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John Dewey: fundamentos para compreensão do pensamento deweyano

1 O (NEO) PRAGMATISMO E A ESTÉTICA IDEOLÓGICA RAPPER:

1.2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRAGMATISMO: DIÁLOGOS

1.2.1 John Dewey: fundamentos para compreensão do pensamento deweyano

Nascido em 20 de outubro de 1859, na cidade de Vermont, Estados Unidos, John Dewey foi reconhecido, ao lado de Peirce e William James, enquanto um dos três maiores expoentes dos estudos pragmatistas. Embora não tenha integrado o Clube Metafísico de Cambridge, Dewey, ainda antes de tomar conhecimento da linha pragmatista, norteava seus estudos a partir de concepções relacionadas às temáticas da experiência, da ação, da aprendizagem e da democracia; influências decorrentes de sua própria formação, conforme explica Cunha (2010, p. 9):

Dewey certamente assimilou à sua personalidade e às suas concepções intelectuais as lições da vida comunitária democrática que conheceu na infância e na juventude, articulando ideias filosóficas e educacionais que refletem justamente a confiança no indivíduo e na capacidade humana para buscar e exercer a liberdade, sem a rigidez imposta por dogmas e hierarquias.

Autor de obras como The School and the Society (1899), The Child and the Curriculum (1902), How we think (1910), Democracy and education (1916), The Public and its Problems (1917) e Experience and Education (1938), John Dewey tomou conhecimento da linha filosófica pragmatista, por meio das célebres conferências proferidas por William James (POGREBINSCHI, 2005). À época, estava à frente do Departamento de Psicologia, Pedagogia e Filosofia da Universidade de Chicago e envolvido com uma série de atividades dotadas de engajamento político- social, conforme aponta De Waal (2007, p. 154):

Em Chicago, Dewey se envolvera ativamente com a Hull House- um estabelecimento social para melhorar as condições sociais da empobrecida classe trabalhadora. A Hull House era uma instituição de ensino superior que inicialmente tinha um currículo de humanidades e cultura geral e posteriormente fora adaptada para atender às necessidades da sociedade industrial, em 1895, Dewey ajuda a fundar a Escola Laboratório da Universidade de Chicago. Uma escola planejada para testar suas teorias pedagógicas e psicológicas e em 1937 presidiu a comissão para investigar as acusações de conspiração feita pelo governo soviético contra Leon Trotsky, além de outras causas políticas e sociais no cenário da vida americana.

Assim como os demais pragmatistas, Dewey acreditava na ação relacionada ao conhecimento e consequente reorganização das experiências, de modo que toda ideia ou crença devesse ser submetida a testes, a fim de que pudesse ser verificada, enquanto válida ou não (APPLE; TEITELBAUM, acesso em 04. fev. 2014).

Sob influência de Hegel, lança uma interpretação mais ‘orgânica’ do termo ‘pragmatismo’, comprendendo- o não como sendo apenas um método filosófico, mas, também, uma ferramenta aberta, que auxilia o homem à adaptação em seu meio natural, possibilitando a geração de um ambiente democrático e humanitário.

Dewey contrapõe ao naturalismo rousseaniano o idealismo hegeliano: as capacidades intelectuais do indivíduo não se desenvolvem espontaneamente a partir de sua natureza, sendo a sociedade um impedimento ao correto desenvolvimento de tais capacidades, como pensa Rousseau; pelo contrário, é preciso aprender com Hegel que as nossas capacidades intelectuais são formadas a partir da interação social, que gera a linguagem, a cultura, o governo, a arte e a religião. A origem das capacidades cognitivas pode ser natural, mas o seu desenvolvimento se dá na interação do indivíduo com as instituições sociais. Uma vez que a sociedade nada mais é do que a reunião dos indivíduos, desenvolvê-los culturalmente é o modo de manter a cultura da sociedade, e mesmo, aperfeiçoá-la (PORTO, 2006, p. 42-43).

Dewey associa a reflexão filosófica às pesquisas e vivências que desenvolve no campo pedagógico. Assim, o contexto escolar assume papel fundamental, à medida que Dewey enxerga, na escola, uma espécie de célula, miniatura do corpo societário, em que é possível trabalhar em prol da construção da moral e do ambiente democrático.

