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Jeca Gay entra. Carlos Alberto, no banco, lê o jornal.

Carlos Alberto: Meu amigo suspiro, que saudade! Você é como se fosse meu parente, meu primo, meu irmão... É como se você fosse do meu sangue.

Suspiro: Divino pai eterno! Seu sangue?

Carlos Alberto: É um modo de dizer... Meus filhos têm meu sangue, meus netos têm meu sangue...

Suspiro: Ô famía ensanguentada! Chorei, largado!

Carlos Alberto, emocionando-se: Essas coisas me emocionam, sabia? Eu gostaria de conhecer todo mundo que tem meu sangue.

194 Suspiro: Ô sô, nisso eu não posso me queixar. Eu conheço todo mundo que tem meu sangue.

Carlos Alberto: Irmão, primo, sobrinho?

Suspiro: Não... Pernilongo, carrapato... Vez em quando eu mato um parente na unha [apertando a unha de um dedo contra a do outro, simula o ato de matar um carrapato].

Carlos Alberto: Mas o que interessa é que você está aqui. Cê tá bão e bunito? Suspiro: Tô bão. Não tô mais bunito porque eu tirei sangue hoje dessa veia...

Suspiro mostra a veia do braço.

Carlos Alberto: Meus parabéns!

Suspiro: Magina! Não é aniversário da veia, não...

Carlos Alberto: Eu estou te cumprimentando porque pouca gente sabe a importância desse gesto: doar.

Suspiro: Do ar? Carlos Alberto: Doar...

Suspiro: Do ar pra mim é urubu, periquito, maritaca...

Carlos Alberto, embevecido: Doar sangue. A pessoa que doa é generosa, santificada. Suspiro, doar é o mesmo que dar. Conhece alguém assim?

Suspiro: Minha prima, Marinês. Tão dizendo lá que ela já doou pra cidade inteira. (...)

Carlos Alberto: Mas quer dizer que você hoje fez doação de sangue? Suspiro: Mas nunca mais! Dói demais, sô!

Carlos Alberto: Que exagero! Não dói nada. Fomos eu, o Marcelo, o Buiú, o Zezinho... e doamos dois litros de sangue cada um...

Suspiro: Porrrr favorrrr... Cê tá me dizendo que o Zezinho tinha mais de um litro e meio?1

Carlos Alberto: O corpo humano tem perto de cinco litros. Qualquer um pode doar até um litro por ano.

Suspiro: Ô sô, como é que é essa dação de sangue do‟cêis?

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Zezinho é um dos anões que trabalham como figurante e, eventualmente, como coadjuvante nos

sketches do programa. A piada consiste em questionar a quantidade de sangue num corpo de pequenas

195 Carlos Alberto: Simples! A enfermeira pulsiona sua veia, tira o sangue, coloca um esparadrapinho... o que é que dói?

Suspiro: Lá dói porque o sistema é diferente. Carlos Alberto: Com assim?

Lá quem atende nóis é o Pedrão da Zenaide. Carlos Alberto: É o enfermeiro?

Suspiro: Não, o açougueiro. Cê chega lá e ele pergunta: „Já lavou o nariz‟? Carlos Alberto: Nariz?

Suspiro: A seguir, o Pedrão vem com a canequinha... Carlos Alberto: Canequinha?

Suspiro: Aí ele dá um soco no nariz, e quando desce o sangue ele enfia a canequinha e fala: „abaixa a cabeça‟.

Carlos Alberto: Você deve estar brincando. Eu nunca vi coisa mais anti-higiênica... Suspiro: Cê não viu nada! Quando é exame de fezes é a mesma canequinha.

Carlos Alberto: Agora sério: quando eu for lá em Goiás vocês podem contar comigo, que eu faço questão de doar tudo o que vocês precisarem. Eu sou um touro...

Suspiro: Emocionei! Ô sô, já que ocê é um touro, cê vai ajuda nóis... Carlos Alberto, se levantando: Conte comigo! O que é que vocês precisam? Suspiro: Nóis tá precisando dimais de esterco...

S

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Saideira.

Saideira entra de forma habitual, cambaleando. Senta na extremidade oposta naquela onde, lendo o jornal, Carlos Alberto se encontra.

Carlos Alberto: Sentou longe de mim por que?

