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Jacinto do Carmo Ferreira: a formação identitária de Lídia a partir da figura do avô

4. Aspectos do romance histórico contemporâneo em Estação das chuvas

4.1. Jacinto do Carmo Ferreira: a formação identitária de Lídia a partir da figura do avô

Quase da mesma forma como ocorre em Olga, em Estação das chuvas uma personagem secundária auxilia a personagem central no seu processo de desenvolvimento de personalidade. Trata- se do bisavô de Lídia, Jacinto do Carmo Ferreira. Ele que, quando Lídia era um bebê de colo, foi buscá-la na Chela. Este gesto, por si só, já pode ser interpretado como algo marcante. Certamente, quando Lídia em criança ficou sabendo disso, dera-se conta do quanto o seu avô a amava. E esse amor de Carmo Ferreira pela bisneta assemelhava-se ao amor dele próprio pelo seu país, pelo desejo de um dia vê-lo finalmente independente. Mas infelizmente, devido à brevidade da vida, Carmo Ferreira se foi sem ter o seu sonho – e o da maioria dos angolanos da época – realizado.

Numa recordação singular da fisionomia de seu avô, recordação essa convertida em poema, Lídia o descreve com as seguintes palavras:

Longas barbas alvas, desgrenhadas

As mãos sobre o peito, como aves assustadas. Assim eu te relembro, meu avô branco, irremediavelmente morto.

Faz-te tanta falta – sabes? – o velho

capacete de cortiça e o bengalim de soba (AGUALUSA, 2012, p. 19).

A imagem de Carmo Ferreira, descrita acima com certo ar de nostalgia, relaciona-se também à morte, que o havia levado fazia poucos meses. Bem antes disso, porém, ainda quando Lídia era criança, seu avô foi-lhe ensinando aos poucos o significado do termo “independência”. E o narrador, dando eco a sua própria voz como testemunha do amor de Lídia por Carmo Ferreira, descreve a ocasião em que

Lídia mostrou-me uma fotografia desta época. Foi tirada num domingo, com certeza, isso é uma coisa que se sente logo. Possivelmente domingo de Páscoa, pois Dona Fina aparece vestida de panos lilazes, como era tradição. No Ano Novo as bessanganas trajavam panos brancos, na Páscoa, panos lilazes, no Quinze de Agosto, um tecido chamado barra-de- manteiga, branco, com barras cor-de-rosa ou azuis. [...] Ao centro da fotografia, sentado num cadeirão de vime, está Jacinto do Carmo Ferreira. É um pouco mais gordo do que eu o imaginara mas ainda assim impressiona. Tem o capacete colonial no regaço, uma espessa cabeleira branca, que se mistura com a barba (AGUALUSA, 2012, p. 30-31).

Na descrição dessa fotografia de Carmo Ferreira já deparamos com um símbolo alegórico da causa independentista: o capacete oficial, o mesmo que se encontra descrito no poema anteriormente citado. Tal objeto emprestava-lhe aparência de um velho soldado ou, de outra maneira, de alguém engajado em alguma causa revolucionária. No entanto, o Carmo Ferreira da foto era apenas um esboço do homem cuja obsessão pela independência de seu país tornava-se o mote da maioria de suas conversas. Notamos isso, inclusive, em outras passagens de Estação das chuvas, quando se manifestava, ora aberta ora discretamente, o seu gênio independentista. Numa dessas passagens, Carmo Ferreira encontra-se na companhia de um amigo seu, a quem Lídia chama de “Pai Natal”, como é chamado em Angola o Papai Noel. E tendo dormido na casa desse amigo do avô, no outro dia

Lídia acordou estremunhada. O avô estava junto dela e sorria-lhe. O Pai Natal foi acompanhá- los à estação e quando chegaram meteu-lhe na mão um pacotinho com caramelos. Ele e o avô abraçaram-se demoradamente. Por fim Carmo Ferreira separou-se, apertou a cabeça do velho entre as grossas mãos e disse-lhe: “Coragem, esta terra ainda ser nossa” (AGUALUSA, 2012, p. 34-35).

