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POETA-PROFETA

JANDIRA, A MULHER

Bem pode o mundo dormir

Na sombra de uma mulher.

“Uma órfã adota a humanidade”, Murilo Mendes.

A figura da mulher, revestida de mistério e força geradora, é emblemática na obra de Murilo Mendes. O poeta percebe-se inversamente através da amada e configura-se, assim, o duplo – o ser andrógino, estudado anteriormente. No entanto, em outros momentos, a relação pode estar muito além do longo abraço dos amantes e a mulher parece substituir sozinha a própria divindade, como num poema de O visionário:

Jandira

O mundo começava nos seios de Jandira. Depois surgiram outras peças da criação: Surgiram os cabelos para curtir o corpo,

(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos). E surgiram sereias da garganta de Jandira:

O ar inteirinho ficou rodeado de sons Mas palpáveis do que pássaros. E as antenas das mãos de Jandira

Captavam objetos animados, inanimados, Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.

E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente, Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos. E Jandira apareceu inteiriça,

De cabeça aos pés.

Todas as partes do mecanismo tinham importância. E a moça apareceu com o cortejo de seu pai,

De sua mãe, de seus irmãos.

Eles é que obedecem os sinais de Jandira

Crescendo na vida em graça, beleza, violência.

Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira E eram precipitados nas delícias do inferno.

Eles jogavam por causa de Jandira. E Jandira não tinha pedido coisa alguma. E vieram retratos no jornal

E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira. Certos namorados viviam e morriam

Por causa de um detalhe de Jandira.

Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.

Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira. E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas; Não caía nem um fio,

Nem ela os aparava.

E sua boca era um disco vermelho Tal qual um sol mirim.

Em roda do cheiro de Jandira A família andava tonta.

As visitas tropeçavam nas conversações Por causa de Jandira.

E um padre na missa

Esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira. E Jandira se casou

E seu corpo inaugurou uma vida nova, Apareceram ritmos que estavam de reserva,

Combinações de movimento entre as ancas e os seios.

À sombra de seu corpo nasceram quatro meninas que repetem As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo. E o marido de Jandira

Morreu na epidemia de gripe espanhola.

E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela. Desde o terceiro dia o marido

Fez um grande esforço para ressuscitar: Não se conforma, no quarto escuro onde está, Que Jandira viva sozinha,

Que os seios, a cabeleira dela trastornem a cidade E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira

Inda parecem mais velhas do que ela. E Jandira não morre,

Espera que os clarins do juízo final Venham chamar seu corpo,

Mas eles não vêm.

E mesmo que venham, o corpo de Jandira

Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.

O poema remete ao Gênesis bíblico: “O mundo começava nos seios de Jandira”, o primeiro verso deixa entrever que ela será a causa universal das ações. O ato da criação será recontado a partir do corpo de uma mulher e serão acrescentados elementos novos ao mito. Surgiram o céu e a Terra (componentes básicos da criação, substituídos no poema pelos “seios”) e, em seguida, a divindade começa a ornamentar a criação: “Depois surgiram outras peças da criação: / Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,”. O braço esquerdo de Jandira algumas vezes “desaparecia no caos” e isso também deixa entrever o aspecto irreal e mítico da mulher. Jandira está na fronteira entre o material e o espiritual, freqüenta os dois mundos.

Ela é uma fonte de coisas fantásticas, uma fonte de vida. Em vez de palavras, saem “sereias da garganta de Jandira:”. Ou ainda, os “sons”, que saem de sua boca, ganham força e tocam a realidade automaticamente. As palavras se tornam palpáveis, porque nela está o verbo divino: “o ar inteirinho ficou rodeado de sons / Mas palpáveis do que pássaros.”

As mãos de Jandira têm “antenas”, percebem a vibração dos seres “animados” e “inanimados” – nem mesmo os cegos captam as coisas com tanta eficiência com as mãos. A mulher revela-se hipersensória: “rosa” (mistério, símbolo iniciático), “peixe” (elemento aquático) ou “máquina” (fruto da inteligência humana) passam a compor uma mesma categoria totalitária e são alvo das energias de Jandira. A mulher surge, desta forma, em contato com todas as forças do cosmo. Domina o mistério através da rosa, domina o elemento aquático através do peixe e, como se não bastasse, domina também a máquina. Ela coloca-se como o máximo, Jandira é absoluta e onipotente. E quando Jandira penteia a sua voluptuosa cabeleira, os mortos acordam. O ato de pentear o cabelo invoca o sentido de ordem, tão valorizado na poética muriliana e a ressurreição dos mortos remete às promessas da Bíblia.

A criação se conclui: “Depois o mundo desvendou-se completamente, [...] / E Jandira apareceu inteiriça, / De cabeça ao pés / Todas as partes do mecanismo tinham importância.” A revelação do mundo é a pretensão tanto da ciência, quanto da magia – trata-se, assim, da epifania presidida por Jandira. Esta passagem do poema retoma também o Apocalipse: “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas;”.164

“Todas as partes do mecanismo [do corpo de Jandira] tinham importância.” Ela guarda em si a totalidade e nela todas as coisas unem-se num mesmo fim. Ao mesmo tempo que Jandira traz algo epifânico, ela está inserida na comunidade humana: “E a moça apareceu com o cortejo de seu pai, / De sua mãe, de seus irmãos. / Eles é que obedecem os sinais de

164

A Bíblia de Jerusalém. Apocalipse, cap. 12, v. 1. Op. cit., p. 2314.

Jandira”. Depois de seu aparecimento, ela (como o Cristo: “E o menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele.”165) foi “Crescendo na vida em graça, beleza, violência.” Como se percebe, a mulher traz também a semente do mal: “violência”. A graça e a beleza em Jandira alcançam o seu contrário, o avesso das coisas. Ela é princípio da construção e semente da destruição:

Os enamorados passavam, cheiravam os seios de Jandira E eram precipitados nas delícias do inferno.

Eles jogavam por causa de Jandira. E Jandira não tinha pedido coisa alguma. E vieram retratos no jornal

E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira. Certos namorados viviam e morriam

Por causa de um detalhe de Jandira.

Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.

Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.

A sedução sempre esteve relacionada ao mal,166 em “Jandira” isto não será diferente. Diante dela, uma Eva-Lilith-Pandora moderna, os homens se precipitarão “nas delícias do inferno”. Jandira não pediu coisa alguma e se tem alguma culpa de tudo isso está apenas no fato de ser mulher. Passam-se gerações e gerações e os homens e mulheres revivem o mito do primeiro homem e da primeira mulher na concepção da poética de Murilo Mendes. Os homens viciam-se no jogo por culpa da bela Jandira, ela também influenciará um meio de comunicação de massa: o jornal, “E vieram retratos no jornal.” Ela é uma mulher das multidões e surge estampada nos jornais através de fotos provocantes como as das pin-ups – as garotas do calendário, surgidas nos anos 40. Por causa dela também “apareceram cadáveres boiando” e isto confirma mais ainda sua ligação com o mal. Como a Salomé de Wilde, Jandirá é a causa do amor-vida e da morte: “Certos namorados viviam e morriam/ Por causa de um detalhe de Jandira.”

165

Id., Lucas, cap. 2, v. 40, p. 1932.

166BAUDRILLARD, Jean. A sedução. 2.ed. Campinas: Papirus, 1992, p.5: “Um destino indelével pesa sobre a

sedução. Para a religião, ela foi a estratégia do diabo, quer tenha sido feiticeira ou amorosa. A sedução é sempre a do mal.”

IV

ISMAEL E MURILO