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1 DANY LAFERRIÈRE, UM ESCRITOR NO EXÍLIO

1.3 JE SUIS UN ÉCRIVAIN JAPONAIS

Evidentemente, da mesma maneira que as situações mais incômodas ganham destaque nas obras de Laferrière, o que não poderia ser diferente na obra que analisamos neste estudo. Em Je suis un écrivain Japonais há um embate constante com a questão do nacional e da formação de identidade. Ela expressa constantemente perspectivas que nos colocam em lugar de questionar a real validação deste tipo de rótulo. Com a aceitação do editor, iniciará a jornada para a escritura da obra e a jornada de se tornar um escritor japonês.

A obra descreve a trajetória de um narrador, não nomeado, mas cujas características se assemelham às de Dany Laferrière, indicando uma possível vinculação biográfica com o autor inicialmente. Essa possibilidade é reforçada pelo primeiro capítulo da obra, em que o narrador apresenta a escolha do título de sua nova obra ao seu editor: “Je suis un écrivain Japonais”. É precisamente o mesmo nome da obra que temos em mãos, o que nos leva a esperar que a história seja um relato sobre a confecção da obra em si. “Je suis un écrivain Japonais. Bref silence. Large sourire. Vendu! On signe le contrat: 10000 euros pour cinq petits mots”20 (LAFERRIÈRE, 2008a, p. 13).

19 Laferrière afirma em entrevista : “Moi, je ne fais jamais d’humour, c’est la situation qui dégage son ironie".

20 Eu sou um escritor japonês. Breve silêncio. Sorriso largo. Vendido! Nós assinamos o contrato: 10000 euros por cinco pequenas palavras.

O narrador realmente segue nessa direção, porém de uma maneira não convencional e não esperada. Ele caminha em um entre mundos, entre o ser e o não ser, entre a obra inacabada e a sua escritura. Nesse percurso, desenvolve experiências que lhe proporcionam conhecer a cultura japonesa e vivenciar o

“ser japonês”, que o narrador afirma não conhecer, e lançar suas percepções sobre essas vivências. De maneira geral, o caminho de escritura do livro é o caminho para o tornar-se escritor japonês. Mas descobrimos ao longo da obra que o faz de maneira diferente da esperada, surpreendendo-nos: o narrador afirma, afinal, “C’est moi le Japon”21 (LAFERRIÈRE, 2008a, p.131). Ele segue, na verdade, o caminho para criar uma relação consigo e com seu próprio imaginário de Japão que culminam na criação da obra.

Para tanto, ele irá acompanhar um grupo musical composto por sete garotas japonesas. A líder delas é Midori, a cantora controversa que mostra um comportamento muito diverso do que seria o tradicional comportamento japonês, controlado e introvertido. As demais se organizam em torno de Midori, cada uma com seu jeito e seus interesses próprios, mas sempre dependentes dessa relação. O grupo também é acompanhado por Takashi, o fotógrafo, que funciona como o ponto de imersão no grupo e de explicação para as relações que acontecem entre as suas integrantes, inserindo o narrador naquele meio.

Après le spectacle, j’ai suivi Midori et as bande à un vernissage sur la rue Sherbrooke, en face du musée des Beaux-Arts. Juste des filles:

Eiko, Fumi, Hideko, Noriko, Tomo, Haruki. Les filles de la cour de la princesse Midori. Et un photographe androgyne du nom Takashi – si plat qu’on dirait un briquet entre les mains de Kate Moss22.

(LAFERRIÈRE, 2008a, p. 48)

Com o desenvolvimento do enredo, o narrador acompanha a trajetória da banda de Midori e seus problemas pessoais, apresentando-as como pessoas comuns, que possuem seus conflitos internos e externos, seus desejos, vontades e ambições, mostrando-as cada vez mais como indivíduos que se desenvolvem na relação entre si e como grupo, mas mantendo suas individualidades. A cada novo fato nos aproximamos mais delas.

