esta viragem tornar-se-ia inevitável, tantas foram as mudanças que precederam e originaram este novo rumo. E é esta inovação dos Estudos da Performance, como caracteriza Carlson (2009), acompanhada por um interesse pelas representações não convencionalmente teatrais, que de facto trouxe mais novidade para uma leitura diferente daquilo que se entendia por performance e que já se fazia experimentar por vários criadores.

Se Schechner recebeu influência de Turner, este está por outro lado ligado, no que respeita a conceitos, a Arnold Van Gennep, autor de Ritos de Passagem em 1909. De facto, se experimentarmos um caminho que retroceda temporalmente, verificamos que este antropólogo é precisamente um dos principais nomes que está na base de todo o estudo do ritual, que hoje é tido em conta para a compreensão da performance. Van Gennep debruçou-se, então, sobre os processos de transformação que ocorrem em comunidade, ou

seja, sobre os vários rituais relacionados com transição em momentos da vida nos quais se verificam mudanças sociais no indivíduo e que trazem, em grande maioria dos casos, consequências para a vida comunitária. Ora, o nascimento de uma criança, o casamento, a doença, guerra ou outra ocasião que de alguma forma proporcione alguma transformação individual ou colectiva, está muitas vezes sujeita a um momento de transição de um estado para outro, o que foi justamente o que deu origem à obra deste autor, a qual nomeou de ritos de passagem, intimamente ligados às práticas rituais. Van Gennep concluiu que, de facto, a prática ritual no acompanhamento da vida comunitária, serve como algo suavizante, no sentido em que tranquiliza de um modo formal e metódico, mudanças que poderiam ser dramáticas na construção da identidade (mais uma vez quer individual, quer colectiva). E a esta passagem de um estado para outro, o autor definiu por transposição da borderline, da fronteira. De facto, o autor desenvolve a ideia de fronteira, no sentido realmente espacial do termo, para explicar a importância das cerimónias, ou ritos, que levam o indivíduo ou comunidade de uma local para outro, comparando ainda esta transição a momentos como por exemplo a morte, em que, sob esta perspectiva, se passa de um mundo, para outro. Ainda os ritos de passagem são comparados ao conceito de nascer de novo, existente em algumas culturas religiosas, como até mesmo a cristã. A ideia de se passar de um estado social para outro corresponde à ideia de se morrer para um e nascer para o outro. O estudo de Van Gennep, como veremos posteriormente, conclui então os momentos cruciais destas transições que levam à edificação comunitária. A questão que aqui se levanta é a da legitimidade do potencial paralelismo entre os estudos de Van Gennep e os estudos performativos artísticos. Ou

seja, será na verdade coerente e legítimo aproximarmos de uma forma tão linear o ritual social com o momento artístico/performativo? Fischer-Lichte não só o concretiza, como vai mais longe. Na mesma obra, podemos identificar alguns conceitos que foram desenvolvidos no século XX, que encaminham a autora no processo de conceptualização tanto da performance, como do ritual nesta época, num percurso que os congrega. Foram conceitos e teorias que se desenvolveram num espaço de tempo, em que a performance dava os seus primeiros passos e que nos levam a reflectir sobre a ligação entre estes. Estes aspectos estão relacionados com três principais pontos que pude salientar: 1) a relação que se voltou a estabelecer entre os artistas e o público, através do