Em relação a este último, torna-se importante esclarecer que a ideia de ‘democracia’, base nos estudos deweyanos, não consiste apenas na operacionalidade de um sistema governamental, mas na participação dos cidadãos, igualitária e rotineira, perante as dinâmicas do corpo social, referentes tanto às instâncias políticas, quanto econômicas ou culturais. Para Dewey, a democracia era um modo de vida, correlacionado à experiência comunicada conjuntamente (APPLE; TEITELBAUM, acesso em 04 fev. 2014).

Ao pensar o consolidar de uma educação inovadora, Dewey experimenta a criação de uma ‘nova escolástica’, apresentando a proposta de “[...] criar nas escolas uma projeção do tipo de sociedade que almejamos, para que as pessoas ali formadas transformem a sociedade vigente” (PIMENTA, 2010, p. 67).

Tal proposta é baseada no estímulo à capacidade crítica do alunato e no exercício da aprendizagem, dando-se esta, a partir da interação entre sujeitos e em suas respectivas tomadas de consciência, em relação a serem membros integrantes de determinado contexto social, imersos e comprometidos, portanto, com as questões que dizem respeito à realidade de tal contexto.

Sob esse aspecto, o pensamento é considerado enquanto um dos processos vitais que constituem o ser humano; um esforço que o organismo realiza para manter sua organização, ou seja, sua vida. Porto (2006) explica que há entre os processos biológicos e os processos intelectuais certa continuidade, sendo possível o incentivo e a transmissão do comportamento social por meio da educação, ao longo das gerações, o que implicaria também em certa evolução.

A partir dessa tomada de consciência– em relação aos próprios atos e seus respectivos efeitos, perante a realidade vivente –, ao sujeito, são possibilitadas novas vivências. O ‘mergulho’ na experiência dos dias, associado à ação e ao conhecimento, implica, de acordo com Dewey, em descobertas incessantes que se interconectam às realidades do passado e do presente e produzem, inevitavelmente, novas experiências. Há na experiência de vida, portanto, uma sucessão de atos, fenômenos que se dão por meio da interação entre os sujeitos-viventes, constituindo unidades repletas de significações.

Nesses termos, Dewey nos fala sobre um princípio da continuidade, ao que diz: “O princípio de continuidade da experiência significa que toda experiência tira alguma coisa daquelas que aconteceram antes e modifica de alguma maneira a qualidade daquelas que vêm depois”. (DEWEY, 1971, p. 26).

Contrário às práticas culturais absolutistas e aristocráticas, ao ensino tradicional, estático e fundamentado em dualismos– ‘teoria ou prática’, ‘ indivíduo ou grupo’, ‘público ou privado’, etc. – Dewey conserva a visão do construir de uma sociedade progressista, baseada em

debates integradores, bem como na experiência da plafinicação curricular; prática interdisciplinar de conteúdos, fundamentados em interesses de atualidade, visados pelos alunos. (APPLE; TEITELBAUM, acesso em 04 fev. 2014).

Na obra Experiência e Educação, Dewey compara a escola tradicional ao que deveria ser a ‘nova escola’. Segundo o filósofo, a instituição escolar ao se dispor às novas práticas do pensamento progressista, deve eliminar tendências ‘enciclopedistas’, evitando ao máximo a proliferação de reflexões mecânicas e estáticas e assumindo para si a tarefa de uma educação moral, solidificada no par contínuo ação-informação. Nas palavras de Dewey (1974, p. 4):

A matéria ou conteúdo da educação consiste de corpos de informação e de habilidades que se elaboraram no passado; a principal tarefa da escola é, portanto, transmiti-los à nova geração. No passado, também padrões e regras de conduta se estabeleceram; logo, educação moral consiste em adquirir hábitos de ação em conformidade com tais regras e padrões. Isso faz da escola uma instituição radicalmente diferente das outras instituições sociais.

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A escola é, na concepção de John Dewey, um instrumento capaz de minimizar as diferenças sociais. Nesse contexto, o papel assumido por aqueles dedicados à atividade docente seria de suma importância. Em um artigo intitulado Meu Credo Pedagógico (1897), Dewey fornece sua opinião acerca do papel assumido pelo professor; que não seria alguém a impor ideias, mas um profissional a selecionar as influências incidentes sobre seus alunos, avaliando como a disciplina da vida deve chegar até eles. Assim, dispõe Dewey (acesso em 4 fev. 2014): “Acredito que cada professor deve perceber a dignidade da sua vocação; que ele é um servo social diferenciado em razão da manutenção da ordem social adequada e da asseguração do crescimento social correto.