21 Sou eu o Japão.

22 Depois do espetáculo eu segui Midori e sua banda a um vernissage na rua Sherbrooke, em frente ao Museu de Belas Artes. Somente as garotas: Eiko, Fumi, Hideko, Noriko, Tomo, Haruki. As garotas da corte da princesa Midori. E um fotógrafo andrógino chamado Takashi – tão plano que pareceria um isqueiro entre as mãos de Kate Moss.

O narrador usa como metáfora para essa aproximação a câmera. Ele filma as situações que vê em sua cabeça: “Je les filme dans ma tête. (…) Un petit film noir et blanc. Distant, discret, je filme de mon coin"23 (LAFERRIÈRE, 2008a, p.49). Sem participar das conversas, ele suplementando as informações que não possui com as suas percepções. Sua proposta é de trazer o sentimento à tona, e não retratar a situação simplesmente. É o que nos faz humanos, afinal.

É como vimos anteriormente nesta introdução, não importa necessariamente o que aconteceu de fato para ele, mas o quanto é possível reproduzir a sensação em palavras.

Durante a trajetória da obra, ele aborda diversos clichês comuns (não só japoneses) e os descontrói – como a aparente igualdade entre todos os asiáticos (LAFERRIÈRE, 2008a, p. 20-22), o poder e o controle do vodu ao transformar Björk em boneca vodu (LAFERRIÈRE, 2008a, p. 41-45), o negro e seu estigma de criminoso (LAFERRIÈRE, 2008a, p. 117-122) – e expõe a existência de mais características do Japão que apenas aquelas tradicionais. As suas colocações desafiam o tradicionalismo e o preconceito sobre essas questões.

Outro ponto crucial no desenvolvimento da obra é a ideia da trajetória do autor para a confecção da obra. Laferrière escolhe um autor japonês, Bashô, e sua obra La Route étroite vers les districts du nord24, e segue viagem junto com ele – "Je me revois en train de marcher dans les pas de Basho"25 (LAFERRIÈRE, 2008a, p. 204). Bashô é seu companheiro de viagem, e ao mesmo tempo em que acompanha as peripécias do poeta japonês em seu intento de ver o pôr-do-sol no Norte do Japão ao final de sua viagem, o narrador faz a própria peregrinação em busca dos elementos que o ajudarão a escrever a obra.

Nesse intento, a sua busca, por mais que, como afirma o narrador, seja um intento pessoal, uma criação do Japão para ele mesmo, a repercussão que ela causa em face dos pré-conceitos das demais pessoas sobre a ideia de nacionalidade e sobre o direito a ela (inclusive o direito de afirmação sobre ela) o colocarão em uma situação de reflexão sobre o assunto (LAFERRIÈRE, 2008a, p. 16-17).

23 Eu as filmo em minha cabeça. (…) Um pequeno filme em preto e branco. Distante, discreto, e filmo do meu canto.

24 O caminho estreito para o longínquo norte.

25 Eu me vejo novamente andando nos passos de Basho.

Ao progredir na história, o narrador continua com seu intento de se tornar um escritor japonês, o que chama a atenção de um funcionário da embaixada japonesa, o sr. Tanizaki. Este, ao saber da intenção do narrador de escrever um livro com tal título, gosta da ideia de estrangeiros quererem escrever sobre o Japão, querendo se tornar japoneses, mas ao mesmo tempo passa a procurar o narrador de forma a tentar dirigi-lo a ter uma perspectiva específica do Japão, a direcioná-lo para que o discurso sobre o Japão seja aquele que eles acham mais adequado. O narrador se protege dessas investidas, para não perder o controle de seu livro.

J’ai l’impression que si je leur laisse la moindre autorité sur mon travail, serait ce sur une virgule, ils écriront le livre à ma place. Je sens derrière toute cette obséquisité une volonté de fer. Pour une raison quelconque, ils voudraient contrôler ce livre.26

(LAFERRIÈRE, 2008a, p. 94).

