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John Manuel Monteiro, Negros da terra, p 216 No entanto, como lembra Ilana Blaj, isso não

Logo, o imaginário do paulista insubordinado e autonomista foi criado nesse contexto preciso. Essas imagens, no entanto, acabaram perdurando por um longo tempo, estruturando uma determinada explicação da realidade local muito posterior aos conflitos que estavam na sua origem.

De qualquer modo, o que me interessa é perceber que em determinado momento essas representações começaram a entrar em desuso. Uma linguagem política bastante distinta começou a ser utilizada quando se tratava dos paulistas e de São Paulo.

A partir desse ponto, a imagem do paulista arredio à autoridade foi tendo seu sentido alterado. No plano discursivo, pode-se perceber uma progressiva disciplinarização da Rochela do Brasil. Perde-se aquele sentido autonomista em prol do vassalo honrado. Curiosamente, isso não significou necessariamente a construção de uma representação eminentemente positiva. Ao contrário. Saiu de cena o sedicioso, entrou o vadio.

Essa nova representação pode ser sentida em múltiplos discursos. Os novos governadores, outros funcionários régios, camaristas, membros das elites locais, religiosos, entre outros. Basta lembrar dos textos de Pedro Taques, Frei Gaspar da Madre de Deus, Marcelino Pereira Cleto, José Arouche de Toledo Rendon, Martim Ribeiro Francisco, Morgado de Mateus e Antonio Manuel de Mello Castro e Mendonça.

Antes de tratar do conteúdo desses textos, é preciso atentar para a sedimentação dessas idéias na historiografia. Em grande medida, foram estes documentos que serviram de base para uma grande quantidade de estudos voltados para a São Paulo colonial. Dessa forma, essas imagens historicamente construídas – e por isso,

significa um impulso autonomista da região. Na verdade, o discurso político que norteava essas ações era bastante claro, desobedecer o rei para melhor servi-lo. Essa agressão à autoridade régia, portanto, precisa ser entendida de forma muito precisa e relacionada com um contexto bastante singular.

empenhadas pelas atuações políticas de seus agentes – acabaram sendo reproduzidas como uma espécie de espelho da realidade. Creio que recolocar esses discursos no seu contexto preciso pode ajudar a desbastar esse procedimento, especialmente quanto se foca nas relações de poder que delas emanam.

A Restauração da capitania, conforme vimos anteriormente, começou a inserir São Paulo na economia atlântica, trazendo com isso uma série de medidas reformistas, especialmente no âmbito econômico-militar. Morgado de Mateus foi o primeiro governador responsável pela consecução dessas medidas. Suas primeiras impressões da região, no entanto, não foram muito animadoras. Em carta de 1768, o governador constatou que estas terras estão depravadas nos costumes, e que há nelas juntamente

gravíssimos inconvenientes que obrigam a uma pronta reforma81.

Na sua opinião, todo o problema está, de um jeito ou de outro, relacionado com os métodos de lavoura dos paulistas. Isso porque estes homens ignoram todos os meios

que não sejam o de irem fazer roças em mato virgem, e estão tão preocupado desta opinião, que nem um só há que não diga que não pode nestes países haver outra coisa82.

O problema da agricultura itinerante, na visão do governador, é que ela vai espalhando as populações pelos sertões da capitania, inviabilizando o estabelecimento de povoados estáveis e duradouros. Com isso, os paulistas vivem em falta de Religião,

Sociedade e Justiça, já que os homens atrás de mato virgem cada vez se vão alongando da Sociedade Civil; os mesmos que já foram civilizados pouco e pouco hão de perder a doutrina que aprenderam. Além disso, os sítios volantes diminuem a produção e

81 Sobre os costumes públicos de São Paulo, 31/01/1768, DIHCSP, vol. 23, p. 377. (grifos meu) 82 Carta número 31 ao Conde de Oeiras, 23/12/1765, DIHCSP, vol. 23, p. 01-10.

inviabilizam a introdução de novas técnicas agrícolas83.

Morgado de Mateus, já as luzes de uma mais clara e bem advertida experiência, tenta demonstrar que não existe nenhum entrave “natural” para o bom desenvolvimento da agricultura paulista. Na verdade, ele sabe muito bem onde reside o problema: não há

outro algum fundamento para se sustentar esta falsa opinião [da necessidade dos sítios

volantes] que dura a tantos anos senão a negligência, e a preguiça dos Naturais, e a

facilidade com que a terra sustenta a pouco custo84.