Embora tenha tido seu nome consagrado na história, enquanto um dos maiores teóricos norteamericanos dedicados à transformação societária, com destaque nas áreas da Educação, Filosofia, Política e Psicologia, John Dewey foi, por vezes, contestado e questionado por estudiosos de outras vertentes filosófico-educacionais. Nesse sentido, explicam Apple e Teitelbaum (acesso em 04 fev. 2014):

A sua antipatia perante o ensino de crenças socialmente fixas revelava-se em contraste com as abordagens de muitos educadores sociaisreconstrucionistas que acreditavam que tal advocacia política era uma aspecto inevitável na educação. Contrariamente a Dewey, pensavam que os estudantes deveriam identificar e examinar problemas específicos do capitalismo estadounidense de forma a encorajar, não só uma compreensão, como ainda uma aliança com as relações

económicas e socais mais cooperativas. Os educadores socialistas hesitaram ainda menos em ensinar os valores do colectivismo e da luta de classe aos[às] estudantes, justificando esta posição como uma necessidade para contra-reagir à perniciosa influência da cultura capitalista na vida das crianças e da classe trabalhadora. O máximo admitido por Dewey era a aplicação de uma investigação criativa e científica aos problemas sociais [...] é questionável se um determinado tipo de propósito social comum e de cidadania activa advogado por Dewey é possível numa sociedade capitalista com tamanhas e acentuadas desigualdades de poder e riqueza e dominada pelo consumismo. Alguns questionaram também que a crença de Dewey na ciência era um equívoco. Tal como C. Wright Mills salientou, a inteligência científica poderia ser usada tão facilmente tanto para servir propósitos democráticos como para aumentar a dominação.

No Brasil, também, quando da inserção dos conceitos deweyanos em âmbito educacional, principalmente por parte de Anísio Teixeira, no início do século XX, houve a resistência de muitos professores, conforme explica Barbosa (2002, p. 15), no título John Dewey e o Ensino da Arte no Brasil:

No Brasil, com a política anti ‘escola nova’, John Dewey, por ter sido inspirador do que pejorativamente se chamou aqui de ‘escola novismo’, foi banido dos estudos educacionais. Passou a ser visto por muito tempo como defensor de uma educação elitista, pelos que se consideravam renovadores, e, pela direita, como um esquerdista americano que era preciso rasurar. Havia ainda os que se julgavam de esquerda e nacionalistas por recusarem qualquer influência americana e procuravam, para demonstrar seu esquerdismo, se associar ao pensamento e à pedagogia européia, desprezando tudo que vinha dos Estados Unidos. Como se do ponto de vista de identidade cultural houvesse algum avanço em baixar uma bandeira colonizadora e levantar outra igualmente colonizadora.

Não obstante as controvérsias encontradas, em relação à teoria filosófico-educacional difundida por John Dewey, é inegável a influência deste estudioso, em meio aos campos de atuação supracitados. Relembramos, assim, a necessidade de se estabelecer uma separação entre o que seriam suas convicções políticas e a realidade econômica, então instaurada. Ressaltamos as palavras de Leonardo Sartori Porto, com as quais concordamos:

É preciso, contudo, dirimir um possível mal-entendido com relação às convicções políticas de Dewey: ele ser um defensor do liberalismo, não significa que defenda a versão contemporânea do liberalismo econômico que desobriga o grande capital de seus encargos sociais; pelo contrário, o filósofo defendia o que mais tarde foi chamado de liberalismo social; ou seja, um sistema democrático onde haja um controle social que impeça o surgimento de desigualdades entre os indivíduos. Esse controle social não se dará por uma intervenção direta do governo, mas através da educação, uma vez que uma educação mais democrática possibilita ‘uma ordem social mais equânime e esclarecida’ (PORTO, 2006, p. 43-44).

Tivemos, nesta subseção, o intuito de traçar, em linhas gerais, os aspectos inerentes ao pensamento pragmatista desenvolvido por John Dewey. A seguir, teremos como temática o os fundamentos da filosofia Neopragmatista, proposta por Richard Rorty; que retoma e

reconfigura os ideais dewyanos e sob a qual se encontram, atualmente, explicações peculiares acerca das enunciações e produções rappers, conforme apresentaremos no decorrer deste trabalho.

1.3 O PENSAR NEOPRAGMÁTICO DE RICHARD RORTY E A IMPORTÂNCIA DA ARTE ENQUANTO INSTRUMENTO SOCIAL

Nascido em 1931, na cidade de Nova York, Richard Rorty fora um filósofo que realizou uma obra profícua nos campos da filosofia, política e teoria literária, tendo se consolidado com um dos principais pensadores da contemporaneidade.