Ou seja, a rigidez na maneira em que se deve olhar para esse Japão marca a rigidez com que a ideia de nação é imposta. A proposta do narrador em inventar um Japão só seu, ultrapassa essa ideia comunitária. Outros pontos, nesse sentido, também chamam a atenção, como a passagem sobre o escritor ser negro, o que gera uma rejeição de alguns japoneses, segundo o sr. Tanizaki.

Isso nos remete novamente à proposta de uma nação com valores tão estanques que não é possível que qualquer pessoa faça parte dela. Valores que só poderiam ser reproduzidos por quem já está dentro dela.

Esses aspectos vão sendo problematizados dentro da obra, juntamente com passagens que parecem, por vezes, descompassadas da história, nos fazendo refletir sobre o quão arraigadas estão certas concepções, o quanto é necessário duvidar, por vezes, das nossas próprias posições, de pensar sobre a validade delas.

Um exemplo dessas passagens é uma sobre a repercussão da obra no Japão, em que jovens japoneses ligam para o narrador em uma aposta para ver quanto tempo demora para ele falar algo. Neste momento desligam o telefone.

O que o narrador mostra para o leitor é a existência de uma relação global entre

26 Tenho a impressão de que se eu lhes der a mínima autoridade sobre meu trabalho, seja sobre uma vírgula, eles escreverão o livro no meu lugar. Sinto por trás de toda essa obsequiosidade uma vontade de ferro. Por uma razão qualquer, eles querem controlar este livro.

as personagens. O narrador sequer precisou sair do Japão para alcançar os japoneses (e vice-versa).

As reviravoltas da obra acontecem após a entrada do narrador na relação com a banda, mudando o espectro de relações entre elas. A mudança principal acontece no comportamento de Midori, o que acaba acarretando a mudança das demais componentes da banda à sua volta. Uma delas, Noriko, chega a cometer suicídio, mas não sem antes proporcionar a cena de sexo na banheira com o narrador. Nessa cena, a complexa situação psicológica de percepção das relações entre as diversas personagens, narrador inclusive, permite, durante a cena, a transposição das personagens, transformando o narrador em Noriko e Noriko em Midori. Após isso, ela se joga pela janela e se suicida (LAFERRIÈRE, 2008a, p.74-79).

A reverberação dessa passagem culmina em uma cena em que policiais entram no apartamento do narrador, a procura de drogas, convencidos de que o narrador teria, na verdade, matado Noriko por causa delas. Não achando nada, só lhes resta tentar tirar algum tipo de informação do narrador com base em ameaças. Ao final, não conseguem nada (LAFERRIÈRE, 2008a, p.117-122).

Esta passagem é marcante por ser a única que aborda mais diretamente o problema do negro como marginalizado e estereotipado.

Outro ponto importante sobre o qual a obra nos faz refletir é sobre a própria atividade de escrita e sobre o conceito de autoficção e do seu pacto de leitura. A partir da abordagem do processo de escrita de uma obra homônima com a que temos em mãos, como indicamos no início deste item, somos levados a pensar que a obra será sobre o seu processo de confecção, no entanto, trata-se de uma apretrata-sentação de experiências que o autor pertrata-segue com o intuito de fazê-lo capaz de escrever tal obra. O tipo de relato com viés autobiográfico, como se uma parte da vida do autor da obra fosse narrada, nos remete a um relato da verdade. Porém, o mais impactante nesse sentido é que, em um dos últimos capítulos do livro, o narrador descontrói essa expectativa indicando a criação romanceada da obra, com personagens inventadas. Nos parece que a trajetória para a confecção do livro foi tão virtual quanto a trajetória que o narrador faz ao ler Bashô, acompanhado-o durante a sua jornada. Analisaremos mais a fundo esta operação no capítulo final deste estudo.

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