• Nenhum resultado encontrado

Jeanne e Ivenes: Complexos Autônomos ou Personificação do Inconsciente?

No documento Arquétipos, Psicanálise e Reencarnação (páginas 86-90)

Concluiremos este artigo analisando um outro elemento comum tanto a Walkiria quanto a S.W. e que nos dá o ensejo de explicarmos, na prática, o que entendemos

sob o conceito de complexo autônomo e diferenciá-lo de uma manifestação do Self.

Tanto Jeanne, quanto Ivenes foram identificadas prontamente como sendo não espíritos de mortos, mas como elementos da psique das respectivas comunicantes. No caso de Jeanne, havia um elevado grau de sofrimento atribuído à sua existência que poderia explicar a atitude depressiva com ideação suicida de Walkiria, bem como uma rejeição inconsciente à figura do marido que, conforme seu relato, apresentava características fisionômicas extremamente similares ao marido de Jeanne, o pintor Amadeo

Modigliani. Mantendo o mesmo rigor analítico, poderíamos atribuir à Jeanne, dentro de uma atitude clássica da psicanálise, a finalidade inconsciente de isolar em um elemento personalístico único todos os conteúdos depressivos de Walkiria e, desta forma, possibilitar um destacamento desta depressão para uma área psíquica isolada do ego. Estes deslocamentos têm, em termos práticos, a mesma finalidade que o mecanismo de projeção externa, ou seja, têm a função de possibilitar ao ego lidar com uma energia intrapsíquica sem ser inundado por ela. E em Imaginação Ativa este é o recurso sugerido ao paciente a fim de que ele possa lidar com maior objetividade exatamente com medos, angústias, raivas, frustrações ou qualquer outro conteúdo inconsciente que perturbe sua funcionalidade objetiva ou subjetiva. Dentre os analistas, dizemos, então, que a Imaginação Ativa é uma espécie de ‘psicose controlada’, pois uma vez que o sentimento seja configurado perante a consciência de forma a destacar-se dela, possibilitará à personalidade a oportunidade de ir transformando e

assimilando gradualmente seu conteúdo. O objetivo é trabalhar gradualmente o

conflito até que surja entre a atitude consciente e a atitude inconsciente uma espécie de ponto medial, que inclua e transcenda a polarização antagônica que existia até então.

Dentro deste conceito, poderíamos ver em Jeanne exatamente uma tentativa

espontânea do inconsciente de Walkiria de lhe proporcionar esta integração e de lidar com sua atitude depressiva sem a assumir egoicamente, mas como elemento

constituinte da totalidade de sua psique. Esta constelação de sentimentos e emoções na forma de personagens ocorre com todos nós durante nossos sonhos, uma vez que os sujeitos que aparecem neles são parcelas de nosso inconsciente ‘personalizadas’ em figuras que nos possibilitarão, se devidamente analisadas, ampliar o conhecimento de nós mesmos sem que precisemos projetar estes conteúdos nas pessoas que nos

cercam. E, na hipótese de Walkiria possuir uma personalidade limítrofe, não seria nada espantoso que ela se defrontasse com a realidade de Jeanne não em sonhos, mas durante o estado de vigília.

Em relação à aparição, aceitação e integração, o caso de Ivenes tem um elemento diferencial importante, pois o seu surgimento dava-se somente nos momentos de transe e seu ego não tomava conhecimento direto da realidade por ela exposta. Ainda que Ivenes tenha colocado S.W. como uma extensão de si mesma, no seu estado de plena consciência, S.W. não apresentava qualquer identificação com ela. Parágrafos acima dissemos que o Self também pode se comunicar com a consciência e que o teor destas comunicações terá efetivamente um caráter mais elevado do que aquele possível de ser alcançado pela consciência. Contudo, como elemento que participa simultaneamente tanto do Inconsciente Coletivo, quanto pessoal, o Self tem um componente numinoso e

avassalador, o que o coloca em um nível de transcendência acima da média. Em termos conceituais, quando Ivenes define S.W. como uma parte de si mesma e não o contrário, poderíamos encontrar aí exatamente a definição de Self, pois como Jung o disse, somos nós que estamos contidos nele e não o oposto. Ivenes apresenta em suas comunicações um outro ponto sugestivo para lhe serem atribuídas as características de Self: identifica-se por um nível de maturidade e sabedoria compatíveis com uma idade muito acima da idade de S.W. Além disto, ela também demonstra total conhecimento da realidade interna e externa da jovem, o que é compatível com um elemento

inconsciente, tanto do Self quanto da Sombra.