Essa recordação, como a maioria das lembranças relacionadas a seu avô e, ademais, aos que o visitavam nas Ingombotas, revela por si só o ânimo com que era tratada a questão independentista angolana ainda na primeira metade do século XX. Por falar nas relações de Carmo Ferreira com a sociedade da época, as visitas que ele recebia tratavam quase que exclusivamente desse assunto. Eram homens de diferentes origens, entre os quais eram da predileção do velho os cônegos Frota (padrinho de Lídia) e Manuel das Neves e o Dr. Aires de Menezes, santomense que foi um dos primeiros médicos a exercer o ofício em Angola. É sobre este último, aliás, que incorrem atitudes racistas por parte daqueles que Agualusa nomeia de “cangundos”30.

Haveriam de se passar ainda alguns anos – no começo dos quais Lídia separou-se de seu avô em definitivo para começar a trilhar sua carreira universitária entre Lisboa e Berlim, passando a se comunicar com ele, nesse meio-tempo, apenas por meio de cartas – até ela se dar conta da dimensão da representatividade de seu avô em relação às questões nacionais. Ela encontrava-se, entrementes, em Portugal, a escrever sua tese sobre o filósofo guineense António Guilherme Amo, de modo que

Carmo Ferreira escrevia-lhe todas as semanas. Ao princípio eram cartas muito formais, apenas com notícias da família e dos amigos; pouco a pouco, porém, foram-se tornando mais próximas, mais íntimas, cheias de nostalgia e de uma espécie de urgência que ela não sabia definir.

– Hoje sei – disse-me Lídia – que ele estava a morrer. As últimas cartas pareciam fragmentos de um diário. Nelas o velho falava sobretudo dos seus ideais: – Em cada carta me repetia que eu era angolana, e que não podia desiludir aqueles que confiavam em mim (AGUALUSA, 2012, p. 59).

A última fala dessa citação resume bem a ideia que Carmo Ferreira, malgrado Lídia já fosse adulta, queria lhe incutir na mente: que nas suas veias corria sangue angolano e que ela nunca devia esquecer-se disto. Além disso, havia a responsabilidade de, mesmo encontrando-se na terra de seus colonizadores, Lídia manter-se fiel àqueles que nela confiavam – ou melhor, seus compatriotas, os quais ainda guerreavam contra Portugal e seus aliados pela independência do país.

E a seguir, não muito depois da chegada de Lídia a Portugal,

Jacinto do Carmo Ferreira morreu [...] já centenário. Lídia recebeu a notícia no frio de Lisboa. Tivesse sido em Luanda e por certo lhe magoaria menos. Mas foi em Lisboa e o céu estava sujo. O ar segregava uma chuva viscosa e demorada. [...] Lídia arrumou as suas coisas, vendeu tudo aquilo que não podia levar, juntou todo o dinheiro e comprou uma passagem

para Berlim. Foi-se embora sem se despedir de ninguém. - Foi uma decisão súbita – explicou-me –, eu não estava em mim. Com a morte do meu avô

senti que o chão me faltava embaixo dos pés. Sentia que a vida não fazia sentido. Estava muito confusa e, para complicar tudo, o Mário tinha-se zangado comigo (AGULAUSA, 2012, p. 60).

Vê-se logo o quanto a morte do bisavô abateu Lídia. Ela, que se tinha mudado para Portugal no intuito de se aprofundar nos seus estudos, teve de mudar-se novamente, talvez na tentativa de encontrar, na Alemanha, algum paliativo para a dor da perda. Se bem que nesse período estivesse ela engajada na discussão a respeito do que seria a negritude, mais especificamente em matéria de poesia. Daí a menção a Mário Pinto de Andrade, com quem discordava acerca desse assunto. E tendo em conta que ela mesma, para não falar em seu avô, era mais crioula que propriamente negra, tentou com este mesmo argumento embasar sua opinião. Como já apontamos aqui, muito dessa sua concepção devia conter o reflexo de seu avô, da sua mãe e dos demais parentes distantes seus, cuja negritude constituía não o elemento único de suas etnias, mas um dos elementos. Além disso, como convém mencionar outra vez, a influência de Carmo Ferreira opera-se também no âmbito do desapontamento de Lídia quanto à Guerra Civil. Pois o objetivo da independência, além de fazer com que Angola se libertasse definitivamente dos grilhões portugueses, era promover a paz entre os povos nativos, favorecendo, ademais, o progresso da nação, a qual devia unificar-se e não manter-se severamente dividida entre partidos.

5. O papel da mulher nos movimentos revolucionários do Brasil e de Angola: os casos de Olga