Saideira: Eu não quero que você perceba que eu bebi um pouco... E cheiro de cachaça entrega. É um bafo que não dá pra disfarçar...

Carlos Alberto: Pode sentar aqui perto. Eu já te conheço.

Saideira: Pelo jeito você também andou cachaçando por aí, né Jâo? Carlos Alberto: Por essa boca aqui nunca entrou uma gota de álcool! Saideira: Jão do céu! E você enfia a bebida por onde?

Carlos Alberto: Eu nunca bebi. Eu nunca fumei. Eu nunca fui mulherengo. Saideira: Em compensação mente com uma cara de pau...

196 Carlos Alberto: Verdade... Eu quando tinha 12 anos, comecei a nadar... e a natação não permite que você faça extravagâncias...

Saideira: É por isso que eu nunca nadei!!! Por causa da natação minha irmã tá já há uma semana internada...

Carlos Alberto: Se afogou?

Saideira: Teve um filho com o treinador dela...

Carlos Alberto: Você tem que pensar mais na sua saúde, Saideira... vá de vez em quando ao médico...

Saideira: Só se eu tiver bêbado!!! Nunca mais eu entro num consultório médico! Carlos Alberto: Por que?

Saideira: Lá onde eu trabalhava, eles mandavam uma vez por ano os empregados fazerem exame. A primeira vez que fui, tem que ver o que eu passei. Primeiro que eu entrei numa sala, onde tinham mais de 10 homens pelados...

Carlos Alberto: Pelados?

Saideira: Da cabeça aos pés! Jão... quando eu vi aquele monte de homem pelado, já me encostei na parede pra evitar confusão pro meu lado... O médico nem olhou pra minha cara; foi logo falando: „Tira a roupa!‟. „Doutor, mas meu problema é nos olhos...‟. „Tira a roupa!‟. „Doutor... o olho que eu me refiro é o da cara...‟. O homem então deu o maior berro: „TIRA A ROUPA!!!‟. Jão, eu tive que tirar... Que situação... Eu ali, sem roupa, peladão, peladão... Queria enfiar a mão no bolso e não achava nada... Ele continuou: „Todo mundo de costas pra mim‟. De costas o cacete, que eu sou muito macho! Todo mundo ficou de costas. Ele então me falou: „Não vai ficar de costas pra mim?‟.

Carlos Alberto: E o que você disse?

Saideira: „Pedindo assim, com carinho, óia que eu fico, heim...‟. Jão... ele me colocou uma rodelinha nas costas e disse: „Diga 33...‟.

Carlos Alberto: E você disse 33?

Saideira: Nem cheguei no sete... sei lá o que aquele cara tava a fim de fazer comigo. E cê pensa que acabou aí? Aí ele me botou deitado numa cadeira, levantou minhas pernas e disse: „Vamos fazer um exame de próstata‟. Eu falei: „Num posso fazer exame porque nem estudar isso eu estudei‟. Jão, Jão... O homem botou uma luva de plástico, esfregou o dedão numa latinha de brilhantina e veio. Não deu tempo nem de eu dizer: „Dá um beijinho antes pelo menos...‟.

197 Carlos Alberto: Este é um exame que todo homem depois dos 40 anos tem que fazer anualmente...

Saideira: Depois disso tudo, eu tava botando as calças, tinha um cara do meu lado, que também tinha passado o que eu passei. Eu falei pra ele: „Eu vim aqui só porque eu tava com terçol nos olhos...‟. E ele me respondeu, quase chorando: „E eu que vim aqui só pra servir um cafezinho pro doutor...‟.

Carlos Alberto: Vai embora, vai!

Saideira sai, cambaleando.

A despeito do seu gosto pelos livros, Valter D’Ávila não sabe ler. Esse é o eixo pelo qual se desenvolvem as narrativas que lhe concernem, como ilustra esse sketch transmitido originalmente em meados dos anos de 1960. No caso de Suspiro, o matuto natural do interior do Goiás, o problema é escrever. Com efeito, além dos “causos” passados “no Buriti”, e dos ingênuos relatos dos golpes por ele sofridos nas mãos de Malão, o mau-caráter que o recebe na cidade grande, os sketches do personagem de Moacyr Franco giram em torno das cartas que o inocente caboclo pede para o homem do banco caridosamente escrever.