Jeanne, por outro lado, não demonstra qualquer conhecimento da realidade vivida por Walkiria e este é o elemento fundamental para a diferenciação entre uma manifestação do Self ou da Sombra e uma manifestação de um complexo autônomo. Na qualidade de personalidade vivida pelo ser em outra encarnação, o complexo autônomo não irá conhecer qualquer evento que se dê além de sua existência, ou seja, quando ocorre um reencarne, ele deixa de existir para que o ser forme outra personalidade. Quando contatado, seja através de um sonho, de uma imaginação ativa ou, como no caso presente, de forma espontânea, ele irá apresentar exatamente as mesmas

características que tinha até então e uma completa ignorância sobre a personalidade atual. Esta ignorância poderá ser suprida em um processo de análise, exatamente pela ferramenta da imaginação ativa, mas ainda assim, o complexo terá informações apenas e tão somente enquanto a consciência estiver lidando com ele, ou seja, enquanto ela estiver mantendo-o informado sobre os eventos que vive.

Citemos um exemplo fictício: suponhamos uma pessoa de meia idade que esteja casada e cheia de responsabilidades sociais em sua profissão e família e que descubra dentro de si um complexo autônomo de um jovem aventureiro absolutamente avesso a formar laços de compromisso sociais. Em um trabalho árduo de análise e interação este complexo pode ser levado a compreender que naquele momento a consciência vive uma vida bastante diversa e que não pode ser pressionado a abandonar tudo e pôr uma mochila nas costas, saindo pelo mundo despreocupadamente. Supondo um sucesso do trabalho psicanalítico e uma modificação neste conteúdo, tão logo a consciência se volte para outros conteúdos intrapsíquicos, ele irá ‘estacionar’ no ponto em que foi deixado. Anos depois, caso o ego volte a contatar com ele, irá descobri-lo exatamente no mesmo ponto em que foi abandonado, ou seja, não terá sobre o desenvolvimento posterior da consciência qualquer informação.

E isto é exatamente o que ocorre com Jeanne. Ainda que Walkiria tenha colocado em seu livro uma espécie de conscientização pós-morte, ao surgir espontaneamente em sua psique, Jeanne apresenta precisamente a mesma postura depressiva e suicida, como se não tivesse sido ‘informada’ que a vida não se extingue com a morte e que o

‘além’ não é solução pacífica para os conflitos existenciais ou angústias da vida. E mais: Jeanne não compartilha da religião espírita que Walkiria tem desde o berço.

Um outro elemento fundamental presente na configuração de todo complexo autônomo é algo que vamos chamar aqui, por falta de expressão melhor, de

viabilidade histórica. Por esta expressão estamos definindo uma coerência psicológica entre as características apresentadas pelo complexo e o momento histórico que ele foi formado. Citemos o caso de uma de nossas pacientes a fim de explicarmos isto. A mulher, de meia-idade, possuía um misto de atração e pavor pelo engajamento em movimentos políticos de cunho popular. Ao mesmo tempo em que sentia uma forte pressão interna para se aliar a um partido político social, sentia igualmente uma espécie de fobia em expor suas opiniões políticas. Em uma regressão espontânea, como no caso de Walkiria, viu-se no corpo de um homem opositor da monarquia e envolvido nos movimentos populares que antecederam em pouco à Revolução Francesa e, no desenrolar da regressão, viu-se preso e torturado nas masmorras da Bastilha exatamente por ter exposto abertamente sua posição política. Ele não se reconhece como um líder, mas apenas como um partidário que, como tantos outros, morreram anonimamente sob tortura. Sua viabilidade histórica não está, portanto, em poder-se conferir nos livros de história a existência daquela personalidade específica, mas em poder-se conferir que os opositores da monarquia francesa efetivamente foram presos e mortos de roldão antes da Revolução se consolidar. E mais: nossa paciente viu-se como um homem do povo. Se ao invés disto ela tivesse se visto como uma jovem dona-de-casa do povo, cercada de filhos e que fora presa por acaso, poderíamos questionar esta viabilidade histórica, pois as autoridades francesas de então tinham algo muito mais sério com o que se preocupar. Agregue-se a isto o fato de que a probabilidade histórica de que uma mãe e dona-de-casa francesa do século XVIII tivesse tempo para se engajar em movimentos políticos é infinitamente mais baixa do que a de um homem do mesmo período.