Influenciado pelas ideias socialistas e democráticas de seus pais, que foram militantes políticos e escritores – mas, também, pelas obras de diferentes filósofos, tais como: Hegel, Heidegger, James, Wittgenstein, Quinte, Gadamer, Derrida, Nietzche e Dewey (DAZZANI, 2010), Rorty é considerado o fundador da corrente filosófica neopragmatista.

O neopragmatismo surge ao final da década de 1970, quando Richard Rorty publica a obra Philosophy and the mirror of Nature (A filosofia e o espelho da natureza). Por meio desta, estabelece críticas às teorias que concebem o conhecimento e a verdade como correspondências entre a nossa mente e a realidade externa, sustentando dualismos metafísicos do tipo mente-corpo, universalismo-relativismo, racionalismo-irracionalismo, ciência- arte (DAZZANI, 2010).

Antifundacionalista, a exemplo de John Dewey, Rorty acredita na inexistência de um conceito fixo de verdade, tal como aquele que rege a filosofia tradicional do Ocidente, desde a Grécia antiga. Para Rorty, a verdade é constatada em âmbito cultural, por meio da vivência, da prática societária e interativa dos sujeitos, ou seja, algo que deve se instaurar de maneira apartada a idealismos ou construções abstratas decorrentes da filosofia. Além disso, compreende haver por parte da filosofia tradicional uma errônea utilização da linguagem enquanto representação, devendo ser esta, ao contrário, uma espécie de ferramenta facilitadora da convivência entre sujeitos que compõem determinado grupo ou comunidade.

Para Rorty, o que os linguistas compreendem por ‘linguagem’, conceito ontologicamente fixado, simplesmente não existe. O fenômeno que se dá em meio societário, e que Rorty compreenderá enquanto linguagem, pressupõe a comunicação, a construção de elementos comuns em trocas e interações sociais que se estabelecem em meio às vivências (GHIRALDELLI JUNIOR, 2005).

Ao contrário de Dewey – que acredita na experiência e na educação moral, de bases cientificistas, para o transformar de realidades– Rorty trabalha com a importância do efetivar dos jogos de linguagem em meio à vida prática das comunidades, nas quais coexistem diferentes tradições, vocabulários, modos de pensar e de agir.

Em sua proposta, portanto, substitui a ideia da objetividade da experiência cientificista- transformadora pela noção de intersubjetividade (ou solidariedade), que leva em conta o interagir e as trocas culturais efetivadas por meio da comunicação. Ao explicar de que forma seria esta nova conjuntura social, Rorty (1988, p. 128) nos diz:

A nossa certeza será uma questão de conversação entre as pessoas, mais do que uma matéria de interação com uma realidade não humana. Não veremos, assim, uma diferença de gênero entre as verdades ‘necessárias’ e ‘contingentes’. Quando muito, veremos diferenças em grau de dificuldade na objeção às nossas convicções.

No decorrer de sua obra, Rorty ressalta a necessária ampliação de vocabulário, inclusive, por parte da filosofia; e a importância da atuação dos chamados ‘filósofos edificantes’, cujo papel consistiria em libertar a sociedade das metáforas e vocabulários já enraizados, decorrentes da escola fundacionista, permanecendo sempre abertos ao diálogo e à troca entre os sujeitos. Segundo o neopragmatista, os ‘filósofos edificantes’ se encontram a favor de um infinito ‘tender para a verdade’; e contra a ‘totalidade da verdade’, concepção tida por absurda. (RORTY, apud REALE, 2011, p. 204).

O exercício amplo da linguagem entre os falantes dos grupos sociais constituintes da realidade contemporânea seria, para Rorty, também, uma forma de exercer a liberdade. No artigo Verdade e Liberdade, tem-se a seguinte colocação, proferida pelo filósofo:

Meu palpite, ou ao menos minha esperança, é que nossa cultura está gradualmente se tornando estruturada em torno da idéia de liberdade  a de deixar que as pessoas, por si mesmas, sonhem e pensem e vivam como quiserem, contanto que não

infrinjam dor a outras pessoas  e que esta idéia forneça uma cola tão viscosa quanto aquela da validade incondicional.

(RORTY, acesso em 14 mar. 2014).