O que importa perceber é como esse quadro explicativo serve para o governador justificar as reformas de seu governo: criação de novos povoados, introdução de novas técnicas agrícolas, reorganização da estrutura militar, arrolar e conhecer a população. Em suma, o que está em jogo é a criação de mecanismos que ordenassem a ação dos indivíduos, por meio do fortalecimento daquilo que ele chama de Sociedade Civil, entendida como povoamento fixo sob os cuidados do aparato político-administrativo português. Afinal, no estado de natureza, no qual supostamente viviam os paulistas perdidos pelo sertão, os braços do governo não chegavam85.

Nesse sentido, não era mais o paulista insolente, que desafiava a autoridade régia, aquele que deveria ser disciplinado para implementar as novas orientações metropolitanas. O alvo do governo era o vadio, aquele que trabalhava pouco a terra e por isso precisava circular, era aquele colono que se parecia mais com o gentio, que

83 Ibidem., p. 03-04.

84 Sobre o atraso da lavoura em São Paulo e suas causas, 30/01/1768, DIHCSP, vol. 23, p. 374.

85 Arno Wehling, quando estuda as justiças coloniais, lembra que na América portuguesa existiam áreas

de ingovernabilidade, nas quais as tecnologias disciplinares não emanavam das instituições portuguesas,

mas sim da justiça informal e do poder detido pelos potentados locais. Nesse sentido, o discurso de Morgado de Mateus justifica uma série de medidas que visavam diminuir essas áreas. Creio que a idéia de Sociedade Civil, acima de tudo, signifique o preenchimento desse vazio institucional que define as justiças do sertão. Ver Wehling, Direito e justiça no Brasil Colonial, p. 46-47.

vivia como bicho pelos matos86.

É importante lembrar que durante seu governo uma série de novas vilas foram criadas na capitania. No século XVIII, a última povoação que recebeu o título de vila foi Pindamonhangaba em 1705. Desse ano até 1769 não foi estabelecido nenhum novo município. A partir dessa data, Morgado de Mateus começou uma política de criação de novas vilas, tanto a partir de antigas freguesias, quanto de povoações completamente estabelecidas pela ação do governo.

Com isso, era criado todo um novo conjunto de instituições voltadas para o governo dos povos, a mais importante delas eram as câmaras municipais. Estas permitiam a aplicação mais efetiva da justiça oficial do reino, além de servirem como um braço importante para a efetivação das ordens do próprio governador e das medidas de recrutamento militar.

Importa destacar que essas idéias, representações e práticas não foram, de maneira nenhuma, exclusivas do Morgado de Mateus, mas formavam um verdadeiro quadro mental que pautou todo um contexto de imagens construídas acerca dos paulistas e da capitania de São Paulo.

Os textos de José Arouche de Toledo Rendon, por exemplo, seguem caminhos similares. Produzidos em um outro contexto, por um indivíduo com uma inserção social bastante diversa daquela de Morgado de Mateus, estes continuavam trabalhando com noções similares, como vadiagem e atraso.

Para Rendon, a capitania de São Paulo, sendo a mais antiga de todas as do

Brasil, se acha no miserável estado em que se vê. Outras que foram colônias desta,

86 Almicar Torrão explica que “não é apenas o isolamento da vida urbana mas também o viver sem ‘situação permanente’, sem ofício ou roça, sem nenhuma produção, que se procura evitar com a proibição dos sítios volantes e dos moradores dispersos”, em O “milagre da onipotência” e a dispersão dos vadios, p. 157.

descobertas pelos antigos paulistas, se acham hoje com outra povoação, outro comércio e outra agricultura87.

A explicação desse estado, segundo sua opinião, reside novamente na agricultura itinerante. Tal prática, incorporada aos usos locais pelo contato com as populações indígenas, era rudimentar e produzia apenas o necessário para o consumo local. Assim,

um índio, mameluco ou bastardo, tendo hoje o que comer, não se anima a trabalhar para adquirir o sustento do dia seguinte88.

Essa constatação justificou uma série de reformas para animar a agricultura da capitania. Para além de outros problemas menores89, a grande preocupação do autor era

estabelecer um governo capaz de forçar os vadios ao trabalho e ao bem público. Assim, dentre suas propostas, há a sugestão de forçá-los a servirem no exército, ou utilizar os capitães-mores para admoestar os povos ao trabalho nas lavouras.

Francisco da Cunha Menezes, governador da capitania durante os anos de 1782 a 1786, tinha uma concepção semelhante quanto aos vadios. Em ofício de 04 de junho de 1783, ordenou que os capitães-mores das vilas paulistas recrutassem um determinado número de homens para se tornarem soldados. Estes deveriam ser escolhidos,

87 José Arouche de Toledo Rendon, Reflexões sobre o Estado em que se acha a agricultura na