Num e noutro caso, o analfabetismo, ou antes, a manifesta ignorância parece se fixar como a noção por cujo intermédio a função simbólica da Feiúra se realiza. Em S6,

igual papel se cumpre pela caracterização do vício e do alcoolismo, com os quais se constituirá Saideira. Perceba-se, pois, que é na razão de uma codificação moral que todas essas narrativas se desenvolverão.

Em todos os casos, o exato contraponto se assenta na figura do “homem do banco”: Manoel de Nóbrega, em S4, Carlos Alberto, em S5 e S6. Culto, consciente dos

limites entre o errado e o certo, sóbrio nas escolhas que entre este e aquele faz para si. Coloca-se nesse sentido o interesse de Manoel pela leitura do desconhecido: “...qual é o título do livro”; também a forma pela qual deduz o equívoco do mesmo: “Não será Caifás?”. Por fim, a maneira pela qual o aconselha: “...é um livro muito interessante e instrutivo. O senhor deve ler...”; e pela segura erudição com que fala sobre a História: “Olha, meu amigo, Caxias tem uma vida extraordinária...”.

Em alguma medida, e de modo certamente alegórico, essa conjunção de elementos se alinha com um ideal de Beleza concebido e buscado pela aristocracia grega dos tempos clássicos. “A virtude visa à beleza”, afirmará Aristóteles.

198 A Kalokagathia, enquanto soma de todas as virtudes, claro, pressupunha o bom desenvolvimento das faculdades intelectuais, como, também, a generosidade e a sobriedade. Sócrates não cobrava por seus ensinamentos; raramente bebia, e jamais fora visto embriagado, conta em seus Diálogos Platão, para quem o mestre, conhecido por sua feiúra aparente, era referência no que concernia ao Belo verdadeiro.

Amiúde, são esses exatos elementos os responsáveis por assinalar e qualificar a

Beleza enquanto função referencial e semântica nas narrativas que aqui se consideram.

Eis que o que se observa em S3 aqui se repete, de forma absolutamente inalterada. “É

como se você fosse do meu sangue... É um modo de dizer”; “Eu estou te cumprimentando porque pouca gente sabe a importância desse gesto: doar”; “a pessoa que doa é generosa, santificada”; “...doar é o mesmo que dar...” Carlos Alberto explica a Suspiro em S5, do mesmo modo atencioso que a Saideira, em S6: “Você tem que

pensar mais na sua saúde, Saideira... vá de vez em quando ao médico...”; “este é um exame que todo homem depois dos 40 anos tem que fazer anualmente...”.

A intenção desse movimento é reforçada em S5 pela generosidade de Carlos

Alberto: “quando eu for lá em Goiás vocês podem contar comigo, que eu faço questão de doar tudo o que vocês precisarem”. Em S6, é como sobriedade e consciência que o

mesmo propósito aparece transmutado: “Por essa boca aqui nunca entrou uma gota de álcool!”; “Eu nunca bebi. Eu nunca fumei. Eu nunca fui mulherengo”; “Eu quando tinha 12 anos, comecei a nadar... e a natação não permite que você faça extravagâncias...”.

Finalmente, resta considerar o modo pelo qual irão se consumar as narrativas apresentadas por esses três últimos sketches. Também em seu termo, cada uma dessas pequenas situações parecem se justapor ao que se fixa em S3 com o Menino e em S1 e

S2, quando a relação entre a Velha Surda e Apolônio é observada nos termos de sua

codificação moral, ou seja, a um famigerado fracasso do belo em seu intento de dissolver a descontinuidade que logicamente se interpõe entre ele e seu oposto.

Ao final de S4, Manoel é insultado por Valter D’Ávila: “Se disser apanha”; “...a

sua boca! Que é uma caverna cheia de bichos...”; “esse cheiro de múmia de gambá”; “ignorante!”. Em S5 e S6, a despeito de todo o esforço dispendido, Carlos Alberto não

logrará êxito em seu deslocamento narrativo. Suspiro mantém-se não menos ignorante do que parvo: “Ô famía ensanguentada!...”; “Não... Pernilongo, carrapato... Vez em quando eu mato um parente na unha”; “Não é aniversário da veia”; “Do ar pra mim é urubu, periquito, maritaca...”. Saideira não abandona o vício: “Pelo jeito você também andou cachaçando por aí, né Jão?”; “E você enfia a bebida por onde?”; “...mente com

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