Rorty (2005), na obra Contingência, Ironia e Solidariedade — considerada como um de seus livros mais importantes — ratifica o abandono de quaisquer dimensões metafísicas e ontológicas e propõe o resgate de uma contingência pacífica, baseada em práticas sociais cooperativas, solidárias. Estas práticas seriam um substrato positivo restante dos ideais do esclarecimento, porém ainda não absorvido pelos homens. Tal absorção, segundo Rorty (2005), se daria apenas a partir do estabelecimento de uma “nova sociedade liberal”, constituída por sujeitos singulares, autossuficientes em relação ao uso da linguagem e capazes de se reescreverem a todo o tempo.

Nesta sociedade imaginária, filosofia e arte assumem a importante função de atuarem como práticas linguísticas mediadoras, voltadas à inovação cultural e aprimoramento das decisões éticas. Aos filósofos e artistas – principalmente os poetas e romancistas – Rorty confere primordial importância, pois eles criam novas metáforas e novas linguagens sobre o sujeito, ampliando, assim, seu espectro de decisões éticas (HERMANN, 2005).

De acordo com Rorty (2007), o grupo formado por revolucionários do século XVIII e poetas românticos deixou a nós, como herança, um importante instrumento para a redescrição: o imaginário, fundamental, no que tange à implantação das inovações culturais, necessárias à instituição da nova sociedade liberal, por ele proposta.

Posso resumir com uma redescrição daquilo que pretendiam dizer, a meu ver, os revolucionários e poetas de dois séculos atrás. O que se vislumbrou no fim do século XVIII foi que qualquer coisa podia ser levada a parecer boa ou má, importante ou sem importância, útil ou inútil, ao ser redescrita. O que Hegel descreveu como o processo pelo qual o espírito se conscientiza gradativamente de sua natureza intrínseca é mais bem descrito como o processo de as práticas linguísticas europeias mudarem em ritmo cada vez mais rápido [...] O que os românticos expressaram como a afirmação de que a imaginação é a faculdade humana central- e não a razão - foi o reconhecimento de que o talento para falar de maneira diferente, e não para bem argumentar, era o principal instrumento de mudança cultural (RORTY, 2007, p. 32-33).

Ao longo de toda sua obra, Rorty (2005) reflete acerca das atitudes morais enquanto fatos estetizados. Segundo Rorty, o sujeito contemporâneo tem diante de si um amplo leque de possibilidades, de maneira que a simples opção por um ‘estilo’ de vida ou ‘postura’ social, implicaria também em uma ‘ação estética’, daí a importância dos artistas e filósofos enquanto

incentivadores que, pela linguagem, desconstroem paradigmas social-intelectualmente instaurados e propõem novos pensares, novas interações.

Rorty (2007), que defendia o caminhar da ética e da estética, lado a lado, abertas às ressignificações da linguagem, também atribui fundamental importância aos chamados ‘ironistas liberais’: seres humanos renovados, para os quais toda violência é rechaçada e toda verdade, questionada. Receosos de antigos vocabulários, os ironistas desenvolvem uma espécie de linguagem poética e fogem ao senso comum: são, na verdade, intelectuais voltados ao exercício da dialética e capazes de desenvolver a autodescrição a todo o momento.

A definição deste grupo se dá da seguinte maneira, por Rorty (2007, p. 134):

Definirei o ‘ironista’ como alguém que satisfaz três condições: (1) tem dúvidas radicais e contínuas sobre o vocabulário final que usa atualmente por ter sido marcado por outros vocabulários, vocabulários tomados como finais por pessoas ou livros com que ele deparou; (2) percebe que a argumentação enunciada em seu vocabulário atual não consegue corroborar nem desfazer essas dúvidas; (3) na medida em que filosofa sobre sua situação, essa pessoa não acha que seu vocabulário esteja mais próximo da realidade do que outros, que esteja em contato com uma força que não seja ele mesmo. Os ironistas se inclinam a filosofar vêem a escolha entre vocabulários como uma escolha que não é feita dentro de um metavocabulário neutro e universal, nem tampouco por uma tentativa de lutar para superar as aparências e chegar ao real, mais simplesmente como um jogar com o novo contra o velho.

O ironista é, desta forma, alguém que conserva a intenção de se tornar uma pessoa melhor. Esperançoso, valoriza as obras de carácter literário e atua por meio de contínuas descrições e reavaliações de sua identidade moral: o ironista revisa a si mesmo, aos outros e à cultura (HERMANN, 2005).

Tal ideia, fundamentada na crítica à tradição – pela qual se herdam vocabulários, valores e limites específicos – pauta-se, portanto, na constante metaforização do indivíduo. O que Rorty

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