Como no caso de Walkiria, o complexo autônomo de nossa paciente também

pressionava o ego a partir de suas próprias vivências e, igualmente, não acusava uma atualização evolutiva histórica, ou seja, não demonstrava ter qualquer conhecimento de que tanto aquela vida, quanto aquela morte, já tivessem sido superadas e não

existissem mais. Disto concluímos que o complexo autônomo tem uma outra

característica importante: todos os medos, conflitos, angústias, desejos e esperanças que possuía quando do desencarne ficam absolutamente intocados até que a personalidade atual se volte para eles e os resolva. Desta forma, no caso de nossa paciente, o desejo de se envolver em movimentos políticos era coerente com a realidade da personalidade anterior, bem como o medo de fazê-lo. E enquanto ela não se defrontou com esta outra personalidade, ouviu seus motivos e a informou da mudança de sua atitude consciente, que hoje se volta muito mais para o

desenvolvimento interior que para questões sociais, bem como da inadequação de manter um trauma de um evento já superado, no caso a morte, ela não se sentiu liberada para seguir sua vida e sua nova orientação libidinal de forma tranqüila.

Para finalizar gostaríamos de acrescentar que em nossos trabalhos de pesquisa e observação de eventos ‘mediúnicos’ não raras vezes identificamos a manifestação de um complexo autônomo na figura do que os espíritas chamam de obsessores. Um obsessor se define por possuir uma postura antagônica à consciência, mas deve ser diferenciado de um complexo inconsciente por um elemento bastante simples: à moda

do Self, da Sombra ou do Animus/Anima, ele possui informações claras e precisas sobre tudo o que ocorre ao ego na encarnação atual. Lembremos que um espírito desencarnado habita uma dimensão paralela a esta, o que o coloca em condições de saber exatamente tudo o que aqui se passa. E mais: é exatamente esta capacidade que o possibilita identificar na matéria seus desafetos reencarnados. Ou seja: eles sabem exatamente diante de quem estão e apenas se recusam a acreditar que houve uma modificação entre as motivações emocionais anteriores e presentes, o que está bem próximo da realidade, pois enquanto o complexo autônomo da vida anterior não for trabalhado, ele continuará existindo tal qual era no inconsciente do indivíduo

reencarnado.

Este é o motivo pelo qual não adianta realizar infinitas sessões de desobsessão enquanto não houver esta modificação na disposição inconsciente do obsedado.

Dentro dele, aquela pessoa que afetou de forma negativa quem hoje se coloca como seu obsessor, continua existindo e está, desta maneira, em estreita sintonia com este último. Esta sintonia, contudo, não existe apenas no caso dos obsessores, pois como nos conta Walkiria, Jeanne foi uma estudante de Belas Artes em um momento histórico no qual Impressionismo, Expressionismo e Cubismo encantavam o espírito dos

franceses. Como mera estudante, contudo, Jeanne não poderia ser responsabilizada por ter produzido sozinha a variedade e a qualidade das obras apresentadas por Walkiria, mas isto a habilita para ser o complexo autônomo portador da ligação entre Walkiria e todos os espíritos que através dela se expressam.

No documento Arquétipos, Psicanálise e Reencarnação (páginas